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Cultura e património

Santa Clara-a-Velha: um mosteiro resgatado às águas do Mondego

Um mosteiro não é apenas um local onde se reza. E um lugar complexo, com hierarquias, tarefas repartidas, organização interna, como em O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Não é um sítio de “não-vida”, mas de vida e também de morte. Mas, se n’O Nome da Rosa os religiosos são homens, no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, em Coimbra, a história é contada no feminino. Depois de quase 15 anos a escavar, a descobrir e a restaurar, vai ficar a saber-se quem eram as Clarissas e como viveram num sítio constantemente invadido pelas águas do Mondego.

Centenas de pessoas trabalharam no espaço que em Dezembro vai abrir ao público, dezenas de investigadores estiveram envolvidos no processo de restauro e descoberta.
Especialistas em História de Arte, Antropologia, Arquitectura, Botânica, Geologia e Engenharia. José Mateus, arqueólogo doutorado em Biologia, é apenas um dos muitos investigadores que se debruçaram sobre o que o mosteiro mostra e sobre o que escondia abaixo da superfície. Sobre o que se vê e o que só se pode imaginar.

José Mateus e a bióloga Paula Queiroz, os dois do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar), andaram a vasculhar no subsolo lixeiras de cozinha, canteiros da horta e poços. O que descobriram? Que as Clarissas consumiam alguma comida que vinha de fora do mosteiro, como cereais, frutos secos, uvas, vinho, mas também cultivavam a horta e o pomar. Tinham “requinte e qualidade de vida”, mas “sem espalhafato”, explica o arqueólogo.


Para além de ficar a conhecer estes pequenos detalhes acerca da vida das Clarissas, a partir de Dezembro o visitante vai poder usufruir também de um espaço totalmente requalificado, que inclui o mosteiro e a zona circundante, na qual foi erguido um edifício novo, dos arquitectos Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez, que funcionará como centro interpretativo do monumento.

 

Peças que falam

Tal como José Mateus, também a historiadora Lígia Gambini andou recuada no tempo, atrás das histórias guardadas pelas religiosas que por ali passaram. Diz ao “Público” que as peças descobertas nas escavações contam tudo. São os botões, os fusos, os alfinetes, e as louças que vão falar com os visitantes na exposição do centro

Algumas peças mostram que “as senhoras que iam para aquele mosteiro pertenciam a uma elite social”, diz Lígia Gambini. Apesar de o mosteiro professar a ordem de Santa Clara, com o voto de pobreza próprio dos franciscanos, o facto de ter como patrona a Rainha Santa (1271-1336) levou a que nele se instalasse uma elite da nobreza e da burguesia que transportou para o local objectos de luxo como porcelanas, faianças, rosários, anéis e brincos.

Sabe-se ainda que no convento havia mulheres consagradas que se ocupavam das tarefas mais humildes e que também havia “criadas” para fazer trabalhos de limpeza e de cozinha. “As freiras professas dedicavam-se à oração e aos labores considerados femininos como os bordados, adornavam os altares, teciam...”, continua Lígia Gambini.

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As escavações arqueológicas até permitiram perceber que a alimentação das Clarissas era “rica e muito bem escolhida”: “Temos indicação de que os animais que consumiam eram os mais jovens, os mais tenros, e que comiam as melhores partes, como as do lombo, por exemplo... Até as conchas de berbigão encontradas eram superiores ao normal”, exemplifica a historiadora que salienta a importância do mosteiro não só pela pessoa que o fundou, a rainha Isabel de Aragão, mas “também em termos arquitectónicos”.

“A igreja tem, para a época, sinais de modernidade”, garante. “Estamos a falar de um edifício do século XIV abobadado a pedra, vê-se que foi obra de uma rainha. Normalmente, nas ordens mendicantes, no gótico mendicante, a cobertura era em madeira”, nota a historiadora, acrescentando ainda que Inês de Castro e D. Pedro moraram nos Paços da Rainha, situado junto ao mosteiro. E também naquela igreja que Inês é sepultada até ser, mais tarde, transladada para Alcobaça.

 

Em agonia

A história deste mosteiro começa, porém, com Dona Mor Dias, uma mulher da nobreza que pretendia criar uma casa religiosa ligada à ordem de Santa Clara. A primeira pedra é lançada em 1286 e, dois anos depois, já existe um conjunto de edifícios na margem esquerda do Mondego ocupados por religiosas. Contudo, a criação do mosteiro encontrou uma forte oposição por parte dos monges de Santa Cruz, o que acaba por ditar a extinção do espaço, em 1311, já Dona Mor Dias tinha morrido.

É então que surge, três anos mais tarde, a Rainha Santa que decide instalar ali as Clarissas. Pede licença à Santa Sé para fundar o Mosteiro de Santa Clara e obtém-na em 1314. Três anos mais tarde, começam a instalar-se as primeiras freiras que nunca viveram em paz, devido à constante invasão das águas do rio.

