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Razão e fé no pensamento de Santo Agostinho - Em memória do P. Manuel da Costa Freitas

Tinha uma vasta produção na área da filosofia, tendo estudado a cultura portuguesa e a espiritualidade. Rezava ao ateu “São Nietzsche”, como dizia provocatoriamente aos alunos. Homem bom e íntegro, na expressão dos que com ele privaram, o padre Manuel Barbosa da Costa Freitas, professor jubilado da Universidade Católica Portuguesa (UCP) morreu a 2 de Janeiro, em Lisboa, faria 82 anos em Fevereiro.

Nascido em Barroselas (Viana do Castelo), em 1928, Manuel Costa Freitas entrou para o colégio franciscano de Braga em 1939, depois de concluir o ensino primário. Ordenado padre em 1951, foi para Roma nesse ano, concluindo o curso de filosofia do Ateneu Antoniano em 1954, com uma tese sobre Leonardo Coimbra, o pensador do século XX que estudou o franciscanismo e o criacionismo.

Depois de várias escolas superiores, fixou-se na UCP em 1968, onde dirigiu o Centro de Estudos de Filosofia. Foi ainda professor convidado da Universidade de Lisboa e, episodicamente, da Universidade Nova.

“A visão franciscana da vida, nos seus rasgos de pobreza e amor à verdade, e de uma generosa atenção à existência encarnada, é o traço de continuidade mais profundo entre o seu pensamento e acção” diz, sobre Costa Freitas, José Silva Rosa, professor da Universidade da Beira Interior e ex-assistente do franciscano, durante 10 anos, na UCP.

“Era um homem bom, íntegro, recto, com um tacto extraordinário e um humor muito fino e inteligente”, recorda José Rosa ao «Público». “Tinha uma inteligência fulgurante e grande dificuldade em lidar com a estupidez e a arrogância do poder.”

Parte da obra, em livros, enciclopédias e revistas, foi reunida em dois volumes (O Ser e os Seres. Itinerários Filosóficos, ed. Verbo). Mas muito continua por coligir, sobre o pensamento português, o franciscanismo, o espiritualismo francês e a fenomenologia da religião. Tinha em mente, diz José Rosa, uma história do sentimento religioso em Portugal.

O último trabalho foi a coordenação da tradução da Enciclopédia Interdisciplinar de Ciência e Fé (ed. Verbo), cujo segundo volume está a ser ultimado. Um pensador que, nos jardins do convento franciscano da Luz, onde morreu, gostava sobretudo de passear e ouvir os melros e os gaios. Aos quais, recorda José Rosa, “quase conhecia pelo nome”.

A missa de 7.º dia será celebrada nesta 6.ª feira, 8 de Janeiro, às 19h00, na Igreja do Seminário da Luz (Largo da Luz, Lisboa).

Razão e fé no pensamento de Santo Agostinho: um texto do P. Manuel da Costa Freitas

Por diversas vezes e em diversos lugares, Agostinho analisou expressamente as relações entre a fé e razão com base na sua experiência pessoal. A insistência com que estas duas expressões ocorrem no De Vera Religione e no De Utilitate Credendi demonstra bem que se trata de um tema maior, de importância capital para o entendimento correcto de todo o pensamento filosófico e teológico do bispo de Hipona. Na verdade, a relação entre fé e razão constitui o núcleo essencial do método agostiniano na busca incansável da felicidade ou da sabedoria.

Em última análise, tudo se reduz à descrição do processo histórico que levou Agostinho, pelos caminhos da razão (intellige ut credos), a tornar à fé de Mónica e como depois, por impulso da mesma fé (crede ut intelligas), continuou a servir-se da razão para ulterior esclarecimento daquela - a fé em busca da inteligência (fides quarens intellectum). Nesta breve exposição seguiremos de perto, além das obras mencionadas, o amplo relato do livro VIII das Confissões.

