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Espiritualidade

Deixemos que a Semana Santa nos santifique na contemplação de Jesus

Começamos, irmãos e irmãs, a Semana Santa de 2008. Muito melhor dizendo, deixamos que o Espírito nos santifique nela, dos Ramos à Páscoa. E que nos santifique unindo-nos mais, na contemplação e na vida, aos sentimentos de Cristo Jesus, o Santo de Deus.

Assim dito, poderia parecer-nos demasiado formal e distante; mais para estudo do que para vida. Mas, olhando isto mesmo que fazemos agora, revelar-se-á decerto muito existencial e concreto, na assembleia que integramos e na verdade que já somos.

– Pois, o que sucede connosco, com cada um de nós aqui presentes, nesta catedral, em Domingo de Ramos? Sucede o que a outros olhos seria completamente inverosímil, senão absurdo. Sucede que um conjunto diversificado de pessoas aqui vieram, tomaram ramos e aclamaram alguém, dizendo «Hossana ao Filho de David! Bendito O que vem em nome do Senhor! Hossana nas alturas!» E que assim entraram no templo, para ouvir um antigo relato de há vinte séculos, falando de um homem que foi preso e julgado, condenado e morto… E sucede mais, muito mais; a saber, que os aqui presentes se integram num enorme número que, por esse Mundo além, fizeram ou farão o mesmo, na diversidade das línguas e na unanimidade dos corações!

E sucede isto mesmo num Mundo vertiginoso, em que os acontecimentos já não podem ser marcantes, porque se diluem rapidamente na precipitação dos seguintes: morre hoje um homem – ou muitos mais que fossem – por acidente, doença ou crime; injustiça-se alguém ou um país inteiro… Ainda haverá gente, no dia a seguir, para a cerimónia fúnebre; menos gente, passado um mês; menos, muito menos, passado um ano, para algum sufrágio ou romagem. Se ganhou significado, pode até comemorar-se, mas já mais pelo significado do que pelo protagonista.

Bem sabemos que é assim; e que numa sociedade ultrapassada pela rapidez e desmemoriada pela insignificância, já é muito difícil perpetuar-se um acontecimento fundador, trágico ou glorioso que seja.

Melhor sabemos, porém, o que é mais imediato e experimentado, ou seja, que estamos realmente aqui, vindos de mais perto ou de mais longe, sejamos mais velhos ou mais novos, estejamos mais contentes ou mais tristes, por nós ou por outros. Estamos aqui, revivendo um acontecimento bimilenar, e não apenas «como se estivéssemos lá», porque, na verdade, é o acontecimento que está cá: «Ele está no meio de nós!»

– Como procurar milagres, se o próprio milagre já nos encontrou? Em toda a vida da Igreja, em cada celebração litúrgica, experimentamos a presença real de Cristo, que nos transforma, a nós que o recebemos, em seu «corpo» no Mundo. Por isso acabamos tão idênticos a Ele e uns aos outros, sem que isso signifique apagamento da variedade, antes potenciação dela, na reverberação da mesma luz.

– Que luz? Esta mesma que, para nós, resplandece na cruz. E não numa cruz meramente «simbólica», no sentido fraco do termo. Da cruz verdadeira e absolutamente real de Cristo Jesus. Absolutamente real, porque ali foi erguida e bem vista, naquele dia do Gólgota. Absolutamente real, porque assim a indicava o letreiro, como trono do «rei dos judeus». Absolutamente real, porque nos faz entender por fim a realidade das coisas, que é unicamente a da caridade de Deus: como se realizou em Cristo, como se deve realizar em nós.

Realismo novo, este que só o Espírito evidencia, de Cristo para nós. Novo e novíssimo – quer dizer, final – porque não é espontâneo nem meramente natural. Muito pelo contrário, alcança-se apenas por graça e conversão, ou seja, por ação divina, humanamente acolhida. Celebrar a Semana Santa, como a iniciamos agora, é realismo novo, que só os cristãos sabem, não como privilégio mas como encargo, para o testemunharem a todos.

Mostra-nos que o Mundo tem um centro, a história humana consistência, a vida e a morte um sentido. Mas tudo tão novo, na verdade. Tão novo, que nos interpela sempre, a nós mesmos, mais velhos ou mais novos, mas sempre herdeiros de muita «velhice» do Mundo.

Vale aqui recordar o episódio de Nicodemos, quando «Jesus lhe declarou: “Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer do Alto não pode ver o Reino de Deus.” Perguntou-lhe Nicodemos: “Como pode um homem nascer, sendo velho? […]” Jesus respondeu-lhe: “Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus”» (Jo 3-5).

Eis a razão de estarmos aqui: o Espírito Santo iluminou-nos para a verdade das coisas, que está definitivamente na cruz de Cristo, trono do seu reino, onde reinar é servir e até ao fim. Serviço que significa dar a vida; e a que Cristo nos oferece na cruz, vindo do Pai, só pode ser eterna. Comparando-se com a serpente de bronze que Moisés erguera no deserto – para que, olhando-a, o povo recuperasse saúde e vida –, diz também Jesus, nesse episódio de Nicodemos: «Assim como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do Homem seja erguido ao alto, a fim de que todo o que crê nele tenha a vida eterna» (Jo 3, 14-15).

