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Ir à igreja, porquê?

Para muita gente, ir à igreja é uma coisa aborrecida e inútil. Porquê incomodar-se? Na obra "Ir à igreja, porquê?", das Paulinas, Timothy Radcliffe sugere que a Eucaristia atua a um nível profundo, transformando a nossa humanidade, para partilharmos a vida de Deus.

 

Da traição ao dom

Jesus toma o pão e dá-no-lo como seu Corpo. Eis o sinal de um dom totalmente oferecido e integralmente recebido. Ser um corpo é receber a sua existência dos pais e dos pais dos seus pais e, em definitiva, de Deus. Os nossos corpos cresceram nos ventres das nossas mães. Os nossos corpos não são coisas que possuímos e, por isso, podemos vender, como um carro ou um computador portátil. Honramos os nossos pais cuidando dos nossos corpos, que é o seu dom. Gerar para a vida também se diz, em português, dar à luz. O fruto do ventre vem à luz do dia; o dom secreto é partilhado com toda a gente. Eis porque é absolutamente repugnante que os corpos sejam vendidos. Pessoas movidas pela pobreza, sobretudo da Europa Oriental e do subcontinente indiano, vendem os seus rins por quantias que podem ir até 100 000 dólares. Lewis Hyde conta de uma filha que aceitou dar um rim à sua mãe em troca de um casaco de peles. Em 1980, um casal de New Jersey tentou trocar o seu filho por um carro em segunda mão, no valor de 8800 dólares. O vendedor de automóveis estava tentado a fazer isso, porque perdera a sua família num incêndio. «A primeira ideia que tive foi trocar o carro pelo miúdo. Mas, pouco depois, vi que seria um erro. Seria mau não tanto para mim ou por causa do preço, mas para a criança: que faria ela, quando deixasse de ser um menino? Como poderia este rapaz lidar com a vida, sabendo que fora trocado por um carro?» Assim, para Jesus, dar-nos o seu Corpo foi entregar-se totalmente, sem reservas. Os corpos são dons, e os dons recebem-se para, de novo, se ofertarem. Eis porque a Eucaristia nos oferece o fundamento de uma ética sexual cristã. Assim como os nossos corpos nos são dados, assim também aprendemos a dá-los a outro, com reverência, com fidelidade, de um modo vulnerável e sem reservas. Transmitimos o dom que somos.

Para Jesus, dar-nos o seu Corpo como alimento equivale à receção plena que dele fazemos. O alimento é o dom arquetípico, porque se torna parte dos nossos corpos. Somos o que comemos, desde o instante em que o feto começa a absorver e a extrair o nutrimento do corpo de sua mãe. Lewis Hyde mostra que, em muitas culturas, se fala dos dons como alimento, mesmo se eles não são comestíveis. Em certas ilhas do Pacífico, caurins e outros presentes são descritos como «alimento que não podemos comer». Tradicionalmente, um jovem guerreiro Fiji devotava-se ao seu chefe, dizendo «Come-me», uma prática que se poderia incluir na liturgia da ordenação. O Corpo de Jesus dado como alimento é, pois, uma dádiva integralmente ofertada e recebida. Se tivéssemos espaço, poderíamos inquirir porque é que Jesus se deu a si mesmo não só como alimento, mas também como pão. Como um dos meus confrades observou, não é possível imaginar Jesus a dizer: «Eu sou a batata viva que desceu do Céu!»

Mas o Corpo de Jesus já tinha sido vendido por trinta moedas de prata. No capítulo anterior, vimos como Mateus mostra Jesus envolvido num confronto cada vez mais aceso com as forças da violência e da morte; e como, na hora da sua morte, o véu do Templo é rasgado e os mortos caminham pela Cidade Santa. Para Mateus, Jesus é também a vítima da violência do mercado. A Última Ceia situa-se entre as duas cenas de Judas e dos sumos sacerdotes. O traidor vai ter com eles para lhes vender Jesus por trinta moedas de prata. E uma vez entregue a mercadoria com um beijo, no Jardim do Getsémani, ele volta e atira o dinheiro para o Templo. Os inimigos de Jesus servem-se do dinheiro, inclusive, para tentar abafar a notícia da ressurreição. Quando os soldados que guardavam o túmulo relatam o que aconteceu, os príncipes dos sacerdotes «deram muito dinheiro aos soldados, recomendando-lhes: “Dizei isto: De noite, enquanto dormíamos, os seus discípulos vieram e roubaram-no. E, se o caso chegar aos ouvidos do governador, nós o convenceremos e faremos com que vos deixe tranquilos”» (28,12-14). A violência toma a forma não só de expulsão da comunidade, mas ainda de mercantilização das pessoas no seio da comunidade.

