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Fé e cultura

A Bíblia lida por sete personalidades portuguesas da cultura e teologia

Luís Miguel Cintra, Alice Vieira, Tiago Cavaco, Esther Mucznik, Dimas Almeida, Teresa Toldy e José Tolentino Mendonça: sete personalidades da vida pública portuguesa, entre os quais um ator, uma escritora e teólogos católicos, protestantes e judaicos falam sobre os livros da Bíblia que mais os atraem.

 

«O contacto que muitas pessoas têm com a Bíblia é ligado à liturgia, ouvindo trechos bíblicos na missa. No meu caso, não era só na igreja que isso acontecia: o meu pai lia a paixão de Jesus, fazendo uma via-sacra em cada Sexta-Feira Santa, desde o Portinho da Arrábida até ao convento. Era uma espécie de ritual doméstico.

Toda a arte da Europa está cheia de imagens de diferentes situações da Bíblia, sobretudo do Novo Testamento. Quando se relê mais tarde, já o fazemos com uma carga cultural enorme. Assim, a leitura já não é virgem.

O meu encantamento recente com a Bíblia vem de perceber como ela é um texto genial, mesmo do ponto de vista literário. A escrita dos evangelhos é absolutamente deslumbrante: o que teria sido a vida de Jesus e o modo como ela está contada não são a mesma coisa. O cristianismo funda-se na escrita dos evangelhos. Como artista, gosto da ideia de que o cristianismo está filtrado pela escrita de vários autores.

Há, nessa escrita, uma ligação à atividade humana. O que é fundamental no cristianismo é o incarnatus est [Ele incarnou], a ligação do humano com o divino. O evangelho fala do encontro daquele que foi Deus na terra.

Para cada pessoa, há uma imagem de Jesus que não é apenas a de um só evangelista. É antes a soma das imagens de Jesus dadas pelos diferentes evangelistas. E é essa soma, somada ainda a toda a história da humanidade e a todas as representações que depois se fizeram. O próprio texto sagrado já faz parte da humanidade que o leu, de todas as pessoas que ao longo dos séculos o foram lendo. Isso é algo de deslumbrante e extraordinário.

Mesmo no Antigo Testamento, onde há alguns livros áridos na sua leitura. Gosto muito deles como ideia: traçam uma espécie de história de um povo em diferentes níveis de compreensão. Comovo-me também, porque ligam mais uma vez o divino ao humano.

Quando penso na Bíblia, penso nos quatro evangelhos. O testemunho de Moisés ou dos profetas é uma história de homens sobre os quais nasce o evangelho. Confunde os quatro evangelhos, não distingo se é S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas ou S. João. Penso que isso acontece com a maior parte das pessoas, para quem a Bíblia não é apenas um livro como outro qualquer.

Fico impressionado pelo tipo de escrita dos evangelhos, com a capacidade dos autores a descrever situações e personagens. Interessa-me muito a relação de quem escreve com o que escreve. O envolvimento pessoal dos próprios escritores explica que o caráter de cada livro seja muito diferente. Outros escritores recentes implicaram-se completamente no que escreveram, como Pasolini ou Jean Genet. Em O Petróleo, Pasolini faz como que uma sua biografia, um alimento da própria escrita.

Um dos momentos dos evangelhos que mais me impressiona é o batismo de Jesus por João Batista, em que mais uma vez se reconhece essa ligação do divino ao humano. Outro momento é a anunciação, pela mesma razão.

Um espetáculo como a Morte de Judas é um caso de releitura do evangelho. Talvez a peça seja mais fascinante por ser uma releitura extremamente irónica do evangelho. Quando encenei o espetáculo, achei útil antecipar a narrativa, porque na cabeça de Paul Claudel existiria essa problemática. O ponto de vista da Bíblia é tão aberto que permite outras leituras abertas.

Já o Apocalipse, que li e gravei [em disco], não tem nada a ver com o evangelho, é diferente. É como se fosse um livro subjetivo, que testemunha o que poderia ser a cabeça do evangelista S. João: uma cabeça visionária que pode escrever um evangelho de modo tão contido e sucinto, que é o seu testemunho.

No Ato da primavera, em que participei, Manoel d'Oliveira, mais do que filmar a Paixão, filma os camponeses e a sua fé ou não-fé. Filma-os na forma como eles se oferecem: o seu corpo, a sua voz. É uma escrita muito mais parecida com a dos evangelhos do que muitos outros filmes que o pretendem ter.»

