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Exposição

Urbano - neste meio de mar

O Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, apresenta até 29 de janeiro a exposição “Urbano – neste meio de mar”.

Esta exposição antológica «reúne trabalhos criados entre 1996 e 2011 e assenta essencialmente em três núcleos, correspondendo cada um deles a uma técnica ou suporte: papel, tela e gesso», explica o site do museu.

A seguir, apresentação do pintor e da obra pelo diretor do Museu Carlos Machado e pela cocuradora da exposição.

 

A inquietação das águas
Duarte Manuel Espírito Santo Melo

Urbano pinta como sente. A sua pintura deixa-se povoar por um denso silêncio que reconhece a emancipação da verdade.

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Urbano, "neste meio de mar", leva consigo a poética, que abre brechas e clareiras nos públicos do Museu Carlos Machado, proporcionando um encontro com a beleza desvelada. Ficamos surpreendidos pelo espectro inusitado da sua espontaneidade plástica e pela singular trajetória criativa, próprias de um grande artista, nascido no meio deste mar.

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A arte tem de viver da verdade. No dizer de António Tápies, tem de se mostrar ao Homem que é preciso manter a comunhão com a natureza e garantir uma certa mística. Mística que Urbano sabe guardar, pelas narrativas que vai construindo, logo de início, desde a interioridade das águas. É que a sua pintura identifica a sacralidade mistérica da existência, quando reescreve ininterruptamente as sucessivas litanias inocentes e imaginativas do princípio da Terra e do Mar.

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Este Artista, que normalmente pinta em grandes formatos, recorre à pigmentação orgânica da ilha, trazida no regaço com os primeiros frutos. A sua originalidade tem a força do húmus, e por isso dispensa a metáfora da doce lagoa ou do paraíso perdido. Urbano pinta com a totalidade das entranhas o sublime e executa com rigor os seus desenhos, sem nunca se desviar da essência ou da primeira energia que trespassa toda a sua obra. O seu trabalho repete e desencadeia lógicas numa verdadeira dialética Hegeliana, puxando-nos por dentro, atirando-nos para outras grandes margens, onde a mancha se revela num figurativo primordial.

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Nascido em S. Miguel, Urbano vive e alimenta-se da necessidade de conhecer mais de perto o seu interior, avizinhando-se do território do silêncio que arde e que cruza a solidão. A diversidade do seu trabalho - pintura, desenho, escultura e gravura - exposta no Museu Carlos Machado, provoca e transfigura a memória, como que emergindo de um "banho de alcaçarias".

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Uma obra que incorpora estilhaços de matéria orgânica, saída das cinzas ou da inquietação das águas, interrogando sempre a profundidade do ser Humano, o seu destino e o fim da História.

 

Com Urbano, neste meio de mar
Lúcia Marques

Trouxemos o título emprestado de um verso que o poeta Emanuel Jorge Botelho escreveu - também a propósito do artista Urbano - para dar nome à exposição que o Museu Carlos Machado lhe quis dedicar, e resolvemos propor uma viagem antológica pela vasta obra que tem sido produzida, selecionando essencialmente a segunda metade dos cerca de 30 anos que constituem a sua carreira artística.

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Assim se fez "neste meio de mar", de onde Urbano é natural (n. 1959, ilha de São Miguel) e no qual se situa o Museu onde também fez a sua primeira exposição individual, em 1983. É, por isso, um regresso especial à 'casa' que o mostrou na fase inicial do seu percurso, e que agora nos permite dar a conhecer uma parte significativa dos últimos dezasseis anos da sua produção artística (1996-2011), incluindo novas peças especificamente criadas para esta mostra.

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Urbano é um pintor com orgulho de o ser, mesmo num tempo em que os artistas não se querem reféns de uma única técnica ou disciplina. Não é que ele não utilize várias técnicas disciplinares, porque utiliza - tal como o demonstram nesta exposição as suas gravuras e esculturas -, mas essas variações do modus operandi partem sempre de inquietações do domínio da pintura. São explorações da matéria e de processos criativos que, em última instância, resultam de uma pesquisa pictórica sistemática e meticulosa.

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Foi esse aspeto profundamente experimental que resolvemos privilegiar neste momento, conscientes de que nas anteriores apresentações públicas da obra de Urbano a coerência dos temas e a consistência das abordagens levou a primazia. Foram contextos precisos que, propositadamente, relegaram para a intimidade dos seus dois ateliers - um na Ilha de São Miguel, outro em Lisboa - a maior parte dos trabalhos em que ensaiou perspetivas 'pontuais', senão mesmo "antiacadémicas", do seu principal foco de interesse.