Agostinho afirma nas Confissões que aderiu à fé católica depois de ter percebido claramente, mais com o «bom senso» natural do que com profundas reflexões filosóficas, o quanto era razoável o passo que se propunha dar. Antes da adesão formal à fé cristã, tinha vencido etapas importantes no seu itinerário para a verdade e que constituíram outras tantas premissas racionais em relação à mesma fé, como sejam, a existência, a imutabilidade e providência de Deus - motivos de credibilidade com que se apresentam as Escrituras e a Igreja. Uma vez recuperada a fé, faltava-lhe pôr-se em dia com as exigências da razão no ulterior esclarecimento de problemas para cuja solução só dispusera da mesma fé: espiritualidade e inteligibilidade de Deus, o problema do mal, etc. A descoberta dos Neoplatónicos permitiu-lhe compreender racionalmente, filosoficamente, outras verdades, antes só por fé conhecidas, e que, deste modo, confirmadas agora pela razão, vieram promover uma ulterior e mais plena adesão ao seu Deus.

No itinerário pessoal que o conduziu à fé, Agostinho começa pela razão, embora de uma forma incoativa, pré-filosófica, a roçar o simples senso comum, na medida em que atende prevalentemente aos motivos de credibilidade (fides qua). Alcançada a fé, a razão é chamada a explicar, na medida do possível, o conteúdo da mesma
fé (fides quae).

No entanto, importa frisar que neste segundo estádio em que prevalece a fé, esta exerce uma influência altamente positiva, purificando o espírito, abatendo o orgulho pela submissão à autoridade divina, de modo a facilitar a investigação ulterior e uma maior abertura aos dados da experiência. Deste ponto de vista, a fé é uma preparação para a inteligência daquilo em que se acredita.

Pela sua precedência, não de direito, mas de facto, isto é, na ordem psicológico-temporal, a fé desempenha um papel propedêutico e indirecto, já que não é chamada a provar directamente qualquer verdade natural, simplesmente a dispor o espírito a procurar e a entender aquilo em que acredita, entendimento sobretudo natural - compreensão da natureza espiritual de Deus, demonstração filosófica da existência de Deus, por exemplo -, mas também sobrenatural e místico.

 

1. Crede ut intelligas e intellige ut credos

Enquanto a razão que precede a fé (ratio ante fidem) é apenas e somente razão natural, o mesmo já se não pode dizer da razão que opera ou actua depois e dentro da fé (post fidem). Se Agostinho nem sempre distingue expressamente, no conjunto das verdades recebidas pela fé (fides quae), entre verdades acessíveis à razão natural e mistérios propriamente ditos, esta distinção é, no entanto, sempre possível.

De resto, o próprio Agostinho, ao adoptar um duplo processo, na ilustração do conteúdo da fé, legitima semelhante distinção: quando argumenta com base na autoridade, a partir de premissas reveladas, procede como teólogo; quando, pelo contrário, em relação a verdades comuns à fé e à razão, utiliza processos estritamente racionais, faz filosofia. Há pois uma filosofia em Agostinho, se tivermos em conta o papel por ele assinalado à razão como preparação prévia para a adesão de fé (intellige ut credas), embora, não se encontre um conhecimento elaborado, metódica e sistematicamente, como disciplina autónoma, à parte da teologia.

De resto, se a própria razão natural, no exercício das suas funções normais, muito pode beneficiar com a sua submissão à fé (confiança na autoridade dos pais, dos sábios, dos mestres (fides qua), muito mais pode beneficiar a mesma razão natural na compreensão dos mistérios sobrenaturais, como repetidamente o refere Agostinho e que Boyer resumiu de modo excelente:

“A fé é uma preparação para o entendimento daquilo em que se acredita. Ela purifica a mente. De si mesmo, o acto de fé, consistindo na submissão à autoridade da palavra divina, é já remédio contra o orgulho e dispõe a vontade a não perturbar a inteligência na procura da verdade. Além disso, estando concentrada numa verdade, a atenção da mente liberta os olhos espirituais das seduções dos sentidos e da imaginação. Sobretudo e principalmente, com as verdades conhecidas por revelação, o homem conhece já as normas do correcto comportamento e vivendo bem dispõe-se cada vez melhor para conhecer a verdade.”