– E nós, irmãos e irmãs, nós aqui reunidos a iniciar esta santíssima semana, sabemos estas coisas! Melhor diríamos que elas nos sabem a nós, pois vão tomando conta das nossas vidas, dando realismo cristão aos sentimentos e às atitudes, salvando-nos na caridade, implantando-nos num reino eterno e consistente.

Nunca é de mais acentuar o contraste, evidenciado à luz do Espírito. Não somos apenas nós, os circunstantes, por estarmos aqui enquanto outros dormem ou se distraem, coisas aliás compreensíveis e correntes. É uma multidão, por esse Mundo além, que percebe que a celebração «dos ramos» é muito mais do que um ornamento primaveril e auspicioso, de contentar e levar para casa. É uma multidão que, no realismo seguro da caridade cristã, já entoa o cântico final que lhe vai no coração e acalenta a vida.

É uma multidão – a nossa! – que, olhando a cruz da vida à luz da de Cristo, sabe que, precisamente na entrega diária ao serviço de Deus e do próximo, fulgura já a última luz da bem-aventurança. Por esta ordem, comezinha e celeste: a fidelidade diária, persistindo sempre; a cruz de Cristo, em que Ele, dando a vida, venceu a morte; a cruz de Cristo nas mãos do Pai e envolta em Espírito irradiante. Como o trono rodeado de seres vivos e anciãos, que João entrevia assim: «Depois olhei e vi no meio do trono […] um Cordeiro. Estava de pé, mas parecia ter sido imolado […]. E cantavam[-lhe] um cântico novo, dizendo: “Tu és digno de receber o livro e de abrir os selos; porque foste morto e, com teu sangue, resgataste para Deus homens de todas as tribos, línguas, povos e nações; e fizestes deles um reino de sacerdotes para o nosso Deus; e reinarão sobre a terra”» (Ap 6, 6ss).

Realismo cristão, em Domingo de Ramos de 2008… – Quem poderia dizer senão o Espírito, ao vidente do Apocalipse, naquele final do século I, quando os cristãos eram tão poucos e tão perseguidos, quem poderia dizer senão o Espírito, que o Cordeiro vencera e venceria nos seus, acabando por convencer o Mundo inteiro?! Mas eles já sabiam, os cristãos da altura; e nós também sabemos, os cristãos de agora. Por isso inauguramos a Semana Santa em torno da cruz e havemos de concluí-la na luz fulgurante do Crucificado – Ressuscitado!

Sabemos, irmãos e irmãs; como o saberemos – saborearemos – ainda melhor, no decurso destes dias plenos e santíssimos, culminando no Tríduo Pascal. Mas com a consciência advertida de que só a conformidade interior e prática com os sentimentos de Cristo nos permitirá entrever a sua glória como nosso futuro. Aqui se cumpre finalmente a exortação de Jesus aos primeiros discípulos que o queriam conhecer: «Vinde e vereis!» (Jo 1, 39). Ainda quando este convite signifique realmente ficar onde se está, na fidelidade aos compromissos assumidos, em coerência de fé, esperança e caridade comprovadas.

No relato evangélico que escutámos, São Mateus rodeia a morte de Cristo de todos os sinais indicativos do fim de um mundo e começo de outro. Ouvimo-lo: «E Jesus, clamando outra vez com voz forte, expirou. Então, o véu do templo rasgou-se em duas partes, de alto a baixo; a terra tremeu e as rochas fenderam-se. Abriram-se os túmulos, e muitos dos corpos dos santos que tinham morrido ressuscitaram; e, saindo do sepulcro, depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos. Entretanto, o centurião e os que com ele guardavam Jesus, ao verem o tremor de terra e o que estava a acontecer, ficaram aterrados e disseram: “Este era verdadeiramente Filho de Deus”» (Mt 27, 50-54).

Isso sabemos nós e nos traz aqui: Cristo é o Filho de Deus, que na cruz e no Espírito, nos oferece a comunhão com o Pai, a filiação divina. No mesmo Espírito, na mesma cruz, na vida de cada um e de cada dia, repleta da sua caridade e graça. Mas não ficamos aterrados como o centurião, porque conhecemos por experiência feliz o que seja rasgar-se o véu do templo, uma vez que Deus está patente na humanidade de Cristo; sabemos o que é dissolver-se o mundo velho, quando o «homem novo» recria a terra e as estruturas dela, sociais e políticas, culturais e cívicas; sabemos o que é sair dos túmulos do egoísmo, da opressão e de todas as mortes. E sabemos também que as nossas cidades estão à espera de que muitos ressuscitados em Cristo – todos os batizados o começam a ser! – as preencham de vida nova, solidária e pacificadora.

Sabemos, confessamos e celebramos. No início desta Semana, maior do que o tempo todo, estamos aqui nós todos, em torno da cruz do Senhor, plenos de realismo e de esperança. E voltamos a rezar a coleta desta Missa: «Fazei – ó Deus – que sigamos os ensinamentos da paixão [de Cristo], para merecermos tomar parte na glória da ressurreição!»

 

D. Manuel Clemente
Bispo do Porto
Sé do Porto, 10.03.2008
In Um só propósito, ed. Pedra Angular
08.04.09

Imagem
Entrada de Jesus em Jerusalém (det.)
Pietro Lorenzetti (c. 1321)


























































































































































 

 

 

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