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Pré-publicação

"Um mundo que falta fazer", antologia de crónicas de frei Bento Domingues

A editora Temas & Debates lança esta sexta-feira, 7 de março, nas livrarias o livro "Um mundo que falta fazer", antologia de crónicas que o frei Bento Domingues tem publicado semanalmente nos últimos anos no jornal "Público".

O textos do religioso dominicano nascido em Travassos (Terras de Bouro), em 1934, são organizados pelo jornalista António Marujo e pela irmã Maria Julieta Mendes Dias,

Estudante de Filosofia em Fátima e de Teologia em Salamanca, Toulouse e Roma, viu-se obrigado ao exílio em 1965 devido à forma como exerceu o cargo de assistente da Juventude na paróquia de Cristo Rei no Porto (1962-63)

De regresso a Portugal, lecionou em escolas católicas e laicas de Fátima, Lisboa e Porto, e nos anos finais do regime ditatorial, que terminou a 25 de abril de 1974, participou na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos.

De 1998 a 2001, dirigiu a organização do Curso de Ciência das Religiões, na Universidade Lusófona. Publicou quatro livros: "A Humanidade de Deus", "A Igreja e a liberdade", "As religiões e a cultura da paz" e "A religião dos portugueses".

Do novo livro (500 pág, 22,20 €), avançamos em pré-publicação a introdução, assinada pelos coordenadores da obra, além de uma das crónicas e o índice.

 

Para uma alegria mais completa (Apresentação)
António Marujo, Maria Julieta Mendes Dias

A 28 de janeiro de 2001, sob o título «O centro na periferia», frei Bento Domingues escrevia assim: «Foi rebentado o Muro de Berlim. É preciso quebrar a redoma de vidro dos privilegiados. Os gritos e as denúncias, as recomendações, as esmolas, os remendos, as solidariedades e os perdões da dívida não bastam. São urgentes propostas discutíveis que coloquem o centro na periferia. Cristo não nos deixou uma teoria para realizar essa deslocação. na periferia estabeleceu a sua tenda.»

Foi isto escrito doze anos antes de o cardeal Jorge Mario Bergoglio ser eleito Papa com o nome de Francisco e ter começado a falar da importância de dar atenção às periferias – seja na igreja seja na sociedade e na política.

Uma das coisas que impressiona em frei Bento Domingues é, precisamente, a sua capacidade de perscrutar sinais do porvir no presente que nos envolve. Desde há muito que a sua voz lúcida, livre e bem‐humorada nos habituou a esse exercício – seja nas suas crónicas semanais, seja em livros ou em intervenções públicas. O seu modo de fazer teologia na praça pública há muito que o converteu numa voz original e incontornável na sociedade portuguesa e na Igreja Católica, em particular.

Seria, assim, uma lacuna grave para a cultura portuguesa e a teologia cristã se não pudéssemos voltar a reler muitas das crónicas que, desde há mais de vinte anos e de mil semanas completadas neste final de 2013, frei Bento Domingues nos dá a ler no Público, domingo a domingo.

O exercício de escolha desses textos, sabemo‐lo, não é fácil, pela qualidade generalizada das crónicas. Tendo em conta que as crónicas dos primeiros quatro anos e meio (1992‐1996) foram já editadas em quatro volumes, pela "Figueirinhas", ao longo da década de 1990, fizemos uma escolha dos restantes dezasseis anos, selecionando crónicas relativas a questões sociais e políticas. Para este trabalho inicial, tivemos a preciosa ajuda de Leonor Sousa, do Centro de documentação do Público, a quem deixamos aqui um agradecimento reconhecido e grato. Outros volumes deverão seguir‐se, relativos a outros temas, embora tenhamos claro que ficará de fora uma parte significativa dos mais de mil textos já publicados até esta data.

