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Uma pátria, tantos mundos: escultor José Rodrigues na revista "Humanística e Teologia"

A revista "Humanística e Teologia", publicada pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (Porto) lançou recentemente uma edição dedicada ao escultor José Rodrigues.

A primeira parte do volume, cerca de 50 páginas, contém artigos e uma entrevista ao artista, começando por "Uma pátria, tantos mundos. Brevíssimo ensaio biográfico sobre José Rodrigues", de Nuno Higino, que apresentamos neste artigo.

"«Sou um personagem do Velho Testamento». José Rodrigues e a Arte Sacra" é o título que encabeça uma entrevista de Arnaldo de Pinho ao criador, seguindo-se, do mesmo autor, "Da Cruz de Cristo à natureza de Deus", "José Rodrigues nos lugares sagrados da arte" (Laura Castro) e "Do Sagrado ao Humano e do Humano ao Sagrado" (Hugo Barreira e Maria Leonor Barbosa Soares).

Na terceira secção da revista, intitulada "A várias vozes", António Joaquim Oliveira escreve sobre "Do silêncio de Deus ao lugar do desejo", José Manuel Cordeiro dirige-se "Ao Mestre José Rodrigues" e Castro Guedes pergunta "Que posso, que sei eu dizer do Zé Rodrigues?".

"Teoria das Lágrimas" (Mário Cláudio), "Rodrigues, o intérprete" (Manuel de Novaes Cabral) e "Gostar - sem complexo de verbo" (Nassalete Miranda) concluem a terceira parte da publicação.

 

Uma pátria, tantos mundos
Nuno Higino

Brevíssimo ensaio biográfico sobre José Rodrigues, a partir de várias conversas ocorridas em janeiro de 2008

José Rodrigues diz que não se lembra muito bem do ano em que nasceu [nós sabemos, ele sabe, que nasceu em 1936]. Agrada-lhe mais recordar que nasceu em Luanda e lhe foi dada por madrinha Nossa Senhora da Conceição. O seu pai, natural de Alfândega da Fé, foi para Angola com 14 anos e dez tostões no bolso: como estes moços que há poucos dias vieram de Marrocos e, sem o mais pequeno gemido legal, foram recambiados para o seu país [referência aos vinte e três magrebinos que deram à costa algarvia, na ilha de Culatra, em dezembro de 2007 e foram repatriados pelo SEF]. Os africanos acolheram-nos durante séculos para serem explorados em sua própria casa. Agora chegam meia dúzia numa barcaça e são repatriados. Por estas e por outras, José Rodrigues diz que aprendeu o sofrimento em África e que as suas obras são uma espécie de esponja que absorveu e reteve as imagens mais cruas dessa realidade. Foi em Angola que, ainda menino, assistiu a uma cena de uma tremenda injustiça: na fazenda explorada pelo pai, onde se plantava café, viu uma criança a ser agredida por um capataz. Sentiu uma revolta indescritível que acompanhou até ao dia de hoje, como um fantasma que a cada passo regressa, desinquieta e assusta.

Chegado a Angola, o seu pai instalou-se numa localidade remota do interior. Mais tarde seguiria a sua mãe. Durante anos foi a única mulher branca dessa região isolada onde primeiro residiram. Coabitavam com os animais selvagens, junto a um rio: as pacaças e os jacarés iam comer à porta de casa, A floresta era um prolongamento da casa ou a casa um prolongamento da floresta, Deste lugar só tem memória oral. Conserva dela uma aura quase mítica, só possível naquelas coisas que se aprendem através do relato dos outros. Alguns anos mais tarde os seus pais mudaram-se para Luanda onde nasceram os filhos.

Aos oito anos veio pela primeira vez a Portugal com os pais. Conheceu Alfândega da Fé e comeu as primeiras cerejas. Os pais regressaram mas ele ficou cerca de um ano em casa de familiares. Começou aí a carregar o peso dessa palavra que parece ser mais pesada do que qualquer destino: saudade. Para não ser esmagado, regressou novamente a Angola. O pai queria fazer dele gestor dos seus negócios mas José Rodrigues só queria meter as mãos na terra e amassar o barro. Andava sempre sujo e o pai só não o escondia debaixo da mesa porque era seu filho: 'este meu filho, coitado, só está bem a mexer na terra preta do quintal', desculpava-se perante as visitas. Os seus irmãos [Irene, a mais velha, e Jacinto, o mais novo] eram mais dados aos estudos. Zé, o irmão do meio, só pensava no barro e nos bonecos. Quando fez a sua primeira escultura a sério, um busto de Camões, saiu no jornal. Aos 10 anos tinha o seu nome no jornal e aí se afirmava que tinha nascido um escultor. Às vezes os jornais acertam

