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Poesia

Contributos para a leitura de «A Faca não Corta o Fogo» de Herberto Helder

O livro A faca não corta o fogo: súmula & inédita (2008) de Herberto Helder é formado por uma primeira parte em tudo semelhante a Ou o poema contínuo: súmula (Helder 2001), excetuando o primeiro poema de Cinco canções lacunares e a totalidade de Os brancos arquipélagos (cf. Helder 1996: 295-296 e 311-317; Helder 2008: 48-58). A segunda parte do livro publicado em 2008 a que correspondem os poemas inéditos (Helder 2008: 133-207) inclui um primeiro poema constituído por um único verso retirado de Lugar (Helder 1996: 123) e ainda um poema publicado em 2001.

Passados três meses e meio, a mesma editora, Assírio & Alvim, publica Ofício cantante: poesia completa (2009), retomando “o título escolhido para a primeira publicação, em 1967, de poemas reunidos do autor” (2009: 5). Nesta reedição da obra de Herberto Helder, encontramos o seu último livro A faca não corta o fogo (2009: 533-618), com mais onze novos poemas intercalados, ao longo das oitenta e cinco páginas, e breves alterações, algumas das quais referiremos.

No verso da página que apresenta o título A faca não corta o fogo, podemos ler o provérbio grego “Não se pode cortar o fogo com uma faca” (2009: 534) que terá originado o título do livro.

Os poemas iniciais reforçam a relação com a beleza, ao perspectivá-la na imagem da mãe, donde tudo brota desde o princípio, e representam a pedra de toque dos diversos momentos até ao final do livro. A função unificadora da imagem materna, a potência, a energia e o amadurecimento que concedem ao corpo do poeta reforçam os sentidos possíveis da poesia de Herberto Helder: “mãe, / que a tua mão inseparavelmente amadureça / segundo as redacções de Deus, / o autor improvável mais próximo que ternos” (536), a mesma mãe “interpreta com intuição e intuito no mesmo comprimento de onda, / [...] / lavra a fio exímio, salga, limpa, muda, move, inventa” (536). A faca não corta o fogo, porque este elemento primordial eleva-se da terra-mãe no ar, enquanto inspiração, fundada radicalmente na realidade mais profunda do corpo e no excesso das suas entranhas. A potência da criação chega à língua, ascendendo dos espaços internos do corpo, e realiza-se num diálogo com as vozes do mundo, num “extrerno exercício de beleza”.

 

A pluralidade das vozes na língua do poeta

As vozes de povos de culturas ancestrais e escritores de diversas línguas sempre foram, ao longo da obra do poeta, uma fonte essencial, a que recorreu não só para alimentar as imagens da sua poesia, mas também para reforçar .a essência da palavra, enquanto entidade propiciadora de sonoridades e sentidos originais. Recordem-se O bebedor nocturno (1996: 159-241), Húmus (1996: 279-292) e os três livros de 1997 Ouolof, Poemas ameríndios e Doze nós numa corda. Não é por isso de estranhar neste conjunto de poemas a presença de vozes diversas, num diálogo promissor, situado entre a comunhão e a ironia. Desde os hinos litúrgicos e os excertos da Bíblia, passando pela poesia trovadoresca portuguesa e provençal, pela poesia de Luís de Camões e terminando com a intertextualidade homo-autoral, visita ainda a sonoridade e a construção típica da linguagem oral brasileira, num percurso concentrado no fenómeno da língua quase que apreciada no seu sentido mais prometeico e dionisíaco, de sobrevivência ou realização possível de um espírito inquieto que não encontra outra realização e outro sentido para além da palavra dita e rebolada fisicamente pelo corpo.