***

No seu labor teológico, Bento Domingues assume uma interrogação permanente sobre as razões da sua fé. Nada o deixa sossegado, porque, para ele, o cristianismo é uma provocação constante: provocação pessoal, provocação aos poderes e ao próprio modo de se entender a religião. A fé cristã de Bento Domingues é inconformista, não se quer deixar adormecer.

Isto é verdade quando os seus textos falam da Igreja ou do poder religioso, mas também quando trata das questões sociais ou políticas. Nesta matéria, frei Bento tem tido a preocupação de denunciar o escândalo a que o desnorte (ou o norte muito bem orientado só para o interesse de poucos) da política e da finança nos têm conduzido.

Há mais de uma década, em julho de 2003, escrevia ele, evocando outra figura maior da Igreja e da cultura (o padre João Resina Rodrigues), que há um «fosso crescente e vergonhoso entre ricos e pobres, marcado por números assustadores» e que a «genuína convicção cristã» é a de que «não há entendimento possível com Deus, se continuarmos de olhos cegos para o mundo dos pobres». E rematava: «Deus nos livre da moda atual, que esquece as exigências de transformação da vida interior e as da transformação da sociedade.»

A direta implicação entre uma fé que tem a pessoa como horizonte e a intervenção política que deve concretizar essa dimensão é uma das suas insistências. Numa outra crónica mais recente (27 de novembro de 2011), frei Bento alertava para a desumanidade que começa «quando a cura das finanças não se importa com a sorte das pessoas».

A humanidade «é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão», escrevia João Paulo II no n.º 14 da sua primeira encíclica, O Redentor do Homem (1979). Bento Domingues soube lê‐lo desde há muito, não desligando a sua condição de frade dominicano, padre e teólogo do compromisso permanente com os problemas dos seus concidadãos. O que traduziu em coisas tão diferentes como a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos do regime fascista, como na denúncia mais recente de que, se aceitarmos «a linguagem perversa de que não há alternativas [à atual deriva político-financeira], deixamos o campo livre ao determinismo mais imbecil, optando pelo grau zero do pensamento, desistindo da condição humana».

No livro Frei Bento Domingues e o Incómodo da Coerência (Paulinas), que recolhe um conjunto de textos de diferentes pessoas sobre a personalidade e o pensamento do nosso autor, escreve Anselmo Borges, acerca da teologia de Bento Domingues: «Trata-se de uma teologia do Reino de Deus [que é] o futuro de Deus enquanto “o horizonte mais abrangente de esperança” para o mundo em todos os domínios da vida, incluindo, portanto, a política, a cultura, a economia, a ecologia.»

De todos esses temas tratam as crónicas antologiadas neste volume: a presente crise económico‐financeira e os estragos que ela está a provocar à democracia e à Europa, a reflexão ética sobre o exercício do poder, o escândalo gritante da miséria de tantos em contraste com a opulência de alguns, a busca da justiça social, o absurdo da guerra e da corrida armamentista, o diálogo entre culturas e religiões como caminho para a paz, a laicidade como possibilidade de exercício da dimensão religiosa das pessoas em sociedades democráticas. Também a (falta de) alma da Europa, o desafio da paz e da esperança no Médio Oriente, as ilusões e utopias da América Latina ou a busca de novos rumos para a martirizada África marcam a reflexão de frei Bento que aqui se reúne. É o «mundo que falta fazer», na expressão feliz do título de uma das crónicas, adotada para título desta antologia.

O facto de esta antologia ser publicada durante o primeiro ano do ministério do Papa Francisco também não é casual: há muito que Bento Domingues vem afirmando muita coisa que, agora, e de outro modo, o Papa também vem insistindo com mais veemência do que aquela a que estávamos habituados: o evangelho como fonte primordial, a importância de uma Igreja de acolhimento, a primazia da pessoa sobre o dinheiro, a centralidade dos pobres, a necessária reforma da igreja... Podemos, assim, ler com outro olhar o que Bento Domingues foi escrevendo ao longo de duas décadas e que, agora, tantas vezes é confirmado nas suas intuições, como aludíamos no início.