Um dia um professor do Liceu disse ao pai que era melhor mandá-lo para a Metrópole estudar Escultura. O primo Jacinto, gerente dos negócios do tio, corroborou: 'aqui o rapaz não dá nada!'. Este primo, o poeta António Jacinto, teve uma grande influência sobre José Rodrigues, até em termos políticos: fornecia bananas aos guerrilheiros do MPLA, sem o tio saber, e tornou-se um dos fundadores do Movimento independentista.

Matriculou-se na Escola Soares dos Reis, no Porto. Nos primeiros tempos sentia frio, um frio intenso, fundo, até aos ossos: já eram saudades de África. Luanda estava demasiado colada à sua pele para que a transição acontecesse pacificamente. Quando chegou às Belas Artes, alguns anos mais tarde, ainda não estava afeiçoado ao clima: logo no primeiro ano, teve negativa a Escultura. Desanimou. Pensou desistir, desaparecer, mas um transmontano que estendeu e ancorou raízes em África não podia ser vencido por 'dá cá aquela palha'. Teimou. Acabou o curso como um dos 'quatro vintes', juntamente com o Armando Alves, o Jorge Pinheiro e o Ângelo de Sousa. A vida universitária não o entusiasmava, mesmo assim. Durante cerca de dez anos foi professor na Escola de Belas Artes, mas a disciplina cansava-o. Um dia, ao transpor a entrada principal, deparou com dois gessos reproduzindo 'os escravos' do Miguel Ângelo. Pensou: 'ainda vou acabar como estes, amarrado"...'

Em conjunto com amigos, entre eles os outros 'vintes', começou a inventar a Cooperativa Árvore. Aconteceu nos finais da década de 60. As reuniões no Majestic tinham a presença da PIDE a uma certa distância. Inventavam conspirações fictícias para os provocar. Foram chamados à pedra algumas vezes mas nunca foram presos, pelo menos nesta altura. O objetivo da Árvore era criar um espaço de liberdade para os artistas. O Porto era quase um deserto cultural e era necessário plantar uma árvore no meio do deserto.

O 25 de abril apanhou-o numa reunião em Belas Artes em que se punha em causa a orientação da Escola. A meio da reunião ouviu-se uma agitação de alunos no exterior e José Rodrigues veio espreitar à janela, longe de imaginar que aquele gesto simples de abrir uma janela anunciava a chegada de uma aragem fresca, esperada, necessária. 'Ó Alexandre [Alves Costa] aconteceu qualquer coisa. Parece que anda por aí a revolução ... '. Acabou a reunião e saíram à caça dos 'bandidos', uma atitude que hoje não aprova mas que no contexto de exaltação revolucionária em que aconteceu tem as suas atenuantes.

Uma noite, em pleno PREC, telefonaram-lhe a dizer: Ó Zé, rebentaram a nossa Árvore'. José Rodrigues tinha saído da Cooperativa uma hora antes e regressou de imediato para ver os estragos causados pela bomba colocada por mãozinha da 'reação'. A Árvore estava derrubada no meio do deserto da noite, mas a seiva ainda circulava em alguns ramos. Era necessário proteger esses ramos sobreviventes. Alguns dias depois José Rodrigues arrastava-se pela rua, ainda abalado pelo sucedido, e perto do jardim de S. Lázaro um carro parou ao seu lado. Assustou-se. Tem ideia que era um carro prateado. E se não era devia ser porque para nesta história fica bem um carro prateado. A janela abriu-se e um braço saiu por ela como um ramo: 'Toma, Zé, e coragem... '. Era alguém que não conhecia, ou não reconheceu, e que lhe confiou assim, inesperadamente, um primeiro donativo para a reconstrução da Árvore. Às vezes canta, o José Rodrigues. Nesse momento veio-lhe à memória o poema de Carlos de Oliveira cantado pelo Manuel Freire: 'Não há machado que corte ... '

