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Exposição

"Coincidência dos opostos"

Nas superfícies vemos surgir a profundidade: este é um dos traços que passa pela exposição "Coincidência dos opostos", patentes até 30 de dezembro na Galeria Silo, em Matosinhos.

João Sarmento, no quinto ano de formação na Companhia de Jesus, propõe-se refletir «sobre o problema da simultaneidade aparência/realidade, Interior/Exterior, forma/conteúdo», explica em texto enviado ao Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

Antes de entrar para os Jesuítas, João Sarmento frequentou a Escola Soares dos Reis, no curso de produção artística, e a Faculdade de Belas Artes do Porto.

«A minha ligação à produção de escultura e desenho tem vindo a manter-se (claro que de forma bem mais moderada por falta de tempo)», conta.

A mostra apresenta alguns dos «trabalhos recentes» criados «propositadamente» para a exposição», composta por mais de uma dezena de pinturas e desenhos, no piso superior da galeria, e uma instalação no piso inferior.

«Como fissura na cronologia, um corte na ação e inação, teatro dentro do teatro, dentro do desenho e do mundo, fazemos coincidir oposições, como quem entra ou sai da mesma porta, vamos do artifício à verdade de nós mesmo.»

A Galeria Silo, no piso 0 do NorteShopping, está aberta de segunda a sexta-feira das 12h00 às 20h00, e aos sábados e domingos das 12h00 às 22h00.

 

Texto da Folha de Sala

«De facto, o cenário deste mundo é passageiro» (1Cor 7, 31)

Os cenários são sempre o assumir de uma temporalidade efémera e uma corporeidade de aparências, de superfícies, de capas, de cascas. Diante destes, a experiência do «ver» (1) é um tato à distância sobre o epidérmico. Mas é só nesta aparência cinética que se dá à luz a entrada na realidade. Pode o mundo ser oco, ou fugaz, mas é o espaço onde coincidimos. (Não coincidência lida como acaso, mas antes, como na geometria, um estado de duas figuras geométricas que se sobrepõem. Imiscuem-se.)

Não me importa o problema filosófico da aparência e da realidade, ou a discussão do que é de facto verdade ao meu olhar. Importa-me o problema da minha – talvez nossa – falta de realidade interior, falta de um certo ímpeto em fazer mundos, abrir galerias internas na invisibilidade desses esconderijos. A irrealidade é ilusão. Fuga à necessidade de tangência do ponto, que não é outro senão o centro… o avesso do íntimo. Âmago de nós, como um fundo de um frasco de gargalo estreito, onde eu não chego por não caber a mão.

Por isso é que, ao “contrário do romance, que acompanha o ritmo largo da vida, a tragédia isola um momento concreto do devir humano – momento extraordinário em que se quebra a marcha normal da existência – e através desse momento, como através de uma janela rasgada sobre a noite do universo, se faz passar toda uma visão do mundo” (2) onde cada um se situa. Assim, impulsionado pelos artifícios artísticos, vejo-me planificado em palco. Conheço finalmente o toque desse fundo, fóssil de mim.

Certas personagens – como coro na antiga tragédia – devolvem-nos realidade interior quando, “encorajando, censurando, agindo, [fazem] de ator e de espectador, de protagonista e de porta-voz, tentando abrir, através da noite, uma clareira para a luz, através da floresta de contrários um caminho para a ação.” Deste modo, dão vida a “esse mundo de espectros, de bruxas, de espíritos da maldade, [que] possui existência real no teatro”. Estas personagens mostram o que “não se pode explicar como puro desdobramento das paixões humanas ou das leis naturais.” (3) Por isto, nós, como espectadores, queremos “que o mal irrompa no palco, que nos mostre nus, que se possível nos enfureça e que não tenha refúgio senão em nós.” (4)

Assim, a carne ou o nosso corpo é a grande coincidência entre o exterior e o interior, é uma grande película que amplifica e filtra, com finura e permeabilidade (como se todo o corpo fosse um tímpano). É nesta condição que nós representamos e reapresentamo-nos ao diário, desenho-de-luz do nosso quotidiano. Como presença e pertença da sociedade – “que é o denominador comum entre plateia e o placo” (5) – presenteamo-nos no dia a dia num happening, mas sempre em ensaio, sempre em leitura do nosso texto interno, enfim do nosso próprio drama.

Deste modo, é ao correr da cortina que se dá a coincidência dos opostos, a simbiose indivisível de intencionalidades e de intensidades. Permutas que oferecem um sentido operativo ao teatro, como lugar de inquirir a realidade interna bruta, como aliás, diz Hamlet:

“Tenho ouvido dizer que há criminosos que, ao assistirem a uma representação de teatro, ficam tão impressionados com o fascínio da ilusão que revelam imediatamente as suas culpas; porque apesar do homicídio não ter língua, é obrigado a falar por órgãos ainda mais prodigiosos.” (6)

Assim, assumo que a representação nada mais é que a “projeção no mundo sensível dos estados e das imagens que dele constituem as suas molas escondidas. Uma peça de teatro deve portanto ser o lugar onde o mundo visível e o mundo invisível se tocam e se chocam; em outras palavras, a colocação em evidência, a manifestação do conteúdo oculto, latente, que encobre os germes do drama.” (7)

Nestes desenhos quis traçar, na simplicidade da sua gramática, uma apologia do espetáculo da coincidência extrema do real/fictício: o teatro. Pretendi construir memória dando outro tempo para a visibilidade de cada cena. Estes traços querem ser só mais um balbuciar gestual, mais um hieróglifo da absoluta verdade, onde procuro “uma revelação, como um desejo transitório e apaixonado de aprender, intuitivamente e de uma só vez, todas as leis deste mundo – a sua beleza e a sua fealdade, sua humanidade e sua crueldade, o seu caráter infinito e as suas limitações.” E com este fim, expresso em desenho, chego à “imagem, elemento sui generis para a deteção do absoluto.” Pois na “imagem mantém-se uma consciência do infinito: do eterno dentro do finito, o espiritual no interior da matéria, da inexaurível forma dada.” (8)

Portanto, pelo facto de estes desenhos acerca do teatro refletirem sobre o problema da simultaneidade aparência/realidade, Interior/Exterior, forma/conteúdo, acredito que nos possam ajudar à consciência de que nas superfícies vemos, paradoxalmente, surgir a profundidade. Assim não só no teatro mas também nestes traços estáticos, dá-se a mesma Coincidência dos opostos, por irmos do artifício à verdade de nós mesmos.

 

(1) Teatro deriva do grego theaomai (θεάομαι) - olhar com atenção, perceber, contemplar. Theaomai não significa ver no sentido comum, mas sim ter uma experiência intensa, envolvente, meditativa, inquiridora, a fim de descobrir o significado mais profundo; ver contemplar pela inteligência;
θέατρον que era o nome dado ao lugar onde se reúnem os espetadores.)

(2) Manuel Antunes SJ, ao encontro da palavra (I). 

(3) Idem.

(4) Jean Genet, Le Balcon, 1960, pp. 7-8.

(5) Bernard Dort, O teatro e a sua realidade, São Paulo, Prespectiva, 1977, p.27

(6) Shakespeare, Hamlet,

(7) Arthur Adamov Ici et Maintenant, colecção Pratique du théâthe, Paris, Gallimard, 1964, pp.13-14

(8) Andrei Tarkovsky in. Esculpir o Tempo.

 

João Sarmento, SJ
© SNPC | 08.12.12

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