Frei Bento revela nos seus textos, entre outras, ainda mais duas virtudes: a linguagem incisiva das crónicas cruza‐se, muitas vezes, com os textos da liturgia católica de cada domingo, num exercício que busca iluminar o quotidiano e a humanidade com aquela que é a fonte de vida de frei Bento Domingues – a pessoa e o evangelho de Jesus.

A segunda tem a ver com o humor. Numa entrevista ao Público, em 1995, a propósito da primeira coletânea de crónicas (A Humanidade de Deus, Figueirinhas), dizia frei Bento: «Autocrítica é flagelação, não acho que tenha piada. Eu exerço uma certa contenção nos textos porque o que me apetecia, muitas vezes, era rir de tudo e escrever textos de humor. Uma vez, na revista espanhola Vida Nueva, havia um cartoon de um Menino Jesus nas escadas de uma igreja a rir‐se do que encontrou lá dentro. Em relação a tudo, sempre vivi assim. Vi-me sempre assim.»

Essa capacidade de olhar para o humor de Deus e de o tentar trazer para os seus textos é outra das características da sua personalidade e dos seus escritos. Em fevereiro de 2006, escrevia Bento Domingues: «Se houvesse, nas religiões, mais humoristas do que apologetas e fanáticos, talvez elas pudessem manifestar melhor o humor de Deus – mesmo no meio das nossas loucuras – sem nos humilhar e sem O tornar ridículo. São João escreveu textos de dura controvérsia e cartas bem polémicas e eram “para que a nossa alegria fosse completa”...»

Estes textos servirão também para tornar a nossa alegria mais completa.

 

Virtudes para um mundo melhor
Fr. Bento Domingues, OP

1. Timothy Radcliffe – que foi mestre-geral da Ordem dominicana –, num livro que recebeu o Prémio Michael Ramsey, agora traduzido em português , cita um sermão de Santo Agostinho (354-430) que parece dirigido a esta Quaresma de 2011. Dizeis todos: «Os tempos estão perturbados, os tempos estão difíceis, são tempos desgraçados.» Nós diríamos: eram e são! Agostinho, porém, não recorre a bodes expiatórios para explicar os males que nos afligem: não são os outros e só os outros os verdadeiros culpados da nossa situação e não são eles os únicos a ter de mudar.

É evidente que há coisas a mudar que não dependem de nós, mas sabemos que, se nós próprios não mudarmos a partir de dentro, se não nos convertermos, seremos nós mais um veneno na sociedade e na igreja.

Não basta uma mudança para alguns dias, uns repentes de generosidade. Diz, por isso, o santo de Hipona: «Vivei uma vida cheia de bondade e mudareis os tempos.»

Não é este o discurso apropriado a quem gosta de ter sempre, com razão ou sem ela, alguma coisa de que se queixar. É por isso, aliás, que os meios de comunicação social, com a exposição permanente da desgraça e a coleção diária de lamentações, julgam manter e alargar a sua clientela.

2. Diz-se, com frequência, que a raiz da crise é a falta de ética. não se pode dizer, no entanto, que haja falta de conversa, de livros e debates sobre ética. Pelo contrário, vivemos na sua banalização, não por excesso de virtude, mas precisamente pela sua ausência. a ética é tanto mais evocada quanto menos é vivida. Quando começou a crise, a invocação da falta de ética tornou-se a forma de evitar a análise e a avaliação dos impulsos, do percurso e do rumo da nossa civilização. Não é saudável continuar a confundir a vida ética com o discurso trivial sobre ela.

Uma outra forma de falar da falta de ética é dizer que já não há valores. Ter preferências é valorizar. Podemos valorizar bem ou mal, dar importância àquilo que, depois, descobrimos que não presta e desprezar o que, depois, descobrimos que era essencial. Por outro lado, quando não pesamos, cuidadosamente, os prós e os contras das nossas preferências, expomo-nos a não encontrar a boa medida para as nossas opções e decisões. Valores existem, mas o que vale para uns não vale para outros e nem sempre vale da mesma maneira. ao ser livre, o ser humano não só pode escolher como tem de retificar os seus juízos e tornar boa a sua vontade para encontrar um caminho verdadeiramente humano.

