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Concílio Vaticano II

Memórias de um tempo novo

Há cinquenta anos, a 25 de Janeiro de 1959, o Papa João XXIII surpreendia a Igreja e o mundo em geral, ao anunciar a decisão de convocar um Concílio. O Página 1 olhou de perto para o que se passou no Concílio Vaticano II, iniciado em 1962 e concluído em 1965.

 

Adriano Moreira
Politólogo, sociólogo e professor

Adriano Moreira tinha 36 anos em Janeiro de 1959 e partilhou o sentimento geral de surpresa com a convocação do Concílio Vaticano II. Recorda que “as pessoas interessadas na evolução da conjuntura internacional, de todos os quadrantes, prestaram uma enormíssima atenção ao acontecimento”. Da doutrina fixada pelo Concílio, Adriano Moreira destaca três pontos que considera fundamentais:

1. “Do ponto de vista do interesse das sociedades civis e do Estado, a definitiva afirmação de que a doutrina da Igreja está acima e fora de quaisquer divisões partidárias ou de interesses ideológicos dos Estados. A doutrina é afirmada como um corpo de princípios, de valores, nos quais todos os poderes políticos e correntes podem procurar inspiração. Esta atitude representa um ponto final de uma longa experiência sobre a relação das duas faces da moeda e a mim pareceu-me que era uma das conclusões fundamentais do Concílio.

2. Depois, uma afirmação que não teve, talvez, a aceitação ou a divulgação que merecia, mas que hoje, nas circunstâncias do mundo, exige revisitação: a primazia dada aos pobres. A democracia cristã ainda tentou, designadamente em Portugal, que essa referência à proeminência dos pobres fosse aceite como lema, mas eu julgo que as circunstâncias de carência mundial em que estamos hoje recomendam uma revisitação.

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Entrada dos Padres Conciliares na Basílica de S. Pedro. 11.10.1962. Foto: © Bettmann/CORBIS

3. Finalmente, a abertura ao diálogo com a nova circunstância mundial, que depois se foi agravando. Foi como que antecipada essa visão de diversidade das culturas e do encontro de todas em liberdade - provavelmente,  um facto sem qualquer precedente na história. Que todas as áreas culturais falassem com voz própria. Abriu também caminho ao grande tema do nosso tempo, que é o do diálogo inter-religioso, para definir os valores comuns a partir dos quais poderá ser organizada a paz. Eu julgo que, além da inspiração do João XXIII, naturalmente não pode deixar de se pôr em relevo a intervenção de altíssima importância que foi a do Papa Paulo VI”.

 

Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista

Em 1959, Francisco Sarsfield Cabral tinha 20 anos e era aluno da Faculdade de Direito de Lisboa. Recorda que o anúncio do Concílio “gerou um grande entusiasmo e foi uma coisa um pouco inesperada. Depois, houve que esperar quase três anos para que o Concílio começasse, mas foi uma época em que tudo estava centrado no Concílio, nas discussões do Concílio e nos debates. Foi uma época de grande esperança.”

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Cardeais em trabalho. Outubro 1962

Sarsfield Cabral considera que “o Concílio trouxe muita coisa importantíssima e nova” e que “de certo modo, fez as pazes
com a modernidade, porque havia um certo conflito entre a Igreja e o mundo moderno. Naturalmente, a Igreja não pode aceitar tudo o que o mundo moderno acha bom, mas há muitos outros pontos que era preciso modernizar, como a liturgia. Foi das coisas mais sentidas. Lembro-me da missa em Latim, com o padre virado de costas para a assistência. Havia quem dissesse que em Latim é que era bom, porque as pessoas não percebiam e dava um ar mais de sagrado”...

“Havia discussões entre pessoas de outra geração, que não gostavam muito de mudanças, havia muito debate, mas eu acho que o Concílio correspondeu bastante às esperanças das pessoas”, diz, ainda, o jornalista, que recorda, também, que “depois, houve um período de uma certa confusão e de alguns exageros, mas nós, hoje, a uma distância já de 50 anos, lemos as coisas do Concílio e aquilo está muitíssimo actual. Continua perfeitamente adaptado ao mundo em que vivemos”.

