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Frei Bento Domingues e o incómodo da coerência

Maria José Morgado, magistrada do Ministério Público, e Guilherme d'Oliveira Martins, presidente do Centro Nacional de Cultura e do Tribunal de Contas, e Luís Osório apresentam a 10 de dezembro, o livro "Frei Bento Domingues e o incómodo da coerência".

O volume de homenagem ao religioso e teólogo dominicano (ed. Paulinas), coordenado por Maria Julieta Mendes Dias e Paulo Mendes Pinto, contém depoimentos de figuras públicas, como Mário Soares, Maria Barroso e Clara Pinto Correia, de que adiantamos alguns excertos.

A obra é acompanhada por um CD com uma entrevista de frei Bento Domingues à TSF.

A sessão de lançamento realiza-se em Lisboa, na Universidade Lusófona (auditório Agostinho da Silva), às 18h30.

 

A Teologia de Frei Bento Domingues
Anselmo Borges

É para mim uma honra poder participar nesta homenagem a Frei Bento Domingues, meu amigo e mestre, que, ao longo da vida, foi deixando lições fundamentais: a liberdade cristã – «foi para a liberdade que Cristo nos libertou»; «onde está o espírito do Senhor, aí está a liberdade», escreveu São Paulo –, uma teologia que tem de ser encarnada, o combate pelos direitos humanos, a magnanimidade com os perseguidores, o despojamento em relação ao Poder, que conhece, mas ao qual nunca se colou, a alegria, aliada a uma ironia fina, uma generosidade sem limites. A minha dívida, a dívida da Igreja e dos portugueses para com Frei Bento Domingues é incomensurável.

O que aí fica é uma breve reflexão sobre a teologia de Frei Bento Domingues, e tem três momentos: o primeiro refere-se ao interesse pelo saber religioso no quadro dos interesses e impulsos humanos; o segundo debruça-se sobre a teologia da crónica, porque foi em crónicas que o pensamento de Frei Bento mais se exprimiu; o terceiro quer apresentar os eixos essenciais à volta dos quais gira sua a teologia. (…)

Com o eclipse de Deus, desaparece o sentido do mundo, que o homem «tenta em vão reencontrar me diante uma acumulação de racionalidade». O mundo hoje parece encontrar-se perante um facto decisivo e mesmo único: se, independentemente da sua resposta positiva ou negativa, o homem já não vir pura e simplesmente necessidade de colocar a questão de Deus, isso significa que, pela primeira vez na sua história, a humanidade sucumbe à imediatidade, a uma visão fragmentária do aqui e agora e «abdica da sua procura de sentido», escreveu o historiador Georges Minois. Infelizmente, pode ser o que realmente está a acontecer, como constatou já o marxista heterodoxo e ateu religioso Ernst Bloch, em diálogo com (…) Karl Rahner: «Está a concretizar-se o que Nietzsche profetizou para o século XX: Vamos ao encontro de uma época de terrível miséria. Com subprodução de transcendência.»

Frei Bento Domingues (…), se se tem mantido mais ligado à crónica, não é porque lhe faltasse talento para uma grande obra teológica sistemática. Motivam-no, no meu entender, outras razões. A principal – creio – é o receio de uma sistematicidade morta, um lógos que fizesse de Deus uma coisa – uma coisa que acabará por coisificar os seres humanos. Daí, a sua cautela. Há o perigo constante de os professores de teologia, na ânsia de cientificidade mediante o sistema fechado, transformarem Deus pura e simplesmente num cadáver. Foi esse cadáver que, nomeadamente, Nietzsche declarou mesmo cadáver. Aquele que fora uma criança piedosa e estudara teologia havia de proclamar publicamente em 1882, através de um louco, em A Gaia Ciência, a morte de Deus: «Deus morreu! Deus está morto! e fomos nós que o matámos!»

