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O tesouro escondido

A Paulinas Editora lançou a 16 de fevereiro, “O tesouro escondido”, a mais recente obra de José Tolentino Mendonça, numa sessão que decorreu em Lisboa.

O livro, de que avançamos seguidamente alguns excertos, foi apresentado por Maria José Vaz Pinto e Henrique Raposo.

 

«Comecemos, talvez de um modo desajeitado, perguntando: o nosso mundo interior é uma cebola ou uma batata? A pergunta faz-nos sorrir, é um bocado cómica, mas, se quisermos,  acaba por colocar-nos perante a nossa realidade de uma forma bastante profunda. A pergunta pode ser feita numa cozinha, por uma criança que está a descobrir o mundo, pode ser proferida por filósofos nas suas reflexões ou ser formulada por um mestre espiritual. O nosso mundo interior é uma cebola ou uma batata? Nietzsche, por exemplo, dizia que «tudo é interpretação», isto é, não há um núcleo de Ser a sustentar a nossa experiência de vida, tudo são cascas de cebola, modos de ver, perspetivas, interpretações. Para lá disso não há mais nada. A visão cristã do mundo está certamente do lado da batata, pois defende que, mesmo escondida por uma crosta ou por um véu, está uma realidade que é substanciosa e vital.

A verdade é que mesmo sabendo que a vida é uma batata, nós vivêmo-la, muitas vezes, como se fosse uma cebola. Vive mos de opiniões, de verdades parciais e provisórias, de paixões, vivemos aparências e modas como se a vida fosse isso. Esgotamo-nos a desfilar cascas e camadas, sem um centro que nos dê realmente acesso ao pleno sentido...» (in “A Lâmpada de Deus não se apagou”).

«A confiança é um caminho. E, na maior parte das vezes, um caminho que não é isento de interrogações, incertezas e angústias. É verdade que brotam do nosso coração, muito naturalmente, os versos do Salmo 23: «De nenhum mal terei medo porque Tu estás comigo. A tua vara e o teu cajado dão-me confiança» (v. 4). Mas a travessia de algumas estações da nossa vida fazem um explícito apelo ao mistério da cruz do Senhor. Podem ser tantos os motivos: um luto, uma doença, uma incompreensão, um conflito mal resolvido. Hoje, com a ajuda de uma personagem bíblica, propunha que tomássemos uma ferida em particular, aceitando para ela uma ampla leitura interior e simbólica. Pensemos a esterilidade.

Na mentalidade dos tempos bíblicos era também uma vergonha social, pois de uma maternidade fecunda é que nasceria o Messias. Mas não deixava de ser um aspeto que diminuía a mulher ou a família. Sem uma posteridade, o futuro aparecia sombrio e ameaçado. Esse era o drama de Abraão e, sobretudo, de Sara. Com uma idade avançada, o que Abraão previa é que um remoto parente, Eliézer de Damasco, viesse a ser o herdeiro da sua casa.

Imaginemos como isso custaria a Sara. A angústia é um grande sofrimento e é diferente do medo. O medo tem sempre um objeto (real ou imaginário), quando ele se ultrapassa o medo dissipa-se. A angústia, porém, é um sentimento mais pessoal: eu não sei bem quem sou eu, não descubro o meu papel, não me sinto amado, não valho para nada… E, por isso, no meu coração e no meu espírito experimento uma agitação constante… Sentir-se assim perdido pode gerar várias formas de mal-estar existencial e de depressão.

O texto bíblico é muito sóbrio em relação aos aspetos psicológicos, mas podemos imaginar que Sara sentisse a deceção com a sua própria história. Cada um de nós é uma mistura de forças e de fragilidades, e de víamos contar mais com a nossa pequenez, com a nossa fraqueza e vulnerabilidade. Mas olhamos em nosso redor e não é assim...» (In “Deus faz-me sorrir”)

 

«Talvez, para percebermos melhor o que é isto da possibilidade de rezar, valha a pena tomar um testemunho contemporâneo, que refere precisamente o contrário, uma dificuldade radical em relação à experiência orante. Recorro às páginas iniciais de um texto autobiográfico do escritor italiano Erri de Luca, intitulado Caroço de Azeitona. Diz este autor: «Como leitor assíduo das Sagradas Escrituras, percorro o hebraico antigo das primeiras histórias, dos profetas, e dos salmos recolhidos no Antigo Testamento. Este uso quotidiano não fez de mim um crente. A experiência de ser um marginal provém, para mim, de dois obstáculos. O primeiro é a oração, este poder e possibilidade do crente se exprimir. De tratar a Deus por “Tu”. (...)