Luís Miguel Cintra
Ator, encenador

 

«A primeira prenda de namoro que o Mário [Castrim] me deu foi esta edição inglesa da Bíblia [intitulada A Bíblia para Ser Lida como Literatura], tinha eu 19 anos e ele 42. Ele achava que era a melhor maneira de me fazer chegar à Bíblia, eu, que era uma ateia...

Esta outra [edição da Difusora Bíblica] era a dele, está cheia de sublinhados e notas escritas em papelinhos.

Eu venho de uma família republicana, laica e anticlerical. Mas que foi suficientemente esperta para me inscrever nas aulas de Moral e Religião. Tive uma professora extraordinária, que morreu há um ano. Tinha a capacidade de dar a conhecer a Bíblia através da relação com o que nós aprendíamos nas outras disciplinas.

O Mário, no entanto, que era um católico de mal com a hierarquia, como eu costumava dizer, achava que eu devia aproximar-me da Bíblia através da literatura. Talvez por eu gostar de livros que contam histórias.

Há um livro de que eu gosto, óbvio para quem está ligado às letras: os Salmos. Está para lá de tudo, ninguém tem dúvida de que é o grande livro da Bíblia. É grande literatura, onde a palavra é muito bem utilizada. O autor é o maior poeta de todos, consegue chegar até hoje como se escrevesse agora. Estão lá as nossas angústias e medos, o nosso desespero, mas também a nossa felicidade e a nossa esperança.

Há outro de que gosto muito: o livro de Ester. Porque conta muitas histórias. É um livro estranho no meio da Bíblia, porque a presença de Deus quase nem se sente. É também extremamente violento. Como texto literário, é extraordinário: a descrição do banquete ou dos massacres... E a figura de Ester, que salva o povo arriscando morrer. É a primeira greve de fome conhecida, um jejum de três dias feito para salvar o seu povo. Olho para esse livro e vejo que dava um grande filme. Que já deu, como deu também teatro do Racine.

De cada vez que releio a Bíblia, mesmo em passagens já conhecidas, pensa-se em coisas novas. No Novo Testamento, o que prefiro é o Evangelho de S. Marcos. Talvez por ser mais rigoroso, o mais jornalístico de todos. No Antigo Testamento, o que me atrai é a literatura, no Novo Testamento é o rigor das coisas.

Agora, leio na Bíblia o que preciso ou o que me apetece: os Salmos, os profetas, o livro da Sabedoria... Mas muitas vezes faço a leitura de um livro desde o princípio.

O que acho é que as pessoas deviam ler um bocadinho mais a Bíblia... Nisso, sigo também um ensinamento do Mário: quando se está chateado ou a precisar de refletir sobre qualquer coisa, abre-se a Bíblia ao acaso e encontra-se sempre algo que vem ao nosso encontro.

Levo sempre a Bíblia comigo. Há pouco tempo estive na ilha do Corvo durante dez dias. Sozinha com a natureza e com Deus. Abri e saiu o início de Eclesiastes: "Ilusão das ilusões: tudo é ilusão. Que proveito pode tirar o homem de todo o esforço que faz debaixo do Sol? Uma geração passa, outra vem; e a terra permanece sempre. O Sol nasce e o Sol põe-se, e visa o ponto donde volta a despontar..."

Só podia ser esse texto para aquele lugar.»

Alice Vieira
Escritora

 

«Olhamos sempre para a Bíblia como Palavra de Deus, como revelação de Deus. A maior parte dos cristãos reconhece-se nessa afirmação, mas, depois, já não concordará em muitas interpretações.

A minha aproximação ao texto bíblico foi, no entanto, prévia a qualquer racionalização. O facto de as crianças serem instruídas na Bíblia faz com que a pergunta não exista, porque a Bíblia já lá está, nasce como qualquer outra alfabetização, é prévia a qualquer reflexão sobre ela própria.

Lembro-me do meu avô, pastor da Igreja Batista, que tinha na sua biblioteca uma edição da Bíblia com ilustrações. Eu ia para o escritório dele ver o livro. Impressionava-me imenso ver a história de Lot a fugir de Sodoma e a mulher que, olhando para trás, se transformava numa estátua de sal - e lá estava a imagem de uma mulher transformada em estátua de sal.

Outra história que é um grande clássico: a de David contra Golias. Talvez por ser arrebatadora, na nossa maturidade, ainda mais na infância, por nos falar da valentia dos fracos.