Que teologia é essa, a da crónica, senão teologia narrativa – talvez a única teologia autêntica –, embora no quadro dos princípios arquitectónicos enunciados? [Teologia do Reino, humana, crítica, ecumé nica, pacifista, aberta à salvação de todos e mística.] O tempo, na sua fragilidade e carácter efémero é habitado: o Verbo fez-se carne (fez-se tempo, na sua fragilidade). Mas o homem, que não foge ao tempo, transcende o tempo, e por isso espera. A última palavra sobre o mundo ainda não foi dita.

 

Depoimentos

António Marujo

Foi isso que aprendi a respeitar nele: alguém que preza essencialmente os valores pelos quais a sua consciência se move, sempre acima de uma instituição (...). E que essa consciência só obedece à fidelidade livremente procurada.

É essa atitude que leva frei Bento a ser constante na sua atitude fundamental: situar o Evangelho no meio da rua. Por isso, nada do que é humano lhe é estranho. Basta ver os temas das suas crónicas para perceber a liberdade do olhar arguto, crítico para com os poderes e as injustiças, compreensivo para com as pessoas. Pelas páginas do jornal passaram todos os grandes temas do mundo e do Cristianismo destas últimas duas décadas: dos fundamentalismos à ideia da «nova evangelização», da globalização à pobreza, dos marginalizados da sociedade aos marginalizados da Igreja Católica, da teologia à política.

A comoção atravessa também outros textos, como pudemos ler em evocações de pessoas tão diferentes como Sophia, Lourdes Pintasilgo ou Mário Figueirinhas, ou ainda outros nomes como Abel Varzim ou Joaquim Alves Correia. Nas suas crónicas, encontramos ainda a sugestão do que de novo se pensa na teologia contemporânea.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

Ao lermos a obra de frei Bento, ao encontrarmo-lo na vida, compreendemos que o seu inconformismo tem tudo menos facilidade ou consideração epidérmica. É difícil assumir, com todas as consequências, a vitalidade de Jesus Cristo como símbolo da abertura universal e não de uma qualquer exclusividade fechada. É preciso encontrar novos caminhos. Ir à vida e entender que o fenómeno religioso envolve o «re-legere», o re-ligare e o «re-ligere», na tripla acepção referida por Tomás de Aquino, ou seja, reler (no entendimento de Cícero), religar (na interpretação de Lactâncio) e reeleger (na expressão de Santo Agostinho). Em bom rigor, encontramos os três entendimentos, que pressupõem o encontro de todos e de cada um, sem privilégios nem excepções, articulando igualdade e diferença, liberdade e igualdade. Reler exige reflexão, religar obriga à coesão e reeleger determina o acto livre de escolher. (...)

O Abbé Pierre dizia: «Nunca uma criança deveria ouvir que não tem futuro; nenhum homem, nenhuma mulher deveriam estar a mais. Se hoje em dia há homens e mulheres a mais, é porque nos portamos como idiotas.» É isto verdadeiramente que está em causa. Uma cultura de paz tem de ser uma cultura de dignidade e de respeito. E daí a  necessidade de ouvir as pessoas, de ir ao encontro dos seus problemas e das suas angústias.

 

Isabel do Carmo

Nunca vi o Frei Bento ao lado dos ricos, nem o vi acompanhar poderosos. Vejo-o sim com os seus amigos e percebo que há fluxos de amizade nessas pessoas que o acompanham. Como também o vejo com representantes de outras religiões, com uma capacidade de ecumenismo notável. E se há coisa interessante no nosso país é saber que o frei Bento (católico), a Faranaz (muçulmana, ismaelita), o xeique Munir (muçulmano, sunita), o pastor Dimas (protestante), o Joshua Ruah (judeu), o Paulo Borges (budista) são capazes de conversar entre si e de conversarem perante os outros, em demonstração de tolerância e de sede de conhecimento. É uma riqueza que temos e da qual nós, o bando de agnósticos, podemos disfrutar. E juro que já vi o pastor Dimas desafiar o frei Bento a discutir sobre o mistério que levou Jesus a sair das aldeias e a ir-se meter em Jerusalém, para aí durar poucos dias até ser morto!