O diálogo com temas religiosos, já diversas vezes desenvolvido e estudado na obra de Herberto Helder (recorde-se, por exemplo Os selos e a sua relação intertextual com o Apocalipse (cf. Silva 2000; 2007)), torna-se mais uma vez evidente no conjunto dos poemas que agora lemos. Quando o poeta inicia um texto por “gloria in excelsis” (587) está parodisticamente a referir-se à glória. A altura circunscreve-se ao céu do corpo, a glória não estará para lá da “minha língua na tua língua” (587) e as alturas ficam-se pela “ponta com ponta tocando-se dentro da boca” (588); o poeta termina o poema com “a minha língua na tua língua em todos os sentidos sagrados e / profanos, / saliva, muita, e temperatura animal” (589). Gloria in excelsis Deo, um hino de louvor à Santíssima Trindade, dá azo a uma perspetiva bem distinta do texto litúrgico ao desfocar a elevação para o espaço interior e ao concentrar o ato criativo na “temperatura animal", entre o sentido profano e sagrado.

São diversas as sonoridades bíblicas ao longo da poesia de Herberto Helder. Do Cântico dos cânticos encontramos ecos sugestivos ao longo de todo um poema (2009: 546-548). Este texto, que não se encontra na edição de 2008, faz lembrar os diálogos entre os esposos da Bíblia: “belo belo é o meu amado correndo pelas colinas como um cervo” (546).
A língua assume, num outro poema, uma renovada centralidade, sendo para o efeito recordada uma passagem bíblica da paixão e morte de Jesus: “Eli, Eli, lamma sabacthani” (Mt 27: 46; 2009: 582) (meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?). No entanto, de imediato dilui a empatia com a pergunta que formula: “porque me abandonaste entre os semáforos da gramática [...]” (582). O Verbo, a língua, feito carne, com o nascimento de Jesus, entrega-se depois à morte por crucifixação: “a língua que me atravessa, e morre” (582). Impõe-se o sacrifício do Filho de Deus para que a humanidade seja redimida: o filho abandonado aos seus algozes ressuscita ao terceiro dia. Os “semáforos da gramática”, porém, representam um obstáculo para a sobrevivência, em estado bárbaro, do verbo-língua na terra dos homens. A relação com a narrativa bíblica da paixão de Cristo continua nos versos seguintes: "a terra tremeu e as rochas fenderam-se»”(Mt 27: 51) e, em Helder, "o céu retirou-se como um livro que se enrola: / e todos os montes e ilhas se moveram dos seus lugares” (582).

O aproveitamento do acontecimento bíblico da crucifixação transmite ao ato criativo uma aura que, por não se afigurar irónica, sugere uma grandeza que se inscreve no âmbito do sacrifício sagrado. No entanto, enquanto que Cristo ressuscita depois da crucifixação, a morte, na sequência do poema herbertiano, assume-se sem redenção, obscurece-se na palavra poética, até porque "é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha / do que uma linha escrita” (582). Aqui, com aproximações evidentes a uma passagem do Evangelho de S. Marcos onde se lê que "É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus” (Mar 10: 25). A linha escrita, metáfora de linha/fio, não passa pelo fundo da agulha e por isso é-lhe negada a vida eterna, porque o verbo/filho vive morrendo e nessa disponibilidade total de entrega diz o poeta: “aprendi a morrer, / e porque estou morrendo aprendo / a unidade do mundo” (582). Só a disponibilidade absoluta, a redução da identidade pessoal, a dissolução do evento particular no universo da língua de tantos utilizadores permitirá a unidade do mundo.

Ainda no mesmo poema, realce-se o diálogo com os versos finais da Canção IX de Luís de Camões: 2Assim vivo; e se alguém te perguntasse, / Canção, como não mouro, / podes-lhe responder que porque mouro2 (Camões 1984: 470); em Helder: "e tu, Canção, se alguém te perguntasse como não morro, / responde-lhe que porque / morro” (582-583). Ao contrário de Camões que lamenta o sofrimento em que vive e recorda a amada distante, Helder concentra e eleva o acontecimento da morte à realização de um sacrifício ou emulação dos corpos do poeta e da língua, que se indiferenciam, já que "estou a morrer a língua que não é curda nem inglesa, / a morrê-la ao rés das unhas e da boca” (583).

Camões é ainda visitado noutros poemas, através de versos por demais conhecidos. A acompanhar os sons de Haendel e de Bach (cf. 570); este segundo músico é referido por diversas vezes - cf. Helder 1994a: 11, 156, 158, 160), o poeta pede que lhe leiam "o curso de sôbolos rios que vão2 (570; cf Camões 1984: 91) ou, noutro poema, recorda “meu tão certo secretário2 (599; Camões 1984: 471) da Canção X de Camões. Nos dois momentos, se é reforçada a necessidade de um convívio de vozes com aqueles que comungam uma ansiedade e um estado de busca, torna-se evidente a relação de aproximação a Camões, como personalidade capaz de recriar a língua.