Para um protestante, seria mais ortodoxo dizer que importantes são todos os livros da Bíblia. Por outro lado, há toda a forte carga da Carta aos Romanos, que é uma referência marcante para as comunidades protestantes.

Neste momento, por razões circunstanciais, eu diria que o meu livro da Bíblia é o Evangelho de Marcos. Aqui, na Igreja de S. Domingos de Benfica, temo-nos dedicado ao estudo de um livro da Bíblia em cada ano. Este ano, estamos comMarcos, que começámos em setembro.

Ler o evangelho é ler a história do Senhor Jesus. Acredito que toda a Bíblia fala de Jesus Cristo – a grande ousadia dos cristãos é dizer que o Antigo Testamento já é uma antecipação de Jesus Cristo, que Jesus é sempre a personagem principal.

Mas, quando lemos os evangelhos, é a história do Senhor Jesus que lemos. Contemplar o Evangelho de Marcos é ler uma relação tão limpa e próxima de Jesus que é especial. Parece que já conhecemos a história, mas, ao mesmo tempo, é tudo muito novo e, de cada vez que lemos, somos outra vez surpreendidos. A sua antiguidade, o ser quase um protótipo, pareceu-nos bem. É o evangelho mais curto, mais despojado, de uma grande secura e uma economia surpreendente.

Às vezes encontramos sabores que não imaginávamos. Qualquer leitura é um ato de edição. A bricolage faz parte do território bíblico. Por isso posso falar de outros textos que me tocam. Por exemplo, a passagem sublime sobre o amor na Primeira Carta aos Coríntios: "Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine (...). Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor. Mas a maior de todas é o amor." Há um ano estudámos esse texto, eu quis decorá-lo. Como também só há três anos decorei a oração do Pai-Nosso.

No livro do profeta Miqueias, surpreendi-me não só com a justiça de Deus, mas com toda a relação da justiça com a misericórdia - e isso é uma coisa nova.

E há sempre o Salmo 23: "O Senhor é meu pastor: nada me falta. Em verdes prados me faz descansar e conduz-me às águas refrescantes..."»

Tiago Cavaco
Pastor da Igreja Batista, músico

 

«A Bíblia é absolutamente fascinante: retrata a condição humana com todas as suas imperfeições e violências, mas também com o seu lado sublime. É um testemunho da caminhada espiritual de um povo. Não é um livro de História, não é para tomar à letra como acontecimento.

Essa caminhada tem uma vertente geográfica, da Mesopotâmia até Canaã, e uma vertente espiritual, do politeísmo ao monoteísmo. Independentemente do caráter histórico, essas caminhadas são importantes, porque estão ali com o seu valor simbólico.

Não me canso de ler a Bíblia. Há livros com que me encanto permanentemente. Essa leitura passa pela sinagoga, através da leitura semanal da Tora (os cinco primeiros livros da Bíblia). Mas, ao longo da vida, desde a infância, todos os anos comemoramos festividades que estão na Bíblia: por exemplo, a festa de Purim ou Hanucá - esta, estamos a comemorar até dia 27 (nesse dia, acende-se na sinagoga de Tomar a última vela de Hanucá; no dia 26, em Lisboa, pelas 19h00, há uma cerimónia pública de acendimento da sétima vela na menorá, o candelabro da festa, que está no alto do Parque Eduardo VII).

Com as festas, quando se é criança há uma proximidade mais lúdica em relação à Bíblia. Depois, passa a ser sobretudo através do estudo, do conhecimento, da discussão – hoje, para lá da sinagoga e da comemoração das festas, há aulas de Bíblia e grupos de discussão sobre temas judaicos ou sobre questões presentes na Bíblia. Depois, cada um pensa o que entende e desenvolve uma maior ou menor proximidade com o texto.

Na Páscoa judaica, a relação com a Bíblia sente-se de outra maneira. A celebração é muito familiar. Lê-se a narração da saída dos judeus do Egito e, de certa maneira, come-se o livro. Vai-se narrando o episódio que está contado no livro do Êxodo e, ao mesmo tempo, comendo os alimentos referidos no texto: as ervas aromáticas, uma pasta que relembra a argamassa com que eram feitas as pirâmides, o osso de carneiro para recordar os animais que foram sacrificados.

Essa é uma lembrança forte, porque nos juntamos para contar, para rezar, para cantar. Não se trata apenas de uma história, mas de uma memória que marca todas as crianças judias.

