A 6 de março de 1973, há cinquenta anos, Tom Waits publicou “Closing time”, o seu primeiro álbum. A estreia artística do cantautor californiano de 23 anos não teve grande sucesso (entre as canções a belíssima “Ol’ ‘55”). Mas desde então Waits adquiriu um núcleo de admiradores fiéis que nunca o abandonariam. Com o passar do tempo o séquito do inconfundível artista torna-se cada vez mais internacional, vasto e aficionado, mas sem nunca se tornar uma estrela mundial e comercial. Waits é assim: ou se o ama em tudo ou é considerado insuportável. Com ele não se admitem meias medidas: a sua voz rouca parece saída diretamente dos fumos e dos whiskeys de um pub; os textos narram as vidas, sempre no limite, de desgraçados perdidos.
Músico, multi-instrumentista, cantautor e até ator, Waits é um artista fora do esquema. Reinterpreta em formas originais musicalidades folk, rock, jazz e blues. Mas também inventa sons de objetos que transforma em instrumentos musicais. Muitas das suas canções foram reinterpretadas e tornadas mais fruíveis e famosas por cantores mais afirmados que ele. Mas quando se escutam as versões originais, a intensidade e a emoção da voz de Waits são coisa totalmente outra.
Dei com Tom Waits há exatamente trinta anos: estava em Kaohsiung, cidade portuária no sul de Taiwan. Depois transferi-me para Taipei, a capital da ilha, onde residia sozinho e estudava chinês. Naquele tempo os telefonemas eram raros, não havia computador, internet e telemóvel sempre ligado. Vivia-se tudo mais verdadeiramente e intensamente. Inclusive a distância, a solidão e a melancolia.
Um dia ouvi uma canção que me tocou imediatamente porque, parecia-me, continha frases que me representavam. Na verdade escutei-as na versão de Rod Stewart, o cantor escocês conhecido em todo o mundo. Creio que a longa balada se intitulava “Waltzing Matilda”, porque assim repetia insistentemente o refrão. Depressa descobri que o título era antes “Tom Traubert’s blues”. E o autor era um certo Tom Waits, um nome para mim ainda desconhecido. Procurei a sua versão. Nesse tempo os discos compravam-se nas lojas. Foi como uma fulguração. Uma balada dura e melancólica, inesquecível como um soco no estômago. Desde aí escutei-a pelo menos uma centena de vezes. E descobri muitas coisas: a canção tem pelo menos três títulos, uma história complexa e um texto com muitos significados sobrepostos.
Narra, na primeira pessoa, um desafortunado que se perde nos becos de uma cidade estrangeira: bebeu demais, tem de pedir moedas emprestadas, encontra gente estranha e tudo lhe corre mal. Em torno ao desgraçado movem-se soldados, marinheiros, taxistas, sem-abrigo, guardas-noturnos; e depois whiskey, bebedeiras, feridas, camisas rasgadas, cães que ladram, sapatos empapados, malas rotas e albergues remotos.
O infeliz protagonista chega até a perder a medalha de S. Cristóvão, padroeiro dos viajantes. Acontece precisamente quando, diz a canção, «a beijei». Um gesto de pedido extremo de ajuda. A perda da medalha é presságio de outros desastres iminentes: um bandido manco, um chinês excêntrico, “strippers” e velhos em cadeiras de rodas… figuras que parecem sair de “Twin Peaks” de David Lynch (a série é exibida no entanto quinze anos após a canção de Waits). Uma descrição da antropologia dolente das regiões mal-afamadas da cidade. «Sou uma vítima inocente de um beco sem saída. E estou cansado de todos estes soldados aqui à volta./ Nenhum fala inglês, e tudo está partido. E os meus sapatos estão empapados».
A perda, a desventura e a solidão de quem se perde numa cidade e numa língua estrangeiras tinha ouvido narrar pelos marinheiros e pescadores que encontrava no centro Stella Maris de Kaohsiung. Era um local que acolhia a gente que desembarcava no porto da cidade e que procurava ajuda, companhia e uma palavra amiga. Os pescadores eram chineses, filipinos, asiáticos. Os marinheiros vinham um pouco de todo o mundo, sobretudo americanos.
Ninguém como os migrantes, os marinheiros e os pescadores, obrigados a longas separações, conhece os sentimentos de perda e de melancolia cantados por Waits. Recordo vivamente as suas narrações e a sua “desorientação”, um termo utilizado pela filosofia contemporânea para definir a pós-modernidade. Em alto mar só se pensa na própria família, na pessoa amada, no regresso a casa. Mas uma vez em casa bastam poucos dias para se sentir de novo fora do seu ambiente. É a condição melancólica descrita por Romano Guardini, pessoas que passam as fronteiras, sempre estrangeiras e nunca em casa. Também eu me sentia assim. Os missionários, como os migrantes e marinheiros, conhecem a doença da alma chamada melancolia. E na canção de Waits parecia-me que eu estava dentro dela, pelo menos em parte. Na cidade estrangeira experimentasse o choque cultural: não entendes o que te dizem, não és verdadeiramente escutado.
“Tom Traubert’s blues”, intitulada também “Four sheets to the wind in Copenaghen” (quatro folhas ao vento em Copenhaga), publicada em setembro de 1976, tornou-se uma das canções mais características e pedidas de Waits. A inspiração do texto é múltipla: uma noite em Copenhaga, em que Waits admite ter bebido demais, em companhia de uma jovem, a artista Mathilde Bondo, que depois confirmou o que aconteceu. Mas em pano de fundo está também o que sucedeu a um homem morto na prisão de quem Waits tinha ouvido falar por um amigo. O refrão, “Waltzing Matilda”, retoma uma popular canção australiana, que remonta ao século XIX, considerada o hino nacional informal da Austrália. É a canção folk dos emigrantes australianos, e “Waltzing Matilda” é também um calão que significa vagabundear e saco-cama. “Waltzing Matilda” quer dizer, portanto, não só dançar com uma jovem, mas também estar em viagem, migrar, vagabundear e perder-se em terra estrangeira.
Em junho de 1976, Tom tinha 26 anos: «Estava na Europa pela primeira vez. Longe da minha namorada e de tudo. Sentia-me como um soldado distante de casa, embriagado, posto à parte, perdido e sem dinheiro». Nem sequer três meses após aqueles inesquecíveis dias de Copenhaga, Tom Waits apresenta a sua obra-prima. O texto, como o dos grandes poemas, é excêntrico e sublime. O crítico musical Thomas Ward definiu-o como não só uma das melhores composições de Tom Waits, mas também de uma beleza lacerante: «Contém alguns dos versos mais belos do artista».
Mas as melhores canções, como os poemas, não devem explicar em demasia. E os versos não são de fácil tradução. As traduções que encontrei na internet não me convencem. Sabem-no bem os missionários, os migrantes e os poetas como é impossível a tradução, ainda que, ao mesmo tempo, tremendamente indispensável. Resta-nos escutá-la, esta balada de Tom Waits.