No domínio das verdades sobrenaturais, é não só útil, mas absolutamente necessário e salutar começar pela fé. Agostinho está profundamente convencido de que, neste domínio, pretender ver a verdade para em seguida purificar o espírito, quando precisamente é o espírito que deve ser purificado para poder ver, é evidentemente inverter a ordem e começar pelo fim. E as razões são óbvias, colhidas da própria experiência no trato não só com os maniqueus, mas com a humanidade em geral:

“Crer antes de entender, porque não se está ainda em condições de se seguir a lógica do raciocínio e dispor o espírito pela fé a receber os germes da verdade, é um método não só muito salutar, mas indispensável, para devolver a saúde aos espíritos desorientados.”

Se este método vale para as verdades naturais, com maioria de razão deve valer para as verdades sobrenaturais. É impossível conhecer a verdade da sabedoria, ou seja, a religião verdadeira (a verdade sobre Deus e sobre o Homem) sem se submeter à disciplina severa da autoridade e sem uma fé prévia naquelas verdades que mais tarde chegaremos a possuir e a compreender se, pelo nosso comportamento, o viermos a merecer.

É claro que o método é sempre uma questão de facto e não de direito, não é a exposição de uma doutrina, mas um conjunto de orientações práticas, tendo em conta as situações concretas, as aptidões e carências pessoais, como justamente observa F.-J. Thonnard.

Agostinho, preocupado com a vida real e concreta, mais do que em manter separadas dimensões que sabe serem diferentes - razão e fé, filosofia e teologia -, procura servir-se delas simultaneamente, como de instrumentos complementares e integrantes, na busca permanente da Verdade e da Vida, seja, do Deus Único e Necessário.

Apesar de preconizar a prioridade da fé relativamente às verdades sobrenaturais que dizem respeito à salvação, Agostinho não incorre, de modo algum, no fideísmo. O reconhecimento do papel insubstituível da razão ilosófica tanto na preparação do acto de fé (fides qua) como no conhecimento das verdades reveladas (fides quae) é constantemente afirmado. Por isso, adverte instantemente Consêncio, seu correspondente:

“Deus está longe de odiar em nós aquilo em que nos criou superiores aos restantes animais. Longe de nós pensar que a fé nos leva a rejeitar e a fugir da razão, dado que nem sequer poderíamos acreditar se não tivéssemos almas racionais. É próprio da razão reconhecer que a fé deve preceder a razão no tocante a certas verdades que fazem parte da doutrina de salvação e de cuja compreensão não seremos ainda capazes, embora o sejamos mais tarde. E isto porque, purificando o coração, a fé apreende e transporta consigo a luz da grande razão... Por isso, parece muito razoável que a fé preceda a razão... É a razão que nos persuade de que a fé deve preceder uma certa grande razão; por isso, por mínima que seja, essa primeira razão é prévia à fé.”

 

2. Reciprocidade entre as funções da razão e da fé

Por ter experimentado a sua eficácia na conquista de verdades essenciais á autêntica sabedoria do espírito – Deus e o homem, Deus encontrado em mim, acima de mim -, Agostinho proõe o Crede ut intelligas como método mais adequado a actual condição humana na aquisição da verdade em geral, mas sobretudo no domínio da verdade sobrenatural.

Contudo, esta precedência metodológica da fé sobre a razão é, no mínimo, muito razoável, como vimos. Isto quer dizer que a racionalidade permeia todos os actos autenticamente humanos. Se a autoridade exige fé e prepara o homem para o exercício correcto e expedito da razão, a razão, por sua vez, conduz à compreensão e ao conhecimento daquilo em que se acredita, numa permanente circularidade de mútua e crescente potenciação. Desde o início que a razão presta assistência a todo este processo, a começar pela autoridade, que nunca deixa sozinha e desamparada - quamquam neque auctoritatem ratio penitus deserit -, pois é ela que diz em quem se deve acreditar - cum consideratur cui sit credendum.