Talvez deva, porém, o leitor pertencer a um outro grupo, dado que, como confessa o poeta, "falo para outras pessoas, / falo em nome de outra ferida, outra / dor, outra interpretação do mundo, outro amor do mundo, / outro tremor” (578-579). Reunidas as vozes, concitados os fragmentos, impõe-se sempre um novo caminho, "mexendo os dedos nas costuras de sangue entre as placas do cabelo rude, / rútilo cabelo e o sangue que suporta tanta rutilação, tanta / beltà, beauty, que beleza!” (579), e no caminho "através da floresta devorada, / [...] já desapareci como quem se abisma / num espaço de hélio e labaredas, / eu próprio atravesso o incêndio imitando uma floresta” (579). Assim, o percurso faz-se no ensejo da beleza que não está nunca onde se procura e, por entre vozes depuradas pelo fogo que a faca não corta, se vão construindo os passos de uma língua, "nas lides de ar e fogo, / edoi lelia doura” (537).

 

O Ato poético e a língua

Herberto Helder, ao longo dos poemas da Faca não corta o fogo, concede uma atenção especial à língua. A língua será, assim, uma entidade a quem o poeta se entrega intensamente, de quem depende, mas também contra quem se revolta, quando reconhece que as regras perturbam a expressão dessa relação visceral. Vê a língua como entidade que lhe é interior, procura entender e explicar a intensidade corporal que brota do ato criativo pessoal.

Referimos diálogos com diversas vozes capazes de moldar a língua a uma vontade dominadora, já que todo o ato criativo implica uma rutura, uma certa atitude analfabeta, em sentido metafórico, um desconhecimento propositado. Voz experiente em lidar com a matéria bruta e informe é a do canteiro com quem o poeta força o diálogo para que lhe seja possível verbalizar o sentido e o objeto de busca da poesia.

Ao interrogar o moço canteiro,

“[...] ele diz que não lavra só uma pedra
?e que fazes en ao na or em as coisas entre no e laço?
faço a beleza ?que beleza?
faço-a comum, manual, analfabeta,
mas não fecho só um nó nem abro só um laço,
com o grosso movimento das riscas do analfabeto da gente,
eu faço numa pedra a catedral inteira” (572 )

No tratamento da pedra, o canteiro não necessita de teorias, impõe na pedra que trabalha a sua radical ligação à matéria, sem intermediários, sem ruídos. A voz que brota da massa informe desponta natural; do estado bruto impõe-se inteira essa voz, sendo a beleza analfabeta criada à custa do ato analfabeto, com riscos analfabetos exercidos, para que surja “numa pedra a catedral inteira”. (572). Realça-se o apego à matéria bruta e a relação profundamente religiosa (no sentido do verbo religare) ao fazer no (e não a partir do) elemento matricial a expressão da totalidade e da beleza.

A arte poética encontra-se associada ao título do livro, elemento que ressurge com renovado interesse num poema central, ao aproximar e distinguir a língua dos elementos primordiais, fogo e água: “a faca não corta o fogo, / não me corta o sangue escrito, / não corta a água, / e quem não queria uma língua dentro da própria língua?” (572). A criação de um núcleo brilhante e duro, denso e obscuro, seguindo regras pessoais, dentro e para além das regras da gramática, representaria uma língua própria dentro da língua. A combustão verbal ou a densidade turbulenta e vulcânica, conseguida à custa da aproximação de vocábulos que se repelem, são o fogo ou o seu "sangue escrito” (572). A faca não manipula estas imagens de densidade sanguínea e visceral que se cruzam de forma a criar a unidade e a harmonia.

