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Teatro

"Fim de citação": prólogo e advertência

Uma 'retrospetiva' de 37 anos de trabalho e mais de uma centena de peças com que A Cornucópia marcou a História do Teatro em Portugal: “Fim de citação” estreou esta quinta-feira (18 de novembro), no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa.

É uma «advertência», um «prólogo» à nova temporada da companhia, uma «brincadeira», em tom irónico e de autocrítica que olha o passado para refletir sobre o presente do teatro. A dramaturgia e encenação são de Luís Miguel Cintra, que assume a autoria do espetáculo, construído a partir fragmentos de textos de autores representados pela companhia, de Beckett a Pirandello, passando por Heiner Muller, Louis Jouvet, Shakespe-are ou Tchekov.

Os cenários são de Cristina Reis, o desenho de luz de Daniel Worn d'Assunpção e as interpretações de Luís Lima Barreto, Dinis Gomes, Sofia Marques e do próprio Cintra que, ao "Jornal de Letras", sublinhou a necessidade de reivindicar um «teatro humano» e não «tecnicamente competente, mas vazio».

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Porquê um espetáculo de 'balanço' da Cornucópia, neste momento?
Ao longo da história da companhia, que já é bastante comprida, sentimos várias vezes a necessidade de fazer um ponto da situação. Os tempos mudaram e cada vez mais temos uma lógica de mercado, que é contrária à natureza do nosso trabalho. Por isso, tivemos mais uma vez necessidade de repensar o que fazemos. “Fim de citação” não nos fará mudar de rumo, até porque a lógica comercial não nos interessa absolutamente nada. Pelo contrário, representa uma reafirmação.

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De uma identidade própria?
Sim. Por outro lado, já quando fizemos “Miserere” havia sintomas de que estávamos a tentar fugir a uma situação um pouco perversa de um estatuto de garantia de qualidade em que de alguma maneira somos encerrados.

Fugir a uma certa 'institucionalização'?
Apetece-nos que o teatro continue a ter surpresa, provocação, alguma capacidade de intervenção e que não se torne num mero produto de consumo cultural. “Miserere” era um espetáculo bastante provocatório. E em “Fim de citação” fazemos uma brincadeira, com o maior 'desrespeito' pela letra dos autores que representamos. É uma espécie de prólogo ao resto da programação. Chamei-lhe mesmo uma advertência, como nos livros.

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Que espetáculos se seguirão?
Para esta temporada, pensamos fazer “A catatua verde”, de Schnitzler, e “O balcão”, de Genet, que na tradução de Armando Silva Carvalho se chamará “A varanda”. São dois textos que pensam o teatro não como uma coisa fechada em si própria, mas de um ponto de vista mais ontológico, que tem que ver com a relação da vida com a Arte, com as questões da verdade e da mentira, da ilusão e da realidade.
Ou seja, vamos falar do teatro, ou dos seus processos, como qualquer coisa que tem que ver com a própria existência humana. Antes, estava prevista uma coprodução com a Oficina do Centro Cultural Vila Flor, uma peça de José Tolentino Mendonça, mas falhou por razões administrativas e pensámos fazer “Fim de citação” para o substituir. E tem a vantagem de ser criado sobre o momento. Até porque estamos numa situação estranha, com os anunciados cortes orçamentais.

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Pode estar comprometido algum espetáculo?
Não sei se teremos hipóteses de cumprir toda a programação. Penso que “A catatua verde” está assegurado, até porque é uma coprodução com o Teatro Nacional D. Maria II.

Quando irá estrear?
Em fevereiro. Só recentemente foi comunicado às companhias que os cortes seriam de 23 por cento, por isso ainda não sabemos o que vão representar. Não será possível que a mesma programação seja feita com menos dinheiro, porque já trabalhamos com orçamentos apertados. Gostaria de não abdicar da programação até ao verão, porque há uma coerência interna com este espetáculo. “Fim de citação”, de qualquer maneira, funciona por si próprio.

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Por que optou por uma dramaturgia feita a partir de vários autores?
São autocitações, ou seja bocados de vários momentos da história da companhia. O espetáculo é construído a partir de diferentes textos que já abordámos, mas é sobre a natureza teatral.

Como ligou os diferentes fragmentos?
Parti de uma situação lançada por uma curta peça de Beckett, “Catástrofe”, que já fizemos há muitos anos integrada num espetáculo do mesmo género, “Céu de papel”. Põe em cena um ator, um encenador e um assistente de encenação e nós acrescentamos mais um personagem, o contrarregra, porque acho graça ao próprio nome. Trata-se de um ensaio, com todas estas personagens em cena e em conflito. E vão debatendo o que é o teatro e a sua relação com a vida. No fundo, há um ponto de vista mais radical, o de Genet, e outro que hoje nos parece menos radical, o de Lorca, presente em peças como “Público". Mas aparecem outras maneiras de fazer teatro, com citações de Shakespeare, Tchekov ou Calderón. Também de um texto que me parece fundamental, “A vida das marionetas”, de Kleist.

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E um poema de Luísa Neto Jorge.
É um poema que tem como epígrafe uma frase minha. É o núcleo de todo o espetáculo e será dito pelo próprio filho da Luísa e do Manuel João Gomes, o Dinis Gomes, que, de resto, está muito ligado à história da companhia, foi um dos príncipes em “Ricardo III”, quando era menino. O espetáculo tem também esse lado muito pessoal, que reinvindico num momento em que tudo nos empurra para uma profissionalização no mau sentido da arte de fazer teatro. Temos que reinvindicar que o teatro seja pessoal, humano e não transformado num produto tecnicamente competente, mas vazio.

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“Fim de citação” é um teatro de autor?
De algum modo, será um pouco contraditório, porque sempre disse que não queria ser um encenador / autor, mas um encenador/intérprete. Mas apeteceu-me fazer alguns espetáculos que fossem de autor. Assumo a sua autoria, mas evidentemente não é apenas meu. Só é possível com a cumplicidade dos atores e de outros colaboradores de sempre como a Cristina Reis ou o Daniel Worm.
Para mim, é um grande prazer que mesmo os mais novos, já senhores da sua arte, estejam em diálogo comigo, a fabricar em conjunto um espetáculo. E pela primeira vez, iremos ter estagiários no Schnitzler. E os alunos da Escola Superior de Teatro que quiserem podem acompanhar o processo de criação. Porque nós temos alguma responsabilidade na transmissão de uma certa maneira de encarar a profissão, que não seja apenas como uma fábrica de espetáculos, em que os atores são meros instrumentos ao serviço seja do que for.

 

Entrevista conduzida por Maria Leonor Nunes
In Jornal de Letras (17.11.2010)
Fotografias: Luís Santos (Teatro da Cornuncópia)
19.11.10

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