Jesus, porém, adiantou-se a esta traição e desarmou-a com antecedência. A sua generosidade foi suficientemente grande para, da traição que o lançou para as mãos dos seus inimigos, fazer um dom para todos. Ele funda, nessa noite, uma comunidade que pode aguentar qualquer infidelidade. Rowan Williams di-lo muito bem: «O ato de Deus em Jesus antecipa-se à traição, toma previamente medidas a seu respeito: Jesus amarra-se a si mesmo à vulnerabilidade, antes de ser (literalmente) acorrentado pela violência humana. Assim, os que estão com Ele à mesa, que incluem os que o traem, abandonam e negam, são, por assim dizer, frustrados como traidores; a vítima faz por eles o seu trabalho». É verdade que os membros da Igreja, por vezes, venderam e negaram Jesus, fugiram covardemente do martírio, mataram outros em nome da religião, praticaram a simonia. Mas Jesus, na Última Ceia, suportou e curou tudo o que alguma vez poderíamos fazer.

A Bíblia é uma história de dons e de vendas. Esaú vende a sua primogenitura, José é vendido como escravo pelos seus irmãos, Sansão é vendido por Dalila por 11 000 moedas de prata, mas Nabot recusa-se a vender a sua vinha, a sua herança de Deus. No livro do Apocalipse, Babilónia, a cidade contrária a Deus, baseia-se no mercado. Ninguém pode comprar e vender, a não ser que tenha a marca da Besta (Ap 13,10). Os seres humanos são apenas outra mercadoria: «Chorarão também por ela [Babilónia] e se lamentarão os comerciantes da terra, porque ninguém mais comprará as suas mercadorias: os objetos de ouro, de prata, de pedras preciosas e de pérolas; de linho, de púrpura, de seda e de escarlate; toda a espécie de madeiras de sândalo, de objetos de marfim e de madeiras preciosas; de bronze, de ferro, de mármore, canela, cravo, especiarias, perfumes e incenso; vinho, azeite, flor de farinha e trigo; bois e ovelhas, cavalos e carros, escravos e prisioneiros» (Ap 18,11-13). O comércio de mercadorias e, finalmente, de seres humanos é que fortalece a Grande Prostituta, Babilónia, o Império Romano, a que João opõe a Nova Jerusalém, em que habitará a santidade de Deus.

Israel esperava que, quando viesse o Messias, ele purificaria o Templo, e isso inclui, segundo Zacarias, a expulsão de todos os comerciantes: «E, naquele dia, já não haverá mais comerciantes no templo do Senhor do universo» (Ap 14,21). Depois de ser aclamado pela multidão cantando os seus Hossanas, evocados no Sanctus da nossa liturgia, Jesus foi ao Templo, expulsou os cambistas e todos os que ali compravam e vendiam. «Está escrito: A minha casa há-de chamar-se casa de oração, mas vós fazeis dela um covil de ladrões» (Mt 21,13). Portanto, a santidade de Cristo não concerne apenas, como vimos antes, ao derrube da separação, à abertura de Deus ao impuro. É a transfiguração das relações de comércio em gratuidade.

Jesus não é como um aristocrata vitoriano que enjeita o comércio. Nenhuma sociedade pode florescer sem mercados e comerciantes. Estes são essenciais à coesão da sociedade e à propagação da civilização. Mas os mercados não podem ser a base da nossa sociedade, nem da nossa religião. Toda a sociedade precisa de mercados, mas se ela se tornar um mercado, como está a acontecer à nossa, então é provável que entre em colapso. A relação de Deus com o seu povo é estruturada pelo dom puro e simples. A terra, a fertilidade, os mandamentos, a própria existência de Israel, são dons de Deus. Eis porque era proibida em Israel a prática da usura. Nessa sociedade, só os que eram instigados pela pobreza extrema emprestariam com juros. Ganhar dinheiro por meio da usura seria lucrar com o sofrimento dos seus irmãos ou irmãs, seria negar que os Israelitas pertencem uns aos outros, enquanto livre povo de Deus: «Não exigirás ao teu irmão juros de dinheiro, juros de comida, ou juros de qualquer espécie. Poderás emprestar com juros a um estrangeiro, mas não ao teu irmão. Não lhe exigirás juros para que o Senhor, teu Deus, abençoe todos os trabalhos das tuas mãos na terra em que vais entrar para dela tomar posse» (Dt 23,20-21).