'Eu não descobri o convento, fui descoberto', diz José Rodrigues quando se fala do convento de S. Payo, em Vila Nova de Cerveira. Um dia foi com os filhos do Pulido Valente passear pelo monte de S. Payo. Do alto avistaram aquilo que parecia ser uma ruína. Desceram, meteram-se no meio do matagal, afastaram as silvas. No meio do silvado havia uma clareira. Veio a compreender depois que essa clareira era o claustro do convento. Aí pastava uma junta de bois. Bois piscos, com uns cornos egípcios. Teve medo, por pensar que estava enredado no meio de algum sonho místico, e fugiu de regresso ao cume. Mas a ruína meteu-se-lhe na cabeça, nos pés, nas mãos, nas veias, na alma. Meteu-se por todo o lado como uma infiltração de água difícil de estancar Passados uns dias voltou para se certificar de que não tinha sido vítima de uma visão. Desceu devagar. Como quem se aproxima de uma sarça ardente. A ruína estava lá, mas já não os bois com cornos egípcios. José Rodrigues acha que o encantamento perante as coisas veio consigo de Angola. A magia, a fogueira, o atirar sal para a fogueira para dar mais chama. Foi o que fez: arqueou a mão e libertou um punhado de sal. Comprou a ruína e reconstruiu o convento.

Outro lugar onde costuma regressar é Alfândega da Fé: quando tem necessidade ou lhe apetece. No tempo das cerejas apetece-lhe sempre. E se de África veio o encantamento, de Alfândega vieram as mulheres de preto a cheirar a azeite. Vieram as alheiras a pingar sobre a lareira. No fim do jantar, em miúdo, a família reunia-se debaixo do fumeiro, ao redor do fogo e do fumo. Enquanto os mais velhos rezavam o terço, os mais novos rezavam para que a próxima gota caísse sobre uma determinada cabeça. Havia uma prima, a quem chamavam 'santa', que todos os anos vestia o S. Sebastião para a procissão da terra. José Rodrigues gostava de assistir ao ritual. Gostava de olhar a azáfama, a paciência e o fervor desses dias: as pessoas a fazerem de figuras e as figuras a serem mais do que pessoas. Algumas vezes também foi vestido de santo ou de anjinho Infelizmente não há fotografias. O que o chama a Alfândega é a memória: 'Oh, Zezinho, ainda conheci o seu paizinho ... '. A memória e as cerejas. As cerejas são um fruto sensual. Bonito e fresco. Fazem-lhe lembrar as princesas mouras: encantadas e inacessíveis. A autarquia construiu um Centro Cultural, com projeto de Alcino Soutinho, e deu-lhe o seu nome. Em breve irá acolher algumas obras suas.

José Rodrigues não sabe se o que traz metido no corpo é um anjo ou o diabo. Mas alguma coisa é. Recentemente comprou uma antiga fábrica de chapéus, situada na Rua da Fábrica Social, entre as ruas de Santa Catarina e do Bonjardim, no Porto. As coisas em que se meteu até hoje nunca tiveram uma realização do tamanho do sonho que as inspirou. O tempo degrada os sonhos. Mesmo sabendo disso, volta a sonhar com uma comunidade de criadores, com ateliês e espaços expositivos que sirvam as diversas artes e a diversidade das manifestações artísticas. Talvez venha a ser uma Fundação. Enquanto vai levantando mais esta tenda, José Rodrigues lembra-se das palavras sábias de Agostinho da Silva a propósito do projeto para o convento de S. Payo: 'Zé, tem sempre o barco preparado para a viagem! Tem as cordas bem esticadas, as velas bem cosidas. Quando o vento soprar de feição estarás pronto, partirás. Não faças muitos projetos. Podem atrapalhar aqueles que te estão verdadeiramente destinados'. Agostinho da Silva só tinha um gato e muitos livros. Era um homem despojado e sábio. Quando se marra obsessivamente num projeto pode esquecer-se outro que está mesmo ali ao lado e, esse sim, é o que nos está destinado. A Fábrica Social é um sonho, mais um sonho, outro sonho. José Rodrigues não sabe onde nem como vai vivê-lo. Pode ser ali, naquele espaço que vai ganhando vida e criatividade, ou pode ser noutro lado qualquer: o mundo é tão grande!

 

 

 

Nuno Higino
In Humanística e Teologia, ed. Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (Porto)
02.12.12

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José Rodrigues

 

 

 

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