Para além da combinação entre os fenómenos do fogo e a pouca água, vemos no poema seguinte também a aproximação do fogo ao ar, numa espécie de reescrita ou íntertextualidade homo-autoral do poema anterior: "no mundo há poucos fenómenos do fogo, / ar há pouco, / mas quem não queria criar uma língua dentro da própria língua? / eu sim queria” (574). Da aproximação dos "elementos leves ar e fogo” (580) derivará uma combustão intensa e permanente, profunda, oculta e aérea "e soube então que ar e fogo se mantiham um ao outro mas, / em vez de se abrirem, / se fechavam, e estremeci das músicas” (575), construindo-se assim uma poesia direcionada para o silêncio.
Aquela língua “incalculável”e “absoluta” fará não só com que jamais a faca corte o fogo, mas permitirá também que o fogo corte e a água seja cortada. Daquela língua brotará a poesia, porque “la poésie, c'est quand le quotidien devient extraordinaire” (573). O exercício violento praticado sobre a língua proporcionará um primeiro passo no sentido de transformar o quotidiano em extraordinário, será uma vocação criminosa a do poeta já que deixa de ter como objetivo manter uma relação mimética com a realidade, mas deformar, corrigir o espaço banalizado e a beleza estandardizada em perturbação, em crime, em algo que vá para lá da ordem comum, uma visão extra-ordinária (“extraordínaíre” ). Como afirma o poeta, “a beleza é sim incompreensível, / é terrível, já se sabia pelo menos desde o Velho Testamento, / a beleza quando avança terrível como um exército, / e eu trabalho quanto posso pela sua violência” (549) ou ainda como refere, noutra circunstância: "Os poemas são apenas equivalências do crime, ou são então, eles mesmos, um ato explosivo no próprio centro do mundo” (Helder 1995: 40). A vocação do poeta é a do alquimista que trabalha o quotidiano para transmutar o comum dos corpos em ouro:
“[...] eu mexo com a colher de pau
imemorialmente
o milagre quotidiano da transmutação dos corpos:
porque é glorioso trazer, de minas da terra, e de
não sei que direitos e avêssos,
os elementos, e trabalhá-los, e a poder de
plantas e óleos,
atingir a unidade [...]” (568)

A pedra trabalhada pelo canteiro (cf. 571-572) e “o milagre quotidiano da transmutação dos corpos” são metáforas da ação do poeta sobre a língua. A partir da pedra e dos elementos primordiais, qual matéria-prima do poeta, procura-se o extraordinário do quotidiano, a beleza, a unidade, a catedral toda. A construção do extraordinário da língua é conseguida à custa do empenho corporal, da respiração do ar das palavras, da rarefação dos elementos no verso, da eliminação dos elos que ligam as coisas, da continuidade do sentido procurada em cada outra palavra: "se alguém respirasse e cantasse numa palavra, / e súbito fosse respirado por ela, fosse / cantado assim / de puro júbilo ou, quem sabe? de medo puro, / poria no termo o selo de si mesmo?” (600). A poesia em Herberto Helder não fica pela rama das coisas, cria com tudo o que o cerca uma relação violenta de paixão, de entrega e de perda. A palavra cantada pelo poeta dá lugar à palavra que canta o poeta; o canto passa a conter a origem de si, fechando-se o círculo sobre a palavra que é criação e criador, fogo e água, ar e beleza.

A composição linear da imagem poética e da frase é conseguida pela combinação de elementos divergentes; entende-se à custa da seleção e redução dos seus atributos e não será possível erigir um sentido da frase se quisermos avançar com todos eles; o segredo estará sempre na combinação possível dos atributos possíveis, de forma a que se eleve a frágil torre de Babel construída com base em desentendimentos e desencontros semânticos, "oh maravilha da frase corrigida pelos erros, /[...] / a frase rítmica e restrita que não pode ser posta em língua, / elíptica, / a frase de que sou filho" (602).A frase de que o poeta é filho não pode ser formulada pela língua comum, a frase que diz o criador, di-lo à custa dos breves sentidos e de muitos silêncios, no entanto, sempre na procura do poema contínuo.

O que não pode ser posto em língua comum está, no entanto, imbuído de paixão, elemento atrás realçado e reforçado num dos últimos poemas do livro.

“li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
[...]
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
[...]
?e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-da-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse
a paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega" (612-614).

