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The Beatles: “Let it be”

Os cinquenta anos da publicação de “Let it be” (8 de maio de 1970), mais do que um acontecimento musical, marcam meio século de uma ausência recorrente. Uma falta que se representa de cada vez que se escuta um disco dos Beatles, o grupo que marcou de maneira indelével a história da música e da cultura juvenil (e não só) da segunda metade do século passado.

“Let it be” não é, decerto, o melhor disco dos quatro jovens de Liverpool, e na realidade, como é sabido, não é sequer o último por eles gravado. A última vez que os Beatles se juntaram para gravar um disco foi em 1969, nos estúdios de Abbey Road, dos quais sai o homónimo, e esplêndido, álbum.

“Let it be” é, no fundo, o testemunho póstumo de um projeto que deveria ter reconduzido os Beatles a exibirem-se novamente ao vivo após os longos anos de experimentação em estúdio. Uma tentativa que, de alguma forma, queria recuperar o espírito originário do grupo, mas que no fim se dissolve numa série quase infinita de litígios e pequenos despeitos, como documentado por filmes de então (Paul McCartney que canta os versos de “Get back”, volta para onde vieste, olhando para Yoko Ono).

O projeto de um disco que voltasse a propor a energia elementar e elétrica dos primeiros Beatles é depois definitivamente sepultado pela intervenção de Phil Spector, a quem é confiada a produção final do álbum. Spector era, naqueles anos, famoso pela sua “estratégia” do “Wall of sound”, que previa, precisamente, o acrescentamento de uma parede de sons às gravações originais.



Mesmo os puristas do rock e do folk, que ao tempo franziam a testa ao escutar as “cançõezinhas” dos quatro, proclamando a sua fideísta preferência pelas guitarras urrantes ou por composições tristonhas de cantautores, tiveram de mudar de ideias



Algumas pérolas semiacústicas de “Let it be”, como “The long and winding road” e “Accross the universe”, serão publicadas em vinil, sobrecarregadas por volumosas partes orquestrais e estorvantes inserções corais, suscitando a irada reação dos autores, mantidos praticamente às ocultas das intervenções de Spector.

Mas, como referido, “Let it be” não pode ser contado entre os melhores discos dos Beatles. Não que faltem pequenas obras-primas, como os já citados “Get back”, “The long and winding road” e “Accross the universe”, ou como a celebérrima faixa que dá o título ao álbum e “I’ve got a feeling”. O que falta é o sentido de coesão e unidade que pervade os outros álbuns a partir de “Rubber soul” em diante.

“Let it be” é, no fundo, um disco sem um projeto, um trabalho desarticulado, como desarticulada se tinha tornado a experiência dos Beatles. O grupo estava então ferido pelas tensões internas com John Lennon, cada vez mais orientado para o compromisso político, George Harrison, cada vez mais mergulhado na sua busca espiritual (e que passou a reclamar espaço para as suas composições), e Paul McCartney, que mais ou menos intencionalmente tendia a assumir a liderança do quarteto.

No entanto, poucos foram aqueles que podiam imaginar o vazio provocado pela dissolução dos Beatles no panorama musical. Os anos 70, então iniciados, foram marcados por uma sobreabundância de estrelas de rock e bandas de sucesso. É inútil nomeá-las, até porque de muitas se perdeu o rasto, enquanto outras vivem de uma estéril proposição repetida de si mesmas.



No mundo surreal criado pelas canções dos Beatles, no seu submarino amarelo cuja rota cruza as nossas existências, não há espaço para as desigualdades ou para a violência



O nome dos Beatles, pelo contrário, continuou a atravessar o tempo, assim como a sua música, recolhida, vale a pena recordá-lo, em pouco mais de uma dezena de discos. Mesmo os puristas do rock e do folk, que ao tempo franziam a testa ao escutar as “cançõezinhas” dos quatro, proclamando a sua fideísta preferência pelas guitarras urrantes ou por composições tristonhas de cantautores, tiveram de mudar de ideias.

No mundo da música denominada “ligeira” não há um só protagonista de relevo que não reconheça aos Beatles uma espécie de direito de primogenitura. E mesmo hoje, para quem tenha a capacidade de se abeirar com alguma humildade, ou pelo menos sem demasiados preconceitos, ao seu universo sonoro, os Beatles podem verdadeiramente desvelar uma caixa-forte de cores.

Com efeito, a grande força dos jovens britânicos foi a de trazer um caleidoscópio de cores ao mundo da música e à vida dos jovens nascidos, como eles, durante a guerra, e que queriam sair do tétrico cinzentismo daqueles terríveis anos. Os Beatles não eram nem rock nem folk, nem blues nem soul. Os Beatles faziam seus todos estes géneros musicais, para os transformar e declinar em modos radicalmente novos. Os Beatles criavam a música enquanto a compunham e interpretavam. Ampliavam constantemente o horizonte, como uma criança que gera sempre uma nova dimensão do jogo que está a jogar. E é precisamente a capacidade de olhar para a música com espanto sempre renovado que permanece a sua peculiaridade e a sua herança.

No mundo surreal criado pelas canções dos Beatles, no seu submarino amarelo cuja rota cruza as nossas existências, não há espaço para as desigualdades ou para a violência. Há espaço para a alegria e para a dor. Há espaço para as cores da vida. Uma vida a olhar com um sorriso sempre novo, afetuoso e leve.


 

Giuseppe Fiorentino
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 12.05.2020 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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