 

J.L. Saldanha Sanches

O bispo do Porto era uma figura distante, que Salazar conseguiu condenar ao exílio; frei Bento Domingues, uma figura omnipresente em todas aquelas pequenas brechas de luta dentro da legalidade que o regime se via obrigado a permitir. Lembro-me do frei Bento como testemunha quase profissional dos subversivos quando éramos julgados no Tribunal Plenário da Boa hora. Juridicamente, era uma testemunha abonatória, explicando a um tribunal muito céptico a qualidade humana dos acusados. Vale a pena recordar que não era isto que contava: pondo de lado esta delgada parra da forma jurídica que permitia a sua presença na barra, estava lá para dizer que, mesmo que não compartilhasse a nossa ideologia, estava ao nosso lado naquele momento difícil, deixando muito claro que aqueles julgamentos eram uma farsa e uma infâmia, e que nem toda a Igreja estava ao lado do regime ou fingia não ver o que se passava.

 

José Carlos Costa Marques

Mas foi a própria personalidade do frei Bento e a aura que irradiava da Ordem dos Dominicanos e já conhecida nos círculos a que aludi, que constituíram a principal diferença e permitiram ir mais longe na compreensão e inserção na efervescência conciliar. Aliás, uma exposição ilustrada sobre o Concílio foi mesmo um dos principais trabalhos que ocupava por essa ocasião o grupo da Juventude de Cristo Rei, feita à base de recortes de magazines ilustrados, papel de cenário e marcadores de feltro. Teólogos de fama como Yves Congar, já conhecido das traduções da Moraes, no seu Círculo do Humanismo Cristão, ou M. Chenu, tornavam-se agora personalidades próximas, quase familiares. Outras, menos conhecidas, mais audaciosas, foram uma autêntica revelação, como com as obras do também dominicano Jean Cardonnel, de cujo livro Deus é pobre, por indicação de frei Bento ao editor Mário Figueirinhas, cheguei a ser um dos dois tradutores (seria publicado em 1967).

Através do Frei Bento, conheci também algumas revistas, já não jornalísticas ou de divulgação como as que há pouco referi, mas espessas publicações de textos compactos e eruditos em matéria de eclesiologia, teologia e espiritualidade.

 

Maria Barroso

Uma das suas grandes preocupações é a de um mundo sem violência, um mundo de tolerância, de solidariedade e de paz. Por isso se interessa e promove o diálogo intercultural e inter-religioso, considerando que «esse diálogo é um imperativo para todos aqueles que procuram a paz». Aliás, «o diálogo entre as religiões e os caminhos da construção da paz» é a problemática de muitos dos seus textos.

Num dos seus magníficos artigos do Público, ao domingo, ele diz referindo-se à cultura da não violência: «A paz só poderá brotar de mundividências, ideias, valores, objectivos e critérios partilháveis. É preciso encontrar a forma de responsabilizar os povos e os seus dirigentes através de uma nova ética que envolva a convergência da pluralidade de cul turas e religiões de toda a humanidade. Em resumo: nenhuma nova ordem mundial é possível sem uma nova ética mundial.»

 

Miguel Oliveira da Silva

Conheci o frei Bento Domingues nos chamados encontros dos terceiros sábados, em que, pouco mais ou menos a partir de 1971, muitos dos católicos ditos «progressistas» da zona de Lisboa (e não só) se encontravam para reflectir sobre a situação do país e celebrar a liturgia de uma forma mais partilhada, participada. (…) Entre todos os participantes, avultava já a personalidade verdadeiramente provocadora e contagiante, na sua iconoclastia e permanente estímulo de reflexão, de frei Bento Domingues, com quem desde sempre me tuteei, não obstante os quase 20 anos que nos separam (na altura assim era, quase todos nos tutéavamos). De resto, muito melhor do que eu, já em 1966, Yves Congar, um dos maiores teólogos do Vaticano II e do século XX, se referia no seu diário (Mon Journal du Concile) às excepcionais e promissoras qualidades do nosso então jovem (com 32 anos) frei Bento, a propósito de um encontro havido em Espanha. (...)