Um livro de que gosto muito, que é universal, é o livro de Job. Há duas leituras fundamentais deste livro. A mais comum é a eterna questão do bem e do mal: Job é temente a Deus e Deus castiga-o. Job contesta, argumenta, Deus responde e pergunta-lhe: "Mas quem és tu para contestar os meus desígnios?" Porque os desígnios de Deus são insondáveis ao entendimento humano.

A segunda leitura é a que mais me interessa: no final do livro, Job volta à felicidade. Há um final feliz, porque, ao longo de todo o texto, Job nunca aceita a culpa. "Denegrindo-nos, é como se denegríssemos a obra divina", como diz Job. Ele contesta a ideia comum segundo a qual se algo acontece de mal, é porque temos culpa, porque errámos. Nada me magoa mais do que ouvir, por exemplo, que o Holocausto é culpa dos judeus.

O livro de Job é extremamente moderno. O que mais gosto, em Job como também nos profetas, não é que eles dizem "ámen", mas estabelecem um diálogo com Deus, por vezes um diálogo com dúvidas. Ser humano, com todas as capacidades que Deus nos dá, de colaboradores seus, de aperfeiçoamento do mundo, implica também a dúvida. Também Abraão negoceia com Deus, por exemplo na questão da destruição de Sodoma. Mas até me identifico mais com Moisés, que é um homem de dúvida, que discute se a sua escolha para liderar o povo é a melhor.

A dúvida leva-nos mais longe, leva-nos a perguntar, a interrogar Deus também. Não sabemos o porquê do mal. Ele existe, mas cada ser humano tem liberdade de escolha.»

Esther Mucznik
Vice-presidente da Comunidade Judaica de Lisboa

 

«Sinto um certo embaraço em cair numa dicotomia: a leitura devocional da Bíblia dificilmente se liberta do aspeto exegético; trata-se de uma leitura de textos que têm uma tão grande espessura de séculos – oito ou nove séculos de produção literária – que, em vez de nos sentirmos senhores daquela palavra, ficamos frequentemente dela cativos. Mas é um cativeiro que pode ser libertador, tendo em conta que a Bíblia não é totalitária. Redigida ao longo de nove séculos, apresenta-se como uma verdadeira biblioteca, escrita em três línguas diferentes -hebraico, aramaico, grego.

Há nela uma polifonia. São dezenas de autores, que escreveram em situações diferentes, descrevendo situações de crise; as grandes obras literárias da Bíblia foram particularmente produzidas em tempos de crise. A crise é inerente à produção da Bíblia.

Antes de ser considerado como sagrado pelas Igrejas, a Bíblia é um texto profano; há uma profanidade da Bíblia que é extremamente salutar; e tudo isso gera em mim um sentimento de espanto por aqueles textos, que são muito fortes.

No caso dos evangelhos, por exemplo: o grego da escrita dos evangelhos, como no caso do Evangelho de Marcos, que é um clássico, poderia ser considerado pobre, mas é muito forte. Por vezes, sinto um certo incómodo quando leio traduções que transformam aqueles textos, que são vinho forte, num capilé delicodoce.

Tendo em conta estas circunstâncias - uma biblioteca, nove séculos, três línguas, dezenas de autores, textos por vezes agonicamente atravessados por situações de crise -, revisitá-los diariamente implica o todo da nossa vida. É difícil separar o devocional do científico.

Por isso, em vez de dizer que tenho um livro favorito, gostaria de dizer que é o cânone que me desafia. Prefiro evitar criar um cânone dentro do cânone, gostaria de seguir a pluralidade do cânone, que é tão rico, tão conflitual, que até podemos dizer que há teologias em conflito, o que é extremamente salutar. Prefiro tentar aguentar a tensão inerente à diversidade dos textos e, em vez de eleger um único texto, gostaria antes de ter como minha eleição a pluralidade do cânone.»

Dimas Almeida
Pastor protestante, professor

 

«A minha aproximação à Bíblia começou a sério quando fui estudar teologia. Fez-se com aspetos técnicos e através de um processo que permitiu conhecer melhor os textos, descobrindo a beleza dos textos.

Claro que, até aí, eu ouvia as leituras dos textos bíblicos na missa e nos grupos de jovens ou na ligação à comunidade [monástica ecuménica] de Taizé. Mais tarde, foi importante começar a olhar para os textos também de forma não religiosa, ver a densidade humana, a interação que ali se regista.

