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Cântico dos Cânticos: O homem tal qual ele é diante da mulher tal qual ela é

O Cântico dos Cânticos: dois amantes que se buscam, que se olham, se contemplam. Só se lembram do amor e se esquecem do amor. Em tudo procuram o amor e em tudo o evitam.

Têm receio de abrir a porta de casa ao amor e ousadia para enfrentar, em nome dele, as austeras sentinelas que vigiam a cidade, quando e noite. Tem receio dos mil lugares onde o amor assoma, mas em mil lugares o buscam, se, por uma hesitação ou um silêncio, dele se perdem.

Escondem-se e reencontram-se. Incessante deslocação de corpos. De desejos. Como num jogo. E dizem: “O meu amado e para mim como um ramo de mirra”; “és formosa amiga minha, os teus olhos são como os das pombas”; ou “grava-me como um selo em teu coração/ como um selo em teu braço;/ pois o amor e forte como a morte”.

Falam do seu amor com uma intensidade tal que nos fazem ver, como escreve Paul Beauchamp, que “não existe sexualidade sem a palavra, como não existe desejo. A sexualidade humana e aquela que é dita”.

Os rabinos, no sínodo de Jabneh (90 d.C.), discutiram sobre a canonicidade do Cântico dos Cânticos. Alguns achavam‑no demasiado cheio de paixão. E lamentavam-se, sobretudo, que fosse, frequentemente, repetido em tabernas.

Mas na Mishna esta escrito: “O mundo inteiro não e digno do dia em que o Cântico dos Cânticos foi dado a Israel. Todos os livros são santos, mas o Cântico dos Cânticos e o mais santo de todos”.

Santa Teresa de Ávila diz recordar-se de “ouvir a um religioso um sermão admirável em extremo, e o mais dele foi a declarar estes regalos de que a Esposa tratava com Deus. E houve tanto riso e foi tão mal tomado o que disse, porque falava de amor, que estava espantada”.

Contudo, a sua experiencia de leitora deste livro é bem diversa: “O Senhor tem-me dado, desde há alguns anos para cá, um grande gosto cada vez que ouço ou leio algumas palavras do Cântico dos Cânticos, e isto em tanto extremo que, sem entender com clareza o latim, a minha alma mais se recolhia e movia então do que com os livros muito devotos que entendo”.

Um dos contributos mais originais que a modernidade inscreveu na história da interpretação deste singular livro tem sido o da sua interseção com outros campos culturais, valorizando assim o fenómeno da intertextualidade. Os pólos que mais frequentemente recorrem neste confronto são o egípcio, o mesopotâmico e o da área sírio-palestina.

A dar confirmação a uma influência egípcia (sugerida, por exemplo, pelos perturbadores paralelos entre algumas passagens do nosso livro e textos contidos quer no Papyrus Harris 500, descoberto no Ramesseum de Tebas, quer nos Cantos da Grande Alegria do Coração do Papyrus Chester Beatty I), o Cântico dos Cânticos seria uma antologia de textos de diversão destinados, no Egito, as ocasiões festivas.

Esta tese tem um aliado vigoroso e imprevisto em Teodoro de Mopsuéstia que, no séc. V, contestava a canonicidade do Cântico dos Cânticos dizendo que ele celebrava, “sem intenção suplementar, as núpcias de Salomão com uma princesa egípcia”.

Por sua vez, a relação com a literatura mesopotâmica far-se-ia através de textos de índole cultual, vinculados a um cenário de hierogamia, que colocavam em ação as rivalidades amorosas dos deuses Dummuzi e Enkimdu e da deusa Inanna. Enquanto que da área sírio-palestina a influência viria sobretudo do folclore praticado no ciclo dos sete dias festivos que se sucedia a coroação matrimonial dos esposos, a maneira de um rei e de uma rainha.

Mas se é verdade que o confronto com estes modelos literários, próximos no tempo e no espaço ao escrito bíblico, fornece alguns contributos esclarecedores, ele não elide uma dificuldade essencial: o facto do estudo comparativo ser extremamente fragmentário, ignorando, como escreve Anne-Marie Pelletier, “a coerência global do texto” e a sua “inserção num contexto singular que o qualifica e o interpreta necessariamente”.

O Cântico dos Cânticos retoma vocabulário comum aos cultos e rituais de exercícios religiosos coevos, nomeadamente vocabulário hierogâmico, mas fá-lo para o reinscrever num contexto que nega a relação mitológica do homem e da mulher, formulada aqui em termos históricos e não enquanto participação mágica do horizonte humano no divino.

Este livro, do séc. V ou IV a.C., como defende Maillot, “é, portanto, uma desmitizacao, uma  humanização e uma liberalização do amor. E a libertação em relação aos mitos da fecundidade. E a afirmação que o amor de um homem e de uma mulher e em si mesmo justificado”.

Recordemos que nenhum outro livro bíblico dá a palavra à mulher numa tal proporção. Ela busca e é buscada. Pede e é pedida. A sua palavra abre o canto: “Beije-me ele com os beijos da sua boca”. A mulher olha para o homem e avizinha-se a ele com a mesma impaciência e a mesma alegria que ele a ela.

Este co-protagonismo é muito interessante. Porque tensões, paradoxos, desníveis (por exemplo, o facto de a mulher não ser tratada em paridade, não ser tomada como sujeito) que não conseguiam resolução em outros tipos de discurso, conseguem-na primeiramente no discurso amoroso.

Na opiniao do teólogo Karl Barth, os textos de Génesis 2 e o do Cântico dos Cânticos são os que, no Antigo Testamento, perspetivam de modo mais original o amor humano.

A tendência predominante é a que situa a sexualidade do Ser Humano em função quase exclusiva da posteridade e, por conseguinte, no contexto da vocação deste povo e da expectativa messiânica (um dos nascidos, entre os descendentes de David, seria o Messias, por isso a instituição matrimonial era tão importante).

No Cântico dos Cânticos temos a afirmação de um outro aspeto (em verdade, mais complementar que opositor): “O enamoramento – escreve Barth – não já do pai ou do chefe de família potencial, mas simplesmente do homem tal qual ele e diante da mulher tal qual ela é”.

 

José Tolentino Mendonça
In As estratégias do desejo
22.11.11

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Ilda David'



















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