Pensando no Pai-Nosso, podemos dizer que o objetivo da oração é colocar-nos no Pai, inscrever-nos no seu coração: eu sou no Pai, existo no Pai. A principal das orações cristãs não é um argumentário de pedidos, mas a expressão de uma relação confiante. Essa é a originalidade de Jesus. O apelo direto ao Pai é invulgar na tradição judaica. E torna-se ainda mais significativo quando, no espaço de uma prece tão sóbria como é o Pai-Nosso, Jesus escolhe voluntariamente reconduzir o coração orante à sua essência...» (In “Mostra-nos o Pai”)

 

«(...) Talvez hoje nos espante saber que uma das discussões mantidas pelos Padres da Igreja era decidir se Cristo era ou não belo. Não é uma questão menor ou fútil como, talvez, à primeira vista possamos julgar. De facto, é a própria Liturgia que continua a alimentar esse debate. Ela, por exemplo, aplica a Jesus o Salmo 45:

«O meu coração vibra com belas palavras;
vou recitar ao rei o meu poema!
A minha língua é como pena de hábil escriba.
Tu és o mais belo dos filhos dos homens!
O encanto se derramou em teus lábios!
Por isso, Deus te abençoou para sempre!»
(...)

A Beleza, e a Beleza de Cristo em particular, captura o nosso coração, fere-nos intimamente, abre-nos à revelação, faz com que deixemos de pertencer a nós mesmos, obriga-nos a relativizar o que éramos, a esquecer muitas vezes a nossa pátria e a casa dos pais, atrai-nos para si. É isso que a Igreja reza no Salmo 45.

Mas ao mesmo tempo que a Liturgia utiliza amplamente o salmo também considera indispensável a luz que traz ao mistério de Cristo o drama do Servo Sofredor, descrito em Isaías 53,1-4:

«Quem acreditou no nosso anúncio?
A quem foi revelado o braço do Senhor?
O servo cresceu diante do Senhor
como um rebento,
como raiz em terra árida,
sem figura nem beleza.
Vimo-lo sem aspeto atraente,
desprezado e abandonado pelos homens,
(...)

Como podemos, então, conjugar espiritualmente os dois textos?» (In “Reconciliar-se com a beleza”)

 

««A meio do caminho desta vida / me vi perdido numa selva escura.» Este verso de Dante, num dos pórticos da sua Divina Comédia, mostra como há diferentes idades e tempos na nossa vida e como o chamado «meio da vida» nos traz a experiência da complexidade. Muitas vezes, a sensação que nos sobrevém é a de uma desorientação ou de um certo adormecimento interior. Olhamos e a vida tornou-se uma floresta. As evidências parecem-nos menos frequentes e acessíveis. O caminho faz-se, agora, através de ramos e folhagens, por vezes, árduas de transpor. Levamos mais tempo entre um ponto e outro, quando em outros tempos essa viagem nos parecia tão imediata, transparente e possível.

Jesus vem ao nosso encontro em todas as idades e o encontro com Ele torna cada estação uma hora de Graça. Há, de facto, uma possibilidade de Graça para o momento que estamos a viver. Jesus dialoga connosco em cada tempo.

Falar dos tempos da nossa vida é falar das perguntas com as quais nos confrontamos. Há perguntas próprias dos inícios, há as perguntas que surgem a meio e há as perguntas que acompanham o fim. Este texto surge-nos precisamente a meio do Evangelho de Marcos. E traz consigo a típica pergunta do meio do caminho.

«Jesus partiu com os discípulos para as aldeias de Cesareia de Filipe. No caminho, fez aos discípulos esta pergunta: “Quem dizem os homens que Eu sou?” Disseram-lhe: “João Batista; outros, Elias; e outros, que és um dos profetas.” “E vós, porém, quem dizeis que Eu sou?” – perguntou-lhes. Pedro tomou a palavra, e disse: “Tu és o Messias.”Ordenou-lhes, então, que não dissessem isto a ninguém» (Mc 8,27-30).» (In “A pergunta do meio do caminho”)

 

«O escritor de viagens Bruce Chatwin, que escreveu muito sobre o espírito da viagem, confessa na sua obra Anatomia da Errância que a pergunta-chave de que devemos partir é a seguinte: «Por que é que os homens se deslocam em vez de ficarem quietos?» Esta pergunta reconduz-nos, como veremos, ao centro do mistério do próprio homem.

«Por que é que os homens se deslocam em vez de ficarem quietos?» As viagens nunca são apenas exteriores. Não é simplesmente na cartografia do mundo que o homem viaja. Seria não perceber o fundo do ser Humano, por exemplo, não identificar em toda esta inquietação que se apodera dele nos meses de verão o desejo de mais, de ir mais longe. Deslocar-se implica uma mudança de posição, uma maturação do olhar, uma abertura ao novo, uma adaptação a realidades e linguagens, um confronto, um diálogo tenso ou deslumbrado, que deixa necessariamente impressões muito fundas. A experiência da viagem é a experiência de fronteira e do aberto, de que o homem precisa para ser ele próprio. Nesse sentido, a viagem é uma etapa fundamental da descoberta e da construção de nós próprios e do mundo.» (In “Mais do que viajantes, peregrinos”)

 

O livro esgotou no dia a seguir ao lançamento, ficando a segunda edição disponível nos armazéns da editora a 21 de Fevereiro.

“O tesouro escondido” inaugura a coleção “Poéticas do viver crente”, coordeanda por José Tolentino Mendonça.

 

José Tolentino Mendonça
In O tesouro escondido, ed. Paulinas
Atualizado em 20.02.11

Capa

O tesouro escondido

Autor
José Tolentino Mendonça

Editora
Paulinas

Ano
2011

Páginas
128

Preço
8,00 €

ISBN
978-989-673-140-3























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