Um dos momentos definidores na origem da Modernidade foi a aceitação da usura que, durante muito tempo, foi rejeitada pela Igreja. Na Idade Média, via-se a usura como subversora da comunidade cristã. Ironicamente, os Judeus, cuja identidade estava associada à rejeição da usura, foram forçados a ser os estrangeiros que emprestavam dinheiro a juros. Estavam excluídos da nossa comunidade de irmãos e irmãs, de modo a desempenharem este papel necessário. Mas, com a grande expansão do comércio internacional no século XVI, quando o dinheiro acabou por estruturar o funcionamento de todo o nosso mundo, essa solução já não era viável. O fluxo do dinheiro animava a sociedade, a corrente sanguínea que transmitia vitalidade a todas as partes do corpo social, e daí a expressão «moeda corrente». Isto reforça a transformação de cada vez mais dons em mercadorias, como Karl Polanyi mostrou em The Great Transformation: The Political and Economic Origins of Our Time. As posses comuns terminaram, a terra tornou-se apenas mais uma mercadoria à venda, e não a dádiva de Deus. O comércio de escravos teve uma expansão maciça, e os grandes impérios apossaram-se do mundo. Hoje, os impérios ruíram, a escravidão está oficialmente proibida, embora ainda floresça em muitos lugares, mas a mentalidade do mercado domina mais do que nunca, sobretudo com a multiplicação dos pedidos de propriedade intelectual. Lewis Hyde afirma que, «desde o colapso da União Soviética em 1989, o Ocidente passou por um período de notável triunfalismo do mercado. Assistimos à transformação constante em propriedade privada da arte e de ideias que as gerações anteriores julgavam pertencer aos seus bens culturais comuns, e vimos a mercantilização de coisas que, há alguns anos atrás, pareciam estar fora do alcance de qualquer mercado. A lealdade das crianças em idade escolar, o conhecimento indígena, a água potável, o genoma humano – tudo está à venda».

Que significa para a Igreja, neste contexto, ser o Corpo e o Sangue de Jesus? O dom que Cristo faz do seu Corpo como alimento é um ato de pura gratuidade. Como pode isto ser visível na vida do seu Corpo, a Igreja? Não há espaço para indagar como é que a Igreja deve desafiar as estruturas económicas da nossa sociedade, libertar os países débeis dos acordos comerciais injustos, insistir nas metas do milénio, opor-se ao tráfico de mulheres e crianças, e assim por diante. Todos estes temas são importantes, mas dispomos de espaço apenas para umas quantas reflexões breves sobre o problema subjacente, que é o do poder. A mercantilização do mundo foi acompanhada por uma mudança no nosso uso e na nossa compreensão do poder. A ação de Jesus, na Última Ceia, oferece-nos uma visão alternativa do modo como o poder haveria talvez de fluir na comunidade humana.

Às vezes, a consagração do pão e do vinho tem-se encarado em termos de poder sacerdotal. Em Retrato do Artista quando Jovem, de James Joyce, o sacerdote pergunta ao jovem Stephen se nunca pensou em tornar-se sacerdote: «Nenhum rei ou imperador sobre a terra tem o poder do sacerdote de Deus...; o poder, a autoridade, para fazer descer ao altar o grande Deus do Céu e to mar a forma do pão e do vinho. Que poder tremendo, Stephen!» Mas o que vemos na Última Ceia é justamente o contrário, a impotência de Jesus perante as forças destrutivas deste mundo, que são uma potência para lá da sua compreensão. Escreveu Rowan Williams sobre Jesus:

«A renúncia ao poder perante a violência iminente da deserção e da negação permite, paradoxalmente, ao Jesus desta narrativa configurar e estruturar a situação, determinar a identidade (como convidados, como beneficiários de uma hospitalidade divina indefetível) dos outros agentes na história. E assim a sequência das transições origina, por fim, a transmutação dos recetores do pão e do vinho, de traidores em convidados, cujas traições futuras já estão abrangidas nas boas-vindas da aliança que Jesus leva a cabo»

O paradoxo é que Jesus toma posse deste drama, mediante um ato de expropriação. O seu poder reside na sua impotência porque, ao entregar-se às mãos dos discípulos, Ele transforma a história de um caso de vitimização – «devoram o meu povo, como quem come pão» (Sl 14,4) – numa festa compartilhada de liberdade.

Uma lei da narrativa bíblica é que aqueles que agarram o poder se tornam impotentes. Adão e Eva intentam, por um momento, a independência e colhem o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal para, segundo a promessa da serpente, se poderem tornar semelhantes a Deus. Acabam por se esconder nos arbustos e por negar qualquer responsabilidade. Adão aponta o dedo a Eva e, implicitamente, a Deus: «Foi a mulher que trouxeste para junto de mim que me ofereceu da árvore e eu comi» (Gn 3,12). Eva culpa a serpente. Os construtores da Torre de Babel tentam conquistar o céu e fazer um nome para si próprios, mas são dispersos sobre a face da terra. Acima de tudo, Satanás, que aspira a governar o mundo, mostra-se de todo impotente.

 

Timothy Radcliffe
In Ir à igreja, porquê?, ed. Paulinas
20.07.10

Capa

Ir à igreja, porquê?

Autor
Timothy Radcliffe

Editora
Paulinas

Ano
2010

Páginas
296

Preço
18,50 €

ISBN
978-989-673-104-5











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