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Cinema

Pietà, «se isto é um homem»? (2)

Pietà utiliza a violência como meio para explorar necessariamente a redenção ou obtenção do perdão final, sem punição nem pena? É aqui que se rompem os esquemas tradicionais de uma cultura cinéfila que nos habitou a estabelecer correspondências entre bons e maus, entre prémio e castigo. Delito e castigo surgem no contexto do trágico. Não será o ser perdoado o maior castigo para um criminoso que o obriga a uma metanoia de confronto com os próprios atos? Talvez estivéssemos a espera que Kang-do em virtude dos seus crimes fosse preso e punido. Esse é o desfecho natural dos malvados, a impossibilidade de qualquer salvação por detrás das grades. Mas isso coloca sérios problemas à teologia e à moral cristã. Terão os criminosos possibilidade de salvação, mesmo no último minuto reduto da sua vida, independentemente dos atos? Mas Se isto é um homem (Primo Levi) é uma condição condicionante de toda a reflexão.

Mas há um elemento prévio que Girard coloca à figura-carrasco de Kang-do: “A conceção que assimila a violência à perda das diferenças deve conduzir ao parricídio e ao incesto como o último termo de sua trajetória” (A violência e o sagrado). Uma “mãe” rejeitada, maltratada e violentada sexualmente pelo próprio “filho”. Ela constrói a sua própria morte para que o Kang-do veja nitidamente o quão inumanas foram as suas ações. Ofuscar a presença da violência ou não querer vê-la é hipotecar uma esperança salvífica no aqui e no além. Veja-se, por exemplo, a metáfora refigurativa da Paixão de Cristo em Son of Man (2006), no contexto de violência étnica da África do sul, em que o “ramo de amendoeira” (Jr) tematiza a emergência de um tempo novo. Tanto os atos como as omissões são obstáculo à reconstrução dos tecidos humanos. É nessa viagem que a aparição da “mãe” (que na verdade não o é) o leva a assumir as responsabilidades pessoais. É o perdão que revela à consciência a presença do mal existente, seja ele pessoal ou global.

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O que aqui assistimos não é a uma figura-mulher passiva (metáfora de todas as mães), remetida à contemplação fatal da decadência progressiva do filho (metáfora de todos os homens), com um sentimento de “culpa original” de o ter abandonado. Pelo contrário, é uma “mãe” que não desiste de sarar as feridas do filho sarando as próprias. A justiça dita civil não funciona em determinadas culturas, nem mesmo nas sociedades democráticas. E sem justiça como é possível viver a dignidade sem indignação? E, por isso, de acordo com Girard, “nas sociedades desprovidas de sistema judiciário, e como consequência, corrompidas pela violência, o sacrifício e o rito em geral desempenham um papel importante” (O sacro e a violência). Nesse sentido, o sacrífico terá como função essencial aplacar as violências intestinais que minam as relações sociais. Então, “chegará um momento em que toda a comunidade estará do mesmo lado contra um único indivíduo […] Mas este, entre outras coisas, é um “defeituoso”, um homem diferente dos outros. Não se sabe de onde vêm os seus pais, a sua família, etc.. Finalmente, o herói mítico é uma vítima unânime: ele será morto por todos” (Deus e o bode expiatório).

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Sem justiça universal que proteja os menos da sociedade, a única possibilidade das vítimas serem redimidas é mediante o excesso de perdão e misericórdia que reconstrói os laços humanos desfigurados. Caso contrário, violência torna-se o modus operandi social que impossibilita qualquer tipo de abertura ao presente e ao futuro. O perdão e a reconciliaçãoé sempre o processo humano mais doloroso pelo qual teremos de passar (Invictus). Mas também é o único que está ao nosso alcance. É a aqui que a personagem do filme Hunger de Steve McQueen não consegue chegar, vivendo e morrendo niilisticamente, sem presente nem futuro, não obstante o altruísmo das suas convicções.

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Se acreditamos que o Evangelho é um facho de luz (mysterium tremendum et fascinans) a exigir uma hermenêutica contextual, como olhar e interpretar a figura de Kang-do e de Cho Min-soo no filme Pietà? É neste núcleo-figura que a meu ver se situa a virtualidade do filme. Paulo diz que “raiz de todos os males é a ganância do dinheiro” (1 Tm 6,10). Mas a possibilidade do ágape regenerativo – “transcendência do amor” (Julio Ries) –, atuante na vida humana coloca a questão noutro patamar. Se não acreditarmos que ela – a misericórdia regeneradora – seja possível mesmo no quadro mais trágico, o cristianismo reduz-se a uma religião civil, em que a regra d’ouro do amor é pura e simplesmente o braço direito do poder secular absconditas. Na perspetiva cristã, a fé que salva é aquela que qualifica Jesus Cristo na sua relação com abba-Pai pela qual se realiza o ato crente humano em Deus-Pai, no “exercício confiante da relação filial e da dedicação fraterna” (Sequeri). E nisto, o cristianismo se diferencia qualitativamente da Pietà de Kim ki-Duk, rompendo com a tragicidade de uma existência vivida solitariamente.

 

João Paulo Costa
© SNPC | 09.10.12

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