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Mesa onde tinham assento os dez cardeais que presidiam ao Concílio. Outubro 1962

 

Margarida Maria
Superiora-geral do Instituto das Religiosas do Sagrado Coração de Maria

Aos 41 anos, a irmã Margarida Maria acompanhou de perto o anúncio e o desenrolar dos preparativos, nos anos que
antecederam o Concílio. Estava em Roma quando João XXIII “teve o grande rasgo de convocar o Concílio Ecuménico Vaticano II” e admite que recebeu a notícia com total surpresa, “até porque João XXIII era considerado um Papa muito simples, muito acessível, e não esperaria que ele tivesse aquele rasgo forte de convocação de um Concílio Ecuménico”.

Conta que “à medida que iam saindo rumores sobre as constituições, decretos ou declarações do Concílio, aumentava o interesse, nomeadamente pelo decreto Perfectae Caritatis – renovação e adaptação da vida religiosa – e pelo modo de pôr em prática os princípios gerais de uma renovação adaptada”.

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Sessão de abertura do Concílio. Outubro 1962

Agora com 91 anos, a irmã Margarida Maria refere-se ao Concílio Vaticano II como “uma graça extraordinária”, mas recorda como originou alguns tormentos entre as várias casas do Instituto das Religiosas do Sagrado Coração de Maria: “Nós somos um instituto de meados do século XIX, fundado em França. Tínhamos uma vida apostólica e missão exigentes, mas com muitas regras conventuais, o que gerava uma forte tensão nas irmãs. Com o Concílio Vaticano II, muitas irmãs, preparadas para o ensino e educação, não aguentaram a mudança e saíram do instituto, sobretudo na América e em Portugal”.

Lembra também os desentendimentos entre irmãs de diferentes países, quando se reuniram num Capítulo Geral especial, após o encerramento do Concílio Vaticano II: “Enquanto as irmãs da Inglaterra tinham ido para o Capítulo Geral dispostas a nada deixar mudar na tradição e princípios do instituto, as dos Estados Unidos queriam tudo mudar. Só o espírito e carisma do instituto eram intocáveis. Ora, a finalidade do decreto Perfectae Caritatis era justamente o aggionamento das constituições dos institutos como o nosso”. “Portanto, foi assim um momento de sofrimento grande em que nos agarrámos muito aos decretos, constituições, e sobretudo ao decreto da Perfectae Caritatis, que era o nosso decreto, o decreto dos religiosos”.

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Fiéis observam a procissão de entrada dos prelados na Basílica de S. Pedro. Outubro, 1962

 

Rui Osório
Padre, jornalista

Em 1959, Rui Osório tinha 18 anos e era estudante de Teologia. “Imaginava que aquele bom Papa João, que se parecia mais com um avô, até pela sua compleição física, seria um Papa de transição e não iria marcar com a renovação a Igreja Católica. No entanto, meses depois de ser eleito, em 25 de Janeiro de 1959, ele anunciou, com surpresa para todo o mundo, especialmente o católico, a convocação de um Concílio Ecuménico, que viria a ser o Vaticano II”, recorda.

“Para quem era jovem e na altura tinha sonhos altos de carácter teológico e de carácter pastoral, como futuro padre, isto foi uma grande surpresa, mas que causou uma imensa expectativa sobre o que viria aí. A princípio, não se imaginaria que seria de tanta profundidade a renovação da Igreja como acabou por ser com a realização do Concílio Vaticano II”, acrescenta Rui Osório, que dez anos mais tarde terminaria também o curso de Jornalismo na Universidade de Navarra.

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Alocução do Papa João XXIII durante a abertura do Concílio

Confessa que, inicialmente, “não alcançava o teor das mudanças, tanto mais que no início as comissões preparatórias do Concílio estavam muito marcadas pelo pessoal da Cúria Romana e pelo pessoal mais conservador. Só depois da realização do Concílio e já com Paulo VI - que sucedeu a João XXIII e veio a finalizar o Concílio -, a partir da segunda e terceira sessões, é que se começou a perceber que as linhas mestras do Concílio, que depois se traduziriam nas orientações teológicas e pastorais, eram mesmo de aggiornamento, como se dizia, usando uma palavra italiana que quer dizer renovação”.

