Pedras angulares
Convite à conversão

S. Cirilo de Jerusalém

[Pronunciada em Jerusalém, trata da conversão e do perdão dos pecados, e acerca do inimigo, partindo do texto de Ezequiel 18,20b-21: «Ao justo imputar-se-á a sua justiça, ao malvado, a sua maldade. Quanto ao malvado, se se apartar de todos os pecados que cometeu, observar todos os meus preceitos e praticar o direito e a justiça, viverá, sem dúvida: não morrerá».]

 

Misericórdia e amor de Deus para com o pecador

Deus ama os homens, e não em escassa medida. Não digas tu então: Fui fornicador e adúltero, cometi grandes crimes, e isso não apenas uma vez mas antes com enorme frequência. Perdoar-me-á, ou antes esquecer-se-á de mim? Escuta o que diz o salmista: «Como é grande a tua bondade, Senhor!» (Sal 31,20). Os teus pecados acumulados não vencem a multidão das misericórdias de Deus. As tuas feridas não podem mais que a experiência do médico supremo. Entrega-te simplesmente a Ele com fé; indica ao médico a tua enfermidade; diz tu também com David: «Sim, minha culpa confesso, inquieto estou pelo meu pecado» (Sal 38,29). E cumprir-se-á em ti o que também se diz: «E Tu perdoaste a malícia do meu coração» (Sal 32,5).

Queres ver o amor de Deus para com o homem, tu que faz pouco que vens a estas catequeses? Queres contemplar a benignidade de Deus e a enormidade da sua paciência? Atenta no caso de Adão. É o primeiro homem que Deus criou, e pecou: não pôde adverti-lo de que morreria, daí em diante? Mas vê o que faz o Deus que tanto ama os homens. Afasta-o do paraíso (pois que pelo pecado não era digno de viver ali). E coloca-o em qualquer parte fora dali (cf. Gn 3,24), para que, ao ver donde e para onde caíra, depressa consiga a salvação mediante a conversão. Caim, primeiro homem dado à luz, converteu-se em fratricida; maquinado do mal, autor e causador de assassinatos, e primeiro invejoso, abandonou depois o seu irmão. A que pena foi condenado? «Vagabundo e errante será na terra» (Gn 4,12). Grande foi o pecado, mas leve o castigo.

E esta foi verdadeiramente a clemência de Deus, mas pequena, contudo, face ao que se lhe seguiu. Pois considera o que sucedeu no tempo de Noé. Pecaram os gigantes e a maldade estendeu-se grandemente sobre a terra (cf. Os 3,2). Por ela foi provocado o dilúvio: no ano quinhentos proferiu Deus a sua ameaça (cf. Gn 6,13). Não crês que a benignidade de Deus se estendeu durante cem anos quando poderia ter-se infligido o castigo naquele momento? Tudo alagou para dar lugar à conversão. Porventura não vês a bondade de Deus? Nem sequer aqueles homens, se houvessem recobrado então o bom senso, haveriam notado que lhes faltava a clemência divina.



A bondade de Deus é maior que o pecado

Falemos agora daqueles que se salvaram através da conversão. Haverá entre as mulheres quem diga: sou uma prostituta, fui adúltera, manchei o meu corpo com todo o tipo de luxúria. Que possibilidade existe de salvação? Observa, mulher, o caso de Rahab, que também para ti há salvação. Pois se a que se dedicava à prostituição explícita e publicamente obteve a sua salvação mediante a conversão, porventura alguém que abusou do corpo alguma vez antes de haver recebido a graça não obterá a salvação mediante a penitência e jejum? Toma conta de como se salvou, pois simplesmente disse: «Yahweh, vosso Deus, é o Deus sobre os céus e sob a terra» (Jz 2,11). Não se atrevia, por pudor, a dizer que era seu. Mas se desejas receber o testemunho guardado nas Escrituras acerca da sua salvação, encontrarás escrito nos Salmos: «Conto Rahab e a Babilónia entre os que me conhecem» (Sal 87,4). Grande é a benignidade de Deus, que nas Escrituras até faz memória das meretrizes. E não diz somente «conto Rahab e a Babilónia», mas acrescentou «entre os que me conhecem». Assim, pois, os homens e mulheres podem obter a salvação mediante a conversão.

E ainda que todo o povo houvesse pecado, tal não supera a benignidade divina. O povo havia fabricado um bezerro, mas Deus não se arrependeu da sua clemência. Negaram os homens a Deus, mas Deus não se negou a Si mesmo (cf. 2 Tim 2,13). «Então eles exclamaram: “Estes são os teus deuses, Israel”» (Ex 32,4); e no entanto, de acordo com o seu modo de agir, o Deus de Israel custodiou-os. Tampouco foi o povo o único a pecar, pois também Aarão pecou, o sumo-sacerdote. Moisés, com efeito, disse: «Também contra Aarão estava Yahweh violentamente irritado… Intercedi também então em seu favor e Deus perdoou-o» (Dt 9,20). Já Moisés, suplicando em favor do sumo-sacerdote pecador, suavizou a ira de Deus. E Jesus, o Filho único que ora por nós, não aplacará Deus? Não impediu Aarão, apesar da sua culpa, que chegasse a sumo-sacerdote. Obstar-te-á a ti que, por vires dos gentios, entre na salvação? Faz igualmente penitência, tu também, oh homem! Não se te negará a graça. Adopta depois uma vida irrepreensível: Deus ama verdadeiramente os homens, e ninguém pode explicar a Sua clemência a partir da sua dignidade pessoal: inclusivamente ainda que se juntassem todas as línguas dos homens, nem assim poderiam explicar uma parte da Sua benignidade, isto é, nem sequer uma parte do que foi escrito acerca da benignidade de Deus para com os homens. Mas também não sabemos o quanto terá perdoado aos anjos, pois que também a eles perdoa, pois realmente só existe um sem pecado, Aquele que dele nos livra, Jesus.

Segunda Catequese de S. Cirilo de Jerusalém (excerto)

RF

Publicado em 19.09.2007

 

 

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