Somos potencialmente bons e maus nos nossos comportamentos e nas nossas decisões. Somos seres não acabados que precisam de se robustecer no bem para ter energias para resistir ao mal.

3. A noção clássica de virtude dizia que ela torna bons os que a possuem e boas as suas ações. Nessa linha, uma existência guiada pela prática do bem deveria dar sabor e verdadeiro prazer à vida. Ora, quando se falava de virtude, dizia-se o contrário: o que dá prazer ou é pecado ou faz mal. O prestígio da ética transitou para a noção de dever. O imperativo ético de Immanuel Kant, simplificado, pode traduzir-se assim: age de tal forma que o teu agir se possa tornar regra universal.

O padre Albert Plé (1910-1988), um dominicano francês, fundador do «Supplément de la Vie Spirituelle» (Revue d’éthique et de théologie morale), escreveu um famoso livro, Por Dever ou por Prazer, concluindo: «Diz-me onde encontras – ou sonhas encontrar – o teu prazer de viver e dir-te-ei quem tu és.»

O filósofo A. Comte-Sponville retomou o mesmo caminho com o Pequeno Tratado das Grandes Virtudes que, para ele, são muitas: polidez, fidelidade, prudência, temperança, coragem, justiça, ge‐ nerosidade, compaixão, misericórdia, gratidão, humildade, simplicidade, tolerância, pureza, doçura, boa-fé, humor e amor. Inscreveu-se numa tradição que remonta a Aristóteles.

Leonardo Boff, que continua a ampliar as exigências e as dimensões da ética e da Teologia da Libertação, chegou à conclusão de que, para mudar o mundo, não basta o protesto e o desejo. Para participar na mudança, é preciso descobrir e equipar-se com as Virtudes para Um Outro Mundo Possível. Sem elas, tudo ficará na mesma, depois dos êxitos aparentes das grandes manifestações.

Ao expor, no 3.º Fórum Espiritual Mundial, o conteúdo dessa obra, começou por alguns lugares-comuns. Nunca, como agora, o destino pede uma mudança de rumo. O planeta Terra é a nossa casa. Ele e nós estamos em risco. Precisamos de um novo olhar que rasgue o horizonte de uma esperança mais plena do que a da nossa atual cultura. Precisamos de uma ética que imponha novos relacionamentos com a natureza. daí a importância do Fórum Espiritual Mundial que visa suscitar a espiritualidade e o respeito pela diversidade. O erro da humanidade é o etnocentrismo. Quando fomos criados, a Terra já estava pronta e há comportamentos sociais que dizimam o planeta. É preciso passar da idade infantil no que se refere à responsabilidade para com a Terra. Importa incorporar o que o budismo nos trouxe: a ética da compaixão com toda a natureza, connosco e com o próximo. Esta obra é um programa e um instrumento de trabalho.

A Quaresma não é para repetir que vivemos em tempos desgraçados. É para curar as nossas raízes e acolher o gosto de fazer aos outros o que gostaríamos que os outros nos fizessem.

 

Sumário

Apresentação
I - Democracia: fazer brotar comunidades livres
II - Onde é que nos desviámos do Evangelho?
III - Felizes os pobres
IV - Um tempo para a paz, a esperança e a não violência
V - Laicidade: autonomia, oportunidades e embaraços
VI - Portugal: histórias, medos e anseios
VIII - A grande nau Europa
VIII - América Latina: ilusões e utopias
IX - Médio Oriente: uma paz fundada na justiça
X - Um novo rumo para África

 

In Um mundo que falta fazer, ed. Temas & Debates
08.03.14

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