 

José da Silva
Professor e jornalista

Soube pela rádio e pelos jornais do anúncio do Concílio e conta que, à sua volta, “a nota dominante foi a surpresa e o entusiasmo”. Então com 23 anos, José da Silva lembra que “ninguém esperaria do Papa João XXIII, do Cardeal Roncalli, pela sua idade, pela sua figura, que aparentemente era uma figura de passagem na Igreja, o anúncio de um Concílio que acabava por ter uma característica de algum radicalismo, isto é, de um certo corte com a Igreja tradicional, com a Igreja do passado”.

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Papa João XXIII em oração durante a abertura do Concílio. 9.10.1962

José da Silva recorda as expectativas que o anúncio lhe gerou: “jovem como era, entusiasta também, imaginava que a Igreja podia dar um salto relativamente ao passado. Embora não se possa dizer que a Igreja de Pio XII fosse uma Igreja retrógrada, era ainda uma Igreja que obedecia a um figurino de cristandade que não tinha muito a ver com uma Igreja de comunhão, de participação dos leigos. Portanto, nós imaginávamos, os mais entusiastas e os mais atrevidos, passo o termo, consequências mais profundas do que aquelas que acabaram por se definir – embora se possa considerar tudo o que aconteceu um movimento que abalou a imagem tradicional da Igreja e que pôs em questão os próprios conceitos e movimentos cristãos”.

Com esta urgência de mudança, recorda os anos que antecederam o início do Concílio como “um período de muita discussão, de muito entusiasmo e de alguma preocupação por parte de grupos mais tradicionalistas e mais temerosos”.

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Aula conciliar. 11.10.1962

 

Maria Barroso
Presidente da Pro Dignitate – Fundação de Direitos Humanos

Maria Barroso tinha 33 anos quando soube da convocação do Concílio Vaticano II e garante que ficou entusiasmada com o que aquele encontro poderia trazer de novo. Finda 14 anos antes a II Guerra Mundial, “que tinha semeado a morte e o sofrimento em grande escala”, Maria Barroso confessa que esperou que “a voz daqueles dois grandes Papas, o João XXIII e o Paulo VI, fosse ouvida e meditada”. Lembra que do Concílio saiu “uma chamada de atenção a todas as pessoas, crentes e não crentes, para a necessidade de modificar o mundo e acabar com os conflitos, com os ódios. Foi um apelo à unidade e à fraternidade muito grande. E eu tive fé que isso assim fosse”.

Nos momentos que antecederam a realização do encontro e mesmo no decorrer dos trabalhos, recorda que “não houve uma difusão muito grande do que se estava a passar”, até porque “vivíamos ainda num tempo de censura e as coisas não passavam livremente nos jornais”. Mas guarda na memória “um grande grupo de católicos progressistas que lutavam para que as mensagens transmitidas no Vaticano II fossem ouvidas e fossem vividas. E isso foi importante, porque entre a intelectualidade e entre os mais jovens isso produziu bastante efeito. Causou uma grande impressão e uma grande emoção, até”.

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Papa João XXIII durante a abertura do Concílio

Maria Barroso teve de esperar pela publicação dos documentos finais do Concílio Vaticano II, que leu “com vagar e com todo o cuidado”, para conhecer mais profundamente o que ali se decidira. Conta que ficou “muito impressionada” na altura e que ainda hoje revisita esses escritos, de vez em quando.