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Logo em 1331, uma enorme cheia inundou o local, chegando cobrir o túmulo mandado fazer pela rainha, no interior do templo (queria ser ali enterrada). As inundações eram recorrentes. Ao ponto de, no início do século XVII, as monjas abandonarem a parte inferior do templo e construírem um piso intermédio ao longo das naves da igreja e do coro.

Por isso, nesse mesmo século, o rei D. João IV manda construir um outro mosteiro para onde as freiras se mudam. É nesta altura, quando as religiosas ocupam Santa Clara-a-Nova, que se passa a chamar ao Mosteiro de Santa Clara, Santa Clara-a-Velha. E que ele entra em agonia.

Apesar disso, o mosteiro sobreviveu. Agora pode ser visitado em segurança graças a uma profunda intervenção, orçada em 7,5 milhões de euros, que começou em 1994 com escavações arqueológicas, depois de em 1991 ter conhecido um restauro pontual de recuperação da cobertura e limpeza da pedra. Um processo que esteve em permanente mudança, consoante o que ia descobrindo, e numa luta constante com as águas do rio.

 

Dificuldades técnicas

Artur Côrte-Real conhece bem as dificuldades que o restauro enfrentou. É o coordenador do projecto de valorização do mosteiro, monumento nacional desde 1910. Conta que recupera o edifício e resgatar as peças foi “um trabalho moroso”, mas que está satisfeito com o resultado final.

Uma das grandes conquistas deste trabalho é a de permitir a visita ao piso inferior da igreja e o de devolver a grandiosidade ao edifício, depois de terem sido retirados cerca de sete metros de altura de terra e sedimentos que “engoliram” o espaço, explica este arqueólogo.

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Foto: Paula Almeida (2006)

Já nos anos 30 e 40 do século XX, o mosteiro tivera trabalhos de restauro, mas a permanência das águas no interior do templo apenas permitia visitar o piso superior.

Foi nas décadas de 1980 e 1990 que se iniciou uma intervenção que pretendia dotar o mosteiro e a igreja de condições para receber o público, mas, no decorrer dos trabalhos, descobrem-se nas camadas mais profundas, artefactos cerâmicos. A partir de Fevereiro de 1995, o objectivo passa então a ser recolher, registar e estudar o espólio arqueológico no interior e no exterior da igreja.

O espaço do mosteiro e área envolvente chegam mesmo a ser o maior estaleiro de arqueologia medieval da Europa, diz Côrte-Real. A importância do património leva, por isso, à construção de uma ensecadeira, uma estrutura de tapumes que permitiu libertar o espaço da água.

Estes trabalhos enfrentaram, porém, várias dificuldades técnicas, conta ainda o arqueólogo. Com o objectivo de remover as areias depositadas no local ao longo de séculos, sem que os elementos arqueológicos fossem danificados, foram feitas várias alterações metodológicas ao longo do processo. Uma das opções foi baixar o nível das águas no local, através de bombagens permanentes, o que permitiu que a escavação decorresse tanto quanto possível a seco.

Curiosamente, apesar de representarem um desafio constante, a água e os sedimentos a ela associados também permitiram o “congelamento”, durante quatro séculos, de várias estruturas do mosteiro, incluindo o nível inferior da igreja e o claustro maior. Agora, o conjunto patrimonial de Santa-Clara-a-Velha está “a seco”, depois de, em 1998, se ter decidido construir uma parede ao longo do perímetro do monumento.

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Centro interpretativo

Quando o espaço abrir em Dezembro, o que vai ser oferecido aos visitantes contempla não só partes do mosteiro, as ruínas da igreja e do claustro recuperadas, mas também um centro interpretativo, um edifício contemporâneo com cerca de mil metros quadrados. Haverá ainda lugar para uma homenagem à água (com a projecção de um filme), tendo em conta a presença constante do elemento no mosteiro. Nas ruínas, existirá um circuito com sinalética e, na igreja, será colocado um ecrã para contar a história da arquitectura do monumento. A inauguração oficial, com as exposições prontas, e também a cafetaria e a loja, acontecerá, apenas em Abril.

A ideia é que também o próprio mosteiro seja palco de espectáculos. O arqueólogo salienta a “impressionante carga cénica” que o espaço tem à noite, até porque se assumiu o “carácter de ruína” do monumento.

Já o centro interpretativo terá “uma componente de investigação forte”, com uma “zona de estudo” e um “gabinete de restauro”. Terá ainda um auditório com capacidade para 60 pessoas, cafetaria com esplanada, biblioteca, e uma loja. O centro está em permanente relação com o mosteiro, através de grandes vidros que permitem o contacto visual com o exterior, O prado, as ruínas do claustro e do mosteiro, um espelho de água e ainda um elevador panorâmico compõem o espaço, com cerca de 29 mil metros quadrados. A memória das Clarissas continua lá.

Maria João Lopes

in Público, 24.10.2008

18.11.2008

 

 

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