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E que interesse' absoluto' é esse? A vida, com natureza e humanidade incluídas, na sua complexa simplicidade. E poderíamos ainda acrescentar em jeito de metáfora: a pintura, e a exigente tarefa de conciliar toda a sua história com a liberdade criadora de cada indivíduo.

Usamos aqui o termo "antiacadémicas" porque estas obras a que nos referimos (as tais, de caráter mais 'pontual', que aqui destacamos) contrariam deliberadamente o cânone da pintura mais virtuosa, limpa e com paletas pré-definidas de materiais considerados mais 'nobres' (óleo, gouache, etc).

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Dir-nos-ão então que a pintura de Urbano já se serve de matérias que passam a materiais - como a terra, os ramos, as folhas -, e que já outros mestres tutelares as usaram. É isso mesmo. Mas até esta exposição conhecíamos de Urbano uma vasta obra que desdobrava cada tema até às suas possibilidades mais ínfimas, sempre através de uma pintura gestual, texturada por materiais sucessivamente acoplados, e da adoção de um conjuntos de cores e tons que se tornavam o elo de ligação da própria série. Conferiam-lhe uma identidade própria. E percebíamos logo de que série se tratava.

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O que mudou? Apenas a escolha do que se dá a ver, porque as obras já lá estavam, (nalguns casos) feitas há muito tempo atrás, à espera de serem vistas.

Essa é a grande preocupação desta exposição: dar a ver a obra de Urbano a partir de outras perspetivas, proporcionando um conhecimento mais amplo das suas propostas artísticas. Tínhamos as condicionantes habituais de uma exposição (espaço, recursos humanos e financeiros disponíveis), mas também tínhamos o que faz com que uma exposição aconteça: uma equipa com vontade de a fazer.

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E assim começaram os preparativos há pouco menos de um ano atrás: visitas aos ateliers do Urbano e à Galeria 111 (que representa o artista desde 1997), reuniões com o Museu, trocas de emails entre Ponta Delgada e Lisboa, numa partilha de desejos, inquietações, diferentes e coincidentes visões do projeto. Tudo para chegarmos até aqui, ao que este catálogo representa, ou seja, até vocês: leitores, visitantes, pessoas que também assumem a arte e a cultura como partes integrantes (e integradoras) da vivência humanista.

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A viagem que vos propomos atravessa, como tal, um itinerário de vida e foi idealizada como um percurso que une dois espaços já de si ligados pela sua própria história religiosa, mas também pelas novas funções culturais que entretanto desempenham na cidade de Ponta Delgada.

Referimo-nos à Igreja do Colégio: outrora pertencente ao Colégio dos Jesuítas, sendo atualmente o Núcleo de Arte Sacra do Museu Carlos Machado, onde também se acolhem exposições de arte contemporânea, que assim trazem novos públicos até à instituição; e ao Núcleo de Santa Bárbara: antigo Recolhimento de Santa Bárbara, que agora dispõe de três salas destinadas às exposições temporárias do mesmo museu. Este antigo Recolhimento inclui ainda a Igreja de Santa Bárbara, recentemente restaurada e igualmente utilizada para instalar obras de arte (função que, aliás, as "igrejas católicas" sempre tiveram), nomeadamente as obras que Urbano produziu especificamente para esta exposição individual.

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Comecemos por estas obras mais recentes. São todas feitas em gesso, adicionando-se-lhe, consoante o caso, prata, ouro, bivalves, videiras, livros e telas, entre outros elementos que se tornam mais indistintos. Elegem um material que já antes aparecia numa das suas variantes (gesso líquido) nas pinturas sempre matéricas de Urbano e em muitos dos seus desenhos texturados, mas que agora dá corpo à própria obra. Sendo um material de secagem relativamente rápida, que se molda em vez de se esculpir, implica decisões rápidas e muitas vezes irreversíveis, mas por isso mesmo também absorve os próprios avanços e recuos do ato criativo numa amálgama algo demiúrgica.

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Estes gessos retomam motivos e objetos presentes nos vários ciclos temáticos da obra de Urbano - a árvore, a onda, o peixe, a figura humana, o livro, o vaso-cálice e foi a partir deles que olhámos para trás e fomos escolher outros trabalhos que complementassem um panorama seletivo, sem esquecer as tais (outras) perspetivas mais pontuais, profundamente libertadoras, e menos conhecidas por parte da generalidade do público.

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Considerámos, desde logo, essencial usar as três salas contíguas à Igreja do Núcleo de Santa Bárbara para diversificar a amostragem das múltiplas propostas que Urbano tem concretizado: da pintura à gravura, passando pelo desenho e colagem, sem esquecer todos os seus interstícios.