Nesse sentido, a teologia foi uma paixão anterior à Bíblia. O primeiro interesse foi a teologia muito ligada ao estudo da eclesiologia, sobre a Igreja.

Nesse processo, houve professores marcantes pela leitura exegética e teológica que faziam. Um deles foi o padre Joaquim Carreira das Neves. A forma como ele lia os textos, dando-lhes um sentido global, era extraordinária. Quando, depois, fui estudar para a Alemanha, redescobri o Antigo Testamento. Por causa da história recente do país, valorizava-se muito o que eles designavam como o Primeiro Testamento.

Havia um professor que lia o livro do Êxodo, de que gosto muito, por influência da teologia da libertação. O Êxodo é um dos meus fascínios e conta uma história única, que é de toda a humanidade. Tudo o que é o melhor e o pior da humanidade está ali e isso é fascinante. Aconteceu-me ter ecos do livro do Êxodo em episódios recentes, como quando Nelson Mandela foi libertado da prisão. O livro do Êxodo é como se fosse um pano de fundo para os textos que vivemos agora.

Nos evangelhos, há alguns episódios de que gosto muito: a história dos discípulos de Emaús, após a ressurreição de Jesus, reinterpretando o que acontecera, o que eles veem e não veem, o que acontece quando eles reconhecem Jesus, tudo isso é espantoso. E o relato de quando Jesus aparece a Maria Madalena, depois de ressuscitar, comove-me profundamente. Tal como o prólogo do Evangelho de S. João, não só do ponto de vista teológico, mas da cadência poética do texto, em qualquer língua em que se leia. Por exemplo, o texto, no original grego, diz que Deus acampou no meio da humanidade. Isso é fascinante.»

Teresa Martinho Toldy
Teóloga, professora

 

«Se alguma vez tivesse de escolher entre ficar com as 7101 palavras da Carta aos Romanos ou com os 21 capítulos do Evangelho de João, seria como se me obrigassem a decidir pela minha mão direita ou pela esquerda. Se não pudesse mais ler o Profeta Isaías, se por alguma razão não mais me fosse  dado ouvir as imprecações de Job ou a cítara de David, se banissem os prantos de Jeremias ou o humor de Jonas, se não pudesse voltar à espantosa originalidade de Jesus, sei que isso me tornaria um apátrida. Aceitar perder os livros da Bíblia seria além do mais conformar-se também a perder: a Catedral de Chartres, o ciclo das lendas arturianas, a vida de S. Francisco de Assis, a arte de Giotto, os mármores transparentes de Miguel Angelo, a Divina Comédia de Dante, grande parte da lírica camoniana, As Flores do Mal de Baudelaire ou a pergunta ardentemente insolúvel que Dostoiévski gravou em O Idiota: "Haverá uma beleza que nos salve?"

Mas às vezes penso que à hora da minha morte gostaria que me lessem o Cântico dos Cânticos. O Cântico é um epitalâmio, um canto de admiração trocado por dois enamorados, um sussurro e uma extraordinária meditação acerca do amor. As mãos ardem folheando este livro, que pede para ser lido por dentro dos olhos, este livro humano e sagrado, este cântico anónimo que todos sentem seu, este relato de um sucesso e de um naufrágio ao mesmo tempo manifestos e secretos, esta ferida inocente, esta mistura de busca e de fuga, este rapto onde tudo afinal se declara, esta cartografia incerta, este estado de sítio, este estado de graça, este único sigilo gravado a fogo, este estandarte da alegria, este dia e noite enlaçados, esta prece ininterrupta onde Deus se toca.

Neste poema o amor está sempre a ser proposto e reproposto: nunca é construção terminada. Há um ritmo incessante de movimentos, quase vertiginoso em alguns momentos. O amor faz destes enamorados nómadas, buscadores e mendigos. Todo o diálogo de amor é uma conversa entre mendigos. Por isso a maior declaração de amor é ainda um pedido: "Grava-me como selo em teu coração, como selo no teu braço, porque forte como a morte é o amor" (Ct 8,6).»

P. José Tolentino Mendonça
Poeta, biblista

 

Todos os depoimentos foram redigidos por António Marujo, a partir de conversas com os entrevistados, à exceção do de José Tolentino Mendonça, escrito pelo próprio.

 

António Marujo
In Público
03.01.12

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Luís Miguel Cintra





















































































































Alice Vieira































































































Tiago Cavaco





























































































Esther Mucznik

















































































































Dimas Almeida
































































Teresa Toldy































































José Tolentino Mendonça

 

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