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Christophe Lebreton: um testemunho precioso

O livro "Christophe Lebreton - Monge mártir e mestre espiritual para os nossos dias”, do arcebispo emérito de Argel, Henri Teissier, vai ser apresentada esta quinta-feira, 13 de setembro, em Lisboa.

A obra das edições da Consolata centra-se no último diário do mais novo dos sete monges trapistas do Mosteiro de Nossa Senhora do Atlas, na Argélia, assassinados em 1996.

«A vida dos mártires de Tibhirine não foi dada em vão», sublinha o padre José Tolentino Mendonça no prefácio, que oferecemos seguidamente.

 

Um testemunho precioso

Este é um livro precioso. Escrito por uma das vozes proféticas da Igreja contemporânea, a de Henri Tessier, arcebispo emérito de Argel, debruça-se sobre o percurso espiritual de Christophe Lebreton, um dos monges mártires de Tibhirine. Três anos antes do sequestro e martírio, Christophe havia recebido um caderno de presente e há de utilizá-lo para redigir um diário espiritual. Uma obra desta natureza é uma espécie de mapa interior: dá-nos acesso à vida mais profunda, às suas questões e procuras, aos seus impasses e aos seus encontros. É uma forma de exposição discreta da própria alma. Num mundo como o nosso, prisioneiro da superfície e dos seus ruídos, constitui uma experiência verdadeiramente alternativa este mergulho no mundo silencioso que trazemos, tantas vezes adiado.  Vivemos num tempo onde escasseiam os mestres da grande aventura humana. A mão sábia de Henri Tessier ajuda-nos a folhear o diário de Christophe como quem aprofunda dimensões do nosso próprio coração.

Foto Christophe Lebreton

 

Um amigo é uma testemunha

Há um provérbio que diz: “Viver sem amigos é morrer sem testemunhas”.  Os amigos trazem à nossa vida uma espécie de atestação. Os amigos testemunham que somos, que fizemos, que amamos. E fazem-no não com a superficialidade que na maior parte das vezes é a das convenções, mas com a forma comprometida de quem acompanha. 

Não é por acaso que, de cada discípulo, Jesus espera que se tornem testemunhas: “Sereis minhas testemunhas” (Act 1,8). Os discípulos podem ser investidos como testemunhas, porque viveram e vivem uma história de amizade de que se tornam portadores. “‘Mestre, onde moras?’ Ele respondeu-lhes: ‘Vinde e vereis.’ Foram, pois, e viram onde morava e ficaram com Ele.” (Jo 1, 38-39) “Ficar com”, “permanecer”, “caminhar ao lado” são sinónimos da palavra amizade. E são expressões axiais da vida cristã, quer se trate da vida monástica, quer seja uma existência no meio do mundo.

A amizade não se alimenta de encontros episódicos ou de feitos extraordinários. A amizade é um contínuo. Tem sabor a vida quotidiana, a espaços domésticos, a pão repartido, a horas vulgares, a intimidade, a conversas lentas, a tempo gasto com detalhes, a risos e a lágrimas, a exposição confiada. A amizade tem sabor a hospitalidade e a tempo investido na escuta. A amizade enche a casa de perfume (Jo 12,3). A experiência da Fé não é outra coisa.

FotoMonges de Tibhirine 

É pertinente anotar que, na Igreja apostólica, a legitimidade para anunciar se liga diretamente à condição de testemunha (e nesse sentido também de amigo). São fundamentais as palavras que constituem o preâmbulo da Primeira Carta de João: “O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida, - de facto, a Vida manifestou-se; nós vimo-la, dela damos testemunho e anunciamo-vos a Vida eterna que estava junto do Pai e que se manifestou a nós - o que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão connosco.” (1 Jo 1, 1-3).

Cada cristão é chamado a ser um amigo incondicional de Jesus. É esse o ensinamento, simples e estremecedor, de Christophe Lebreton e dos seus companheiros.

 

Ser cristão hoje

O teólogo Karl Rahner escreveu que “A Igreja tem sido conduzida pelo Senhor da história para uma nova época”. Penso que a ninguém será indiferente a verdade desta afirmação, quando olhamos o amplo movimento de recomposição por que passa hoje o campo religioso. Não se trata só de baixas drásticas nos indicadores estatísticos quando se compara a atualidade com aquele que já foi o quadro da vivência da Fé. A questão é bem mais complexa. Talvez o que o nosso tempo descobre, mesmo entre convulsões e incertezas, seja um modo diferente de ser crente, traduzido de formas alternativas nas suas necessidades, buscas e pertenças. Não estamos perante o crepúsculo do cristianismo, como defendem aqueles que se apressam a chamar pós-cristãs às nossas sociedades. Quem não se apercebe que o radical lugar do cristianismo foi sempre a habitação da própria mudança não o colhe por dentro. Mas há eixos que se vão tornando suficientemente claros para que seja cada vez mais um dever os enunciarmos e contarmos com eles.

FotoMosteiro de Tibhirine

Aponto três onde me parece que o testemunho dos monges mártires de Tibhirine se torna especialmente profético.

Primeiro: os cristãos regressam à condição de “pequeno rebanho”. Com a evaporação de um cristianismo que se transmitia geracionalmente como herança inquestionada, dentro de mecanismos sociais mais homogéneos, os cristãos voltam a sê-lo por decisão pessoal, uma decisão muitas vezes em contracorrente, maturada de modo solitário em relação aos círculos mais imediatos de pertença. Já não é de modo previsível que nos tornamos cristãos. Isso acontece e acontecerá cada vez mais como uma opção e uma surpresa.

Depois, à medida que se assiste a um enfraquecimento da inscrição institucional das Igrejas no horizonte da sociedade, redescobrimos o valor e as possibilidades de uma presença discreta no meio do mundo. É isso que a vida de Christophe Lebreton nos segreda. Em tantas situações, nesta diáspora onde estamos semeados, a única palavra verosímil é a do testemunho de uma vida vivida com simplicidade e alegria no seguimento de Jesus e no serviço aos irmãos.

E, em terceiro lugar, esta grande mudança epocal mostra-nos que precisamos recuperar aquilo que Karl Rahner chama o “santo poder do coração”. Os cristãos são chamados a viver a amizade como um ministério. “Isto é o que vos ordeno: amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,17). Há uma revelação do cristianismo que só a prática da amizade é capaz de proporcionar. E nisto, o mundo, que pode até perder-se em equívocos sobre os cristãos, não se engana. Mesmo se for um único instante de contacto o que tivermos, tal basta para deixar transparecer uma amizade que brilha como um relâmpago de eternidade. A vida dos mártires de Tibhirine não foi dada em vão.

Foto

 

José Tolentino Mendonça
13.09.12

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