O estilo narrativo do excerto assume-se como uma autoanálise, a justificação para o rumo assumido e o esclarecimento sobre os passos a dar. Nada disso quebra com opções do passado, consolidam-se os critérios que dão sentido ao poema contínuo. A desmesura, o excesso, a rutura, o erro, o caos, a barbárie, a morte, o crime, a obscuridade são imagens da paixão na poesia de Herberto Helder. As regras, o consentimento, a unanimidade, a homogeneidade, o alinhamento, as modas, os grupos são elementos mornos, não permitem uma respiração carnívora e criminosa. Prefere o excesso da música aos temperados racionais, prefere as "faíscas estilísticas", o “ríspído”, o “rútilo”, o “revulsivo”, a “frase corrigida pelos erros” (602), prefere “uma canção curtida pelas cicatrizes” (613). Esta é a confessada paixão de Herberto Helder e o pathos da tragédia grega, sendo que, como afirma Hegel, “nada de grande se realiza no mundo sem paixões” (Hegel cit. por Meyer 1994a: 231), só por ela acede à unidade, à harmonia, à totalidade, ao ouro.

 

A imagem do sagrado no espaço da palavra

Relacionada com a imagem do sagrado está a paixão como estado de alma nos limites da experiência humana e em Herberto Helder jamais dissociada da atividade criadora, como tivemos oportunidade de referir. Tal como a entende o poeta, é uma experiência que se afasta das circunstâncias comuns, provocando vivências e representações únicas, experiências que se apartam da rotina diária: “uma palavra, uma só, regula / ininterruptamente tudo” (600), dispõe “a vida inteira para fundar um poema” (611), concebe a «frase corrigida pelos erros” (602), entende as “pronúncias bárbaras / dos nós da língua” (587), repudia os “semáforos da gramática” (582).

A paixão, mais do que relacionada com a imagem do sagrado, pode assumir-se como uma vivência do sagrado. A embriaguez da paixão, a exaltação interior, o descontrolo e simultaneamente a sensação de que se é capaz de decidir, a bipolaridade na descrição de situações “de puro júbilo ou, quem sabe? de medo puro” (600) proporcionam simultaneamente a sensação de felicidade e de terror e ambas resultam da aproximação ao sagrado.

“isto que às vezes me confere o sagrado, quero eu
dizer: paixão: tirar,
pôr, mudar uma palavra, ou melhor: ficar certo
com a vírgula no meio da luz,
dividindo,
erguendo-me do embrulho da carne obsessiva:
que eu habite durante uma espécie de eternidade
o clarão – “(593)

O ato de trabalhar a palavra com esta disponibilidade, a capacidade sobre-humana de desferir um golpe fatal na palavra, eliminá-la ou escolhê-la; a consciência pelo mínimo pormenor da vírgula e a sua capacidade simbólica, a relação profunda, visceral, entre o corpo e o corpo da palavra, a iluminação do corpo pessoal, enquanto corpo do verso, pormenor luminoso de uma vírgula “no meio da luz” (593) são representações da paixão que indelevelmente marcam uma vida pelo meio das palavras. Todo este envolvimento, esta relação e indistinção passa a ser somente intensidade e energia, elevação inapreensível, libertação da massa corporal para “que eu habite durante uma espécie de eternidade / o clarão -.” (593).

Aquela atenção ao mínimo que concentra toda a energia dos sentidos proporciona um momento de estranheza, “uma espécie de eternidade”, um excesso de paixão. E, no entanto, não passa de um olhar "de viés” para “o outro lado das linhas”. Há como que uma necessidade radical de caminhar no sentido do sagrado, porém, verifica-se também uma certa descrença irónica nos utensílios que são utilizados para aceder a esse espaço que se nega.