Por outro lado, a verdade conhecida com evidência reveste-se de autoridade suprema, - et certe summa est ipsius jam cognitae atque perspicuae veritatis auctoritas. A mesma doutrina é defendida no Sermão 43. Depois de ter insistido em que é necessário acreditar para entender - nisi credideritis non intelligetis (Is. 7,9), Agostinho reconhece a prioridade da razão, como expressão de bom senso natural, a conferir razoabilidade à fé, de modo que são verdadeiras e sem contradição as duas formas que utiliza: crede ut intelligas e intellige ut credas. A aparente contradição resolve-a Agostinho facilmente, acrescentando a cada uma das diferentes expressões de finalidade o seu correspondente objectivo.

A versão mais precisa e completa será então: intellige ut credas (verbum meum) e crede ut intelligas (verbum Dei). Nesta fórmula lapidar, que exprime correcta e integralmente o método agostiniano, o intellige da primeira parte parece aludir às reflexões da Carta a Consêncio 7,9 sobre as razões ou motivos de credibilidade que precedem a fé, e a expressão ut credas designa a convicção ou confiança com que se adere a essas mesmas razões (fides qua), ao passo que as mesmas expressões da segunda parte referem-se mais directamente, o crede, ao conjunto das verdades reveladas (fides quae), e o ut intelligas, a um entendimento maior ou superior à inteligência meramente natural. Observa-se, deste modo, entre as duas partes uma consequencialidade lógica e estrutural de mútua ou recíproca potenciação, a convergir numa única e mesma finalidade cumulativa - a de conhecer definitivamente aquilo em que por fé se acredita.

O caminho para a verdade vital não é vencido instantaneamente pelo espírito, mas é um lento progredir, em sucessivas aproximações, mediante todos os meios de conhecer: fé e razão, razão prévia que permeia de racionalidade todos os estádios do crer até chegar ao exercício científico (filosófico e teológico) na compreensão das verdades reveladas.

A fé é certamente um conhecimento, mas um conhecimento muito imperfeito. Ora nós desejamos conhecer e compreender aquilo em que acreditamos. Esta é a vida eterna, como ensinou Jesus Cristo (João 17,3): que te conheçam a ti único e verdadeiro Deus e aquele que enviaste, Jesus Cristo.

E se no tocante às verdades naturais é eventualmente possível que o entender (intelligere) termine por absorver ou exaurir por completo a fé ou autoridade (o credere) daqueles que ensinam, por desnecessária, já o mesmo se não pode dizer quanto aos mistérios revelados, sempre excedentes em relação à capacidade da razão natural.

O entendimento possessivo daquilo que inicialmente começou por ser aceite apenas por fé só escatologicamente atingirá a sua plenitude, portanto, na outra vida, na visão face a face da vida eterna ou eterno conhecimento (João, 17,3). Acreditamos para conhecer e não: conhecemos para acreditar. Corrido o véu do mistério que é Deus, tornar-se-á também luminoso o mistério do homem no seu núcleo mais íntimo, pois conhecer-nos-emos como Ele nos conhece. Vendo Deus como Ele se vê, também nos veremos como Ele nos vê - estádio último e terminal, no qual se consumam, fundindo-se, o noverim me e o noverim te na paz da felicidade eterna, que é a Visão do «Sábado» sem fim.

 

Perfil: António Marujo (in Religionline)
Texto "Razão e fé no pensamento de Santo Agostinho": Manuel da Costa Freitas (in Didaskalia, fasc. 1 e 2 (1999))
20.03.12

Padre Manuel da Costa Freitas



















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