Muitas vezes dou comigo a pensar como Frei Bento foi tão mal aproveitado pela intelectualidade católica deste país – da hierarquia da Igreja, à Universidade Católica Portuguesa, por exemplo. No fundo, talvez ele não possa ter outro percurso neste país: nunca poderia sido um institucional ou ocupar um lugar na hierarquia. E não só por alguns entenderem haver em frei Bento um tal ou qual excesso de iconoclastia (um quase incendiário sem vocação para bombeiro...), para alguns quase nas fronteiras da teologia da marginalidade, ou mesmo na marginalidade da teologia.

 

Epístola a Diogneto
Dimas de Almeida
Tradução dedicada a frei Bento

V

1. Com efeito, os cristãos não se distinguem das outras pessoas nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes.

2. Estejam onde estiverem, não habitam cidades peculiares, nem falam um dialecto estranho, nem vivem uma vida fora do comum.

3. Não foi através da imaginação ou dos devaneios de pessoas de mente inquisitiva que foram levados ao descobrimento desse seu ensino. Nem tão pouco professam, como alguns fazem, uma doutrina humana.

4. Habitam tanto cidades gregas quanto cidades bárbaras, segundo coube a cada um em sorte. E manifestam o carácter da sua própria cidadania de um modo maravilhoso, e reconhecidamente paradoxal, ao seguirem os costumes locais quer no vestuário, quer no que comem, quer nos outros aspectos das suas vidas.

5. Habitam nos seus respectivos países, mas fazem-no como forasteiros; participam em todas as coisas como cidadãos e suportam todas as coisas como se fossem estrangeiros. Cada país estrangeiro é uma pátria para eles, e cada pátria país estrangeiro.

6. Casam-se como toda a gente e têm filhos, mas não abandonam os recém-nascidos.

7. Partilham a mesa das refeições, mas não a cama de casados.

8. Estão presentes na carne, mas não vivem segundo a carne.

9. Vivem na terra mas têm a sua cidadania no céu.

10. Obedecem às leis vigentes, mas com o seu modo de viver superam as leis.

11. Amam a todos, mas por todos são perseguidos.

12. Ignoram-nos e, contudo, condenam-nos. Matam-nos, e com isso dão-lhes a vida.

13. São pobres e, no entanto, enriquecem a muitos. Têm falta de todas as coisas mas têm abundância de tudo.

14. São desonrados, mas na desonra são honrados. São caluniados, e, no entanto, declarados justos.

15. São aviltados e, contudo, bendizem. Violentados e honram.

16. Fazem o bem e são punidos como malfeitores. Ao serem punidos alegram-se como quem está a ser vivificado.

17. Pelos judeus são combatidos como estrangeiros; pelos gregos perseguidos. E aqueles que os odeiam não sabem como explicar o motivo do seu ódio.

VI

1. Digamo-lo em termos lapidares: o que a alma é no corpo, isso é o que os cristãos são no mundo.

2. A alma está disseminada por todos os membros do corpo, e os cristãos estão disseminados através das cidades do mundo.

3. A alma habita o corpo, mas não pertence ao corpo; os cristãos habitam o mundo, mas não pertencem ao mundo.

 

In Frei Bento Domingues e o incómodo da consciência, ed. Paulinas
03.12.12

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Capa

Frei Bento Domingues e
o incómodo da coerência

Coordenadores
Maria Julieta Mendes Dias
Paulo Mendes Pinto

Editora
Paulinas

Ano
2012

Páginas
528

Preço
18,00 €

ISBN
978-989-673-265-3

 

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