“que não há nenhuma tecnologia paradisíaca,
mas com que estranheza se habita o mundo,
olhando de viés o outro lado das linhas,
onde se emaranha o nome profano que se inventa
como se fosse o inominável, movido,
oh inebriamento!
miraculosamente até
ao desastre da beleza” (605)

Mesmo que, em momentos de menor paixão, não seja possível incutir no “nome profano” algo para além da sua materialidade, não deixa de se reconhecer a "estranheza” com que "se habita o mundo”; mesmo que a palavra não seja capaz de nomear o "inominável", continua a ser possível olhar para o “outro lado das linhas”. Quando a língua não é suficientemente capaz de transmitir esses estados de alma, até porque não há “nenhuma tecnologia paradisíaca” ficamos pelo excesso de palavras como forma de encobrir o seu vazio: a emotividade balofa, “oh inebriamento! / miraculosamente”, redunda no “desastre da beleza”, porque se torna impossível olhar para o “nome profano” e entendê-lo como palavra viva.

Porém, como víamos atrás, a paixão acompanha o ato criativo e potencia o nome para o sentido enigmático do mundo, para o outro lado da realidade. Desse modo, através do nome o poeta acederá a um outro plano de conhecimento. Pela sua capacidade de afastamento da materialidade que se esgota em cada objeto, a linguagem livra-se dos acidentes e, depurada do circunstancialismo limitativo, sustém um contacto com a essência das coisas. A vocação do poeta é a de captar em estado puro a pura essência das coisas e daí o seu olhar recair não tanto sobre as coisas mas sobre o nome das coisas (já Aristóteles afirmava que “a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta, o particular” (Aristóteles: 1471b)).

A imagem do sagrado no espaço da palavra realiza-se no encontro com o extraordinário, com a beleza que é incompreensível e se distancia do quotidiano, porque essa procura-se para lá das pequenas realizações. Pelas vozes, pela língua pessoal acede o poeta àquele espaço que é o único que lhe interessa e dá sentido à procura pela palavra: "o único sentido, digo-te agora, é a beleza mesmo, / a tua, a proibida, entrar por mim adentro / e fazer uma grande luz agreste, de corpo e encontro, de ver a Deus se houvesse, luz terrestre, em mim, bicho vil e vicioso” (549). A beleza será o espaço de eternidade sentido e vivido no extraordinário do quotidiano, será, como referimos noutra ocasião, a realização da eternidade na imanência (2004). A intensidade da procura e a persistência das imagens saem reforçadas nos poemas com que o poeta abre e fecha A faca não corta o fogo, constituídos por um único verso cada, como que representando fulcros de energia, concentração de luz agreste, condensação de imagens que se impõem na busca de um sentido mais profundo. Por um lado a justificação da construção humana vinculada à beleza indefetível, realizada na língua corporal e por outro a consecução de um poema-palavra, a essencialidade e a brevidade da unidade, enquanto representação e transcrição do "poema do mundo”:

“até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza” (535)
“abrupto termo dito último pesado poema do mundo” (618)

Passaram 50 anos após a publicação do seu primeiro livro, O amor em visita  (1958, ed. Contraponto). Entre o primeiro livro e A faca não corta o fogo há o fio persistente de uma coerente valorização da palavra poética. O gosto pelo recurso a outras vozes é evidente nos longos e diversos “Poemas mudados para português”, para além do diálogo com variadas vozes da literatura. A vocação para cruzar a sua voz com outras vozes serve também para reforçar o universo da palavra e o papel da língua portuguesa. Neste contexto, o poeta procurou centralizar a definição da sua poética numa particular língua pessoal de forma a transformar o quotidiano em extraordinário. Igualmente fundamental na poesia de Herberto Helder é a energia vulcânica, a força das imagens intensas, a vocação pela origem e o gosto pela depuração das palavras e nessa perspetiva entendemos uma ambiência sagrada desde os seus primeiros poemas. Pelas palavras do poeta, vimos a paixão associada ao sagrado para depois encontrarmos de forma clara o percurso desenvolvido pelo ato poético e a sua relação com a visão depurada a que recorre, quando se escreve no poema.

A consistência das imagens, uma maior depuração na relação entre as palavras e uma densidade semântica cada vez mais perturbadora marcam definitivamente o sentido do percurso de Herberto Helder, durante meio século de criação poética.

 

Neste artigo não se incluiram as notas de rodapé, que podem ser consultadas na fonte.

 

João Amadeu Carvalho da Silva
Professor da Faculdade de Filosofia da UCP, Braga
In Brotéria, Abril 2009
15.05.09












































































































































































































































































































































































































































































 

 

 

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