A diferenciar o cinema de Pasolini do de Fellini estão as lágrimas. Não que na filmografia do segundo aquelas faltem. Basta pensar na trilogia constituída por “La strada” [“A estrada”] (1954), “Il bidone” [“O conto do vigário”] (1955) e “Le notti di Cabiria” [“As noites de Cabíria”] (1957), que a crítica denominou «o tríptico da graça», para compreender até que ponto as lágrimas são um alfabeto específico.
Mas a reviravolta ocorre com o filme seguinte, “La dolce vita” (1960). Fellini experimenta, a vários níveis, uma estética da montagem, numa narração que se constrói com a acumulação de episódios aparentemente sem um nexo estreito de causalidade, em paralelo com o errático vagabundear de um personagem em curto-circuito.
Entre o prólogo (a cena da estátua de Cristo transportada por um helicóptero) e o epílogo (a pesca do peixe-monstro), simetricamente simbólicos, o filme funciona como o mosaico de uma existência em perda, a do jornalista Marcello Rubini e a do nosso presente histórico.
Quando Fellini se prepara para rodar a sequência final, hesita. A perceção da decadência da civilização que o filme documenta, e que vai além do que tinha inicialmente previsto, deixa-o descontente.
Uma primeira hipótese de final era a seguinte: quando se encontra próximo do peixe-monstro, rodeado de comentários excitados e inúteis dos seus companheiros, Marcello sente-se chamado por uma rapariga que corre. A um certo ponto, tira os sapatos e une-se, na água, a um grupo de outras raparigas, que surgem como mensageiras de uma outra vida.
Marcelo alcança os sapatos da rapariga e, tocando-a, sente-se tomado por uma profunda e inexplicável emoção. Sem perceber se por alegria ou por dor, se por desespero ou por esperança, vê-se com os olhos inundados de lágrimas e pronuncia a frase final: «Inocente Paolina… Inocente».
Mas Fellini não está satisfeito. Pede a Pasolini uma colaboração para escrever versões alternativas de algumas cenas do filme, e também para o final. Pasolini, todavia, propõe manter as lágrimas do protagonista e limita-se a modificar a frase, que se torna: «Vós… inocentes… inocentes…».
Ao realizador, porém esta redenção “in extremis” parece contradizer exatamente quanto mostra “La dolce vita”: a definitiva capitulação da consciência ética. As lágrimas seriam excessivas perante o irresistível e perentório triunfo da banalidade do mal.
O cineasta decide, contra Pasolini, que Marcello não seguirá a rapariga. Ela chamá-lo-á, mas em margens separadas por um curso de água. Ele vê que ela o chama, mas não consegue ouvir o que diz. Faz-lhe sinais e escreve uma palavra no vento, que Marcello é incapaz de decifrar. Então abana a cabeça num gesto resignado e volta-lhe as costas. Não há lágrimas. Apagam-se as luzes.
No ano seguinte, Pasolini roda o seu primeiro filme, “Accattone”. Como “La dolce vita”, é uma parábola sobre a decadência, mas tem lugar para uma lágrima. Que coisa é uma lágrima? O realizador-poeta explica: é o que mostra, contra toda a capitulação, que o mal é o contrário do bem.
A epígrafe que escolhe para “Accattone” é um passo do “Purgatório”, de Dante: «…o anjo de Deus tomou-me, e o do inferno/ gritava: “Ó tu do Céu, porque mo privas?/ Dele me levas o eterno/ por uma lagrimazinha mo tiram». Este verso é, claramente, a chave de leitura de “Accattone”, mas poderia aplicar-se a todo o projeto cinematográfico de Pasolini.
O rabino Soloviel, comentador da Cabala, afirma: «As duas vozes, a de Deus, que não devemos nomear, e a voz do mal, do mal inominável, são terrivelmente semelhantes. A diferença entre uma e outra é comparável ao som de uma gota de chuva que cai no mar».