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Inquietas asas e pés sujos

A narrativa da visita do anjo aos pastores é exemplo da provocação cristã. Um mensageiro surge na noite e envolve os pastores numa luz gloriosa. Inesperado encontro com o sublime, que seduz e atemoriza. Retirados à segurança do habitual, os pastores temem, para logo de seguida receberem o conforto do anúncio de uma grande alegria. No entanto, o anjo não é o sinal. O esplendor ali experimentado é uma passagem. Ficar preso a essa magnificência etérea é não perceber que o verdadeiro sinal, como diz o anjo, é “um recém-nascido deitado numa manjedoura”. Este anjo aponta a terra, não o céu. Imagino-o de indicador estendido em direcção a uma cidade. A provocação cristã enraíza-se aí, na destruição da imagem projectada de Deus. Quem esperaria um desconcertante Deus vulnerável e mortal? Como não sentiram os pastores a desilusão, depois da gloriosa manifestação do anjo, ao encontrarem apenas um menino deitado sobre palhas? Esta narrativa apresenta o “princípio da realidade” como o grande compromisso cristão. É no pó, na fragilidade, na carne, na relação concreta, no mundo precário com todas as suas falhas e necessidades, que se encontra a salvação. Como também indica o cântico dos anjos: o louvor a Deus compromete na procura da paz na terra. O movimento e ainda não acabado da Incarnação conduz à valorização do humano e do tempo presente como lugares onde se pode realizar o anunciado pelo anjo: a alegria. Contra o inumano, em todas as suas formas, o cristianismo propõe, como pintou Caravaggio, os pés sujos dos pastores, e até mesmo, como fotografou Francesca Woodman, os dos anjos.

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From Angel Series 2 (1977). Francesca Woodman

Paulo Pires do Vale

09.01.2009

 

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