Projetámos uma primeira sala que mostra, pela primeira vez, o gigantesco livro de gravuras feito por Urbano em 1997, quando estudava na Slade School of Fine Art de Londres, fruto da cumplicidade com o grande mestre gravador Bartolomeu Cid dos Santos. E a acompanhá-lo, escolhemos vários exemplos de gravuras em água-forte, e até uma xilogravura, assumindo o ano de 1996 como o ponto de partida para a escolha das obras a integrar nesta antológica. Há apenas uma exceção a esta regra: uma "Cabra" (1994) invulgarmente pintada a óleo sobre madeira, e que para ampliar o animalário a que Urbano esporadicamente se dedica, acabou por ser incluída na montagem da exposição. Mas é, de facto, a exceção que confirma a regra. No mais, cumprimos escrupulosamente as balizas temporais então definidas: 1996-2011.

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Trouxemos assim, ainda para esta primeira sala do Núcleo de Santa Bárbara, um assinalável conjunto de pinturas, desenhos e colagens, paradigmáticas de algumas das principais séries de trabalhos de Urbano: "Do Mundo e do Ser" (1996-1997), "No Princípio" (1996-2000), "Da Humanidade" (1997-2002), "Os Primeiros Frutos" (1999-2000), "As Flores e as Cinzas" (2008) e "O Terceiro Dia" (2011).

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Com a colocação de uma vitrine ganhámos espaço para também mostrar vários livros, cadernos e esboços do artista, com soluções gráficas e estéticas amplamente diversificadas. Do registo naturalista, a uma gestualidade expressionista, e alguma aventura por caminhos algo abstratos ou até 'descomprometidos' (certamente pelo prazer 'do fazer'): tudo glorifica a pintura enquanto exercício que se resolve no seu próprio ato (os desenhos de Urbano nunca permanecem estudos preparatórios, ganham sempre autonomia).

E encaminhámos para a segunda sala o animalário que referi antes, destacando aí sobretudo a série "As Últimas Aves" (2006) e "Europa 2001" (precisamente, de 2001). É um espaço de respiração no percurso expositivo. Só assim poderíamos preparar o visitante para o que se segue... a terceira e última sala do Núcleo das antigas Recolhidas, para a qual guardámos duas das séries mais importantes na obra de Urbano: "Palio" (2002) e "O Tempo Suspenso" (2004-2005), ambas representativas da sua admiração pela cultura italiana.

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Se "Palio" é uma ode ao movimento, devolvendo-nos impressões episódicas das tradicionais corridas de cavalos numa paleta quase monocromática (que nos direciona precisamente para o cinetismo de cada ação), "O Tempo Suspenso" eterniza a contemplação prazeirosa das personagens e paisagens de uma Veneza colorida e aparentemente imutável, a modelo perfeita.

Juntámos desenhos e telas e também livros e cadernos, e de algum modo partilhamos ali (e aqui) a 'viagem a Itália' do Urbano. Quisemos que o visitante vislumbrasse a imensa produção que resulta de cada tema a que Urbano se entrega de modo tão intenso, acentuando através destas duas séries dois caminhos diferentes no enfoque e, no entanto, convergentes no processo.

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Por fim, assumimos o Núcleo de Arte Sacra como um lugar de síntese do universo plástico do artista e, tendo a honra de inclusive poder usar de modo inédito alguns dos nichos aí existentes, privilegiámos obras emblemáticas do ecletismo que temos vindo a sublinhar, e que, também devido à sua escala, não poderíamos mostrar noutro dos espaços expositivos disponíveis. A nave do antigo colégio dos Jesuítas passou assim a ter outros cohabitantes temporários, atualizando a própria história da pintura no seio do museu.

Da "Memória dos Banhos das Alcaçarias" (1996) até "As Últimas Flores" (2008), revisitamos também "Do Mundo e do Ser" (1997), "Girassóis" (1998), "No Princípio" (2000), "Palio" (2002), "Atelier com O Tempo Sacralizado" (2003), "Inocente" (2003), "O Tempo Suspenso" (2004) e "As Últimas Aves" (2006).

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É todo um léxico visual e textual que confirma o caráter cíclico dos temas e que torna novamente evidente a dimensão poética da própria obra de Urbano (certamente cúmplice da sua desmesurada paixão pelos livros). Mas não a esgota: apenas partilha uma das suas ilhas criativas, e de um modo tão prazeiroso quanto doloroso, porque é sempre de uma escolha que se trata.

Ou melhor dito, e pedindo novamente 'emprestadas' as palavras ao brilhante poeta Emanuel Jorge Botelho: "Tudo coisas simples, afinal / como o sal, calado / de uma lágrima".

 

Museu Carlos Machado
© SNPC | 08.01.12

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