Considera que “foi um marco na história da Igreja, mas não só – na história do mundo também” e que “aquilo que lá foi dito se pode aplicar ao que se passa hoje”. E concretiza: “Estamos a viver numa sociedade eivada de ódios, de intolerâncias e é preciso modificá-la. Eu lembro-me que o Papa João XXIII dizia, em determinada altura, que a sociedade moderna se caracterizava por um grande progresso material a que não correspondia um igual progresso no campo moral. Daí enfraquecer-se o anseio pelos valores e crescer o impulso pela procura exclusiva dos gozos terrenos. Isto tudo aplica-se hoje, também, à sociedade em que vivemos. Temos, de facto, de contribuir para o progresso da sociedade, tal como foi preconizado no Concílio Vaticano II”.

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Papa Paulo VI. Dezembro 1965

 

Marcelino Ferreira
Capelão da Igreja do Vilar, Porto

Do momento exacto em que soube que se iria realizar um Concílio Ecuménico não se recorda, “até porque já lá vão 50 anos”, mas tem bem presente a altura: “tinha 26 anos e meio, estava no seminário, no último ano de Teologia, e recordo-me do dia 25 de Janeiro, quando o Santo Padre anunciou, da alegria que isso foi, não só para mim, mas para todos os meus colegas”.

Nos três anos decorridos até o começo do Concílio, Marcelino Ferreira e os colegas foram acompanhando “o que era possível pela imprensa e também pelas pessoas que iam trabalhando, porque várias estavam ligadas a estas comissões e iam dizendo alguma coisa, do que era possível comunicar”.

O que o Concílio viria a significar não poderia ser adivinhado “nem por mim, nem pelos meus colegas, nem por ninguém. Estávamos todos numa grande expectativa e com uma grande ânsia de que fosse algo de muito renovador, porque havia já tantos sinais que para aí indicavam, principalmente na parte litúrgica, que era já uma reforma vinda com Pio XII e que era muito ansiada”. A sociedade da altura não se terá apercebido de imediato da importância do momento que estava a viver – e Marcelino Ferreira questiona mesmo “se agora já se aperceberam” –, até porque “um Concílio demora muito tempo a ser assimilado”. Mas o padre não hesita em classificar o momento como histórico, pelas transformações que trouxe: “a formação sacerdotal, a unidade dos cristãos, a Igreja no meio do mundo, com todo o interesse pelos problemas do mundo – não num afastamento, mas numa comunhão e numa preocupação. Tudo isso são coisas que interessam, não só à vida interna da Igreja, mas a todo o mundo”, afirma.

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Missa presidida pelo Papa Paulo VI. Dezembro 1965

 

José Eduardo Borges de Pinho
Professor Catedrático da Faculdade de Teologia da UCP

Aos 12 anos dificilmente se tem uma noção clara dos acontecimentos mais relevantes que se passam no mundo, a não ser pelas reacções que se vai lendo nos adultos. Foi o que sucedeu a José Eduardo Borges de Pinho, que se lembra “perfeitamente de muitas pessoas olharem para o acontecimento que se iria realizar com muita esperança e com expectativa”.

A consciência da “importância histórica do que significa pertencer a uma geração que viveu o Concílio” só a teve mais tarde, quando se apercebeu “que a visão de Igreja que ressaltava dos documentos do Concílio era bastante diferente, bem mais viva, mais aberta aos sinais dos tempos. E isso foi fruto de um processo de que, se calhar, a maior parte das pessoas nessa altura também não tinha dado conta. Só no fim é que se pôde ver”.

O professor lembra que “a preparação do Concílio foi, naturalmente, muito nos bastidores” e sublinha que só a concretização do Concílio revelou a dimensão das mudanças: “o acontecimento do Concílio Vaticano II veio ao de cima e mostra toda a sua potencialidade exactamente na sua realização, porque os documentos que entraram no Concílio são ainda muito marcados pelo passado. O que vai sair do Concílio três anos depois é, realmente, o fruto do próprio trabalho conciliar e da acção do Espírito Santo, também, na própria reflexão, no estudo e na oração dos padres conciliares”.

 

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Arcebispo Primaz de Braga e Bispo do Porto evocam Concílio

Filipe d'Avillez (com Catarina Santos e Letícia Amorim)

in Página 1
Fotografia: Life (excepto é indicada outra origem)

04.02.2009

 

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