A 15 de maio de 1891, no décimo ano do pontificado do papa leão XIII, foi dada a encíclica “Rerum novarum”, que representou o documento mais relevante do pensamento social da Igreja, a magna carta, uma reviravolta nas relações entre pensamento social católico e modernidade. Todavia, é preciso estar-se alerta para o risco de considerar o texto uma espécie de “estreia”, algo de extemporâneo que não tem relação alguma com a História. Na realidade, o despertar para a questão social remonta pelo menos a 1822, com autores que mobilizaram e prepararam o mundo católico para uma primeira fase de ativismo social.
É nesse tempo que surgem algumas instituições caritativas, pela mão, por exemplo, do abade Lowenbruck, que dá vida à Sociedade de S. José para a juventude operária e à Sociedade de S. Nicolau, da qual nascerá, em Paris, a primeira escola profissional. Como não recordar a obra desenvolvida a partir de 1831 por Lamennais, Lacordaire, Montalembert, Charles De Coux e pelo abade Gerbet nas colunas do jornal “Avenir”, ao denunciar: «Os altos barões do industrialismo que fixam a seu arbítrio o preço dos salários». Na ensaística, recordamos a obra do visconde Albano de Villeneuve-Bargemont, que em 1834 publicará o “Grande tratado da economia política cristã”, no qual denuncia a profunda miséria dos trabalhadores nas fábricas. E ainda a obra do neoconvertido Filippo Buchez, que criticará a ordem social do seu tempo, denunciando-lhe os vícios, as injustiças e os escândalos. Do púlpito de Notre-Dame, a partir de 1835, Lacordaire pronunciará as célebres “Conferências”. A ele se unirão os discípulos de Bushez, enquanto o abade Gerbet se unirá a uma grande personalidade leiga, Frédéric Ozanam, que em maio de 1833 fundará as Conferências de São Vicente de Paulo.
Se a primeira geração fala francês, à medida quem na França se vai lentamente extinguindo o ímpeto social, o pensamento social católico assume relevância noutras terras. É o caso da Alemanha, onde um jovem padre, Wilhem Emmanuel, barão von Ketteler, desperta a consciência católico-social do país. Juntamente com ele estão o cónego Leming, Alf Kolping e o barão Burghard de Schorlemer Alst. Na Inglaterra recordamos o cardeal Henry Manning; nos EUA o cardeal Gibbons; em Itália o cardeal Zigliara. A fileira de autores interessados nas questões sociais tornar-se-á cada vez mais densa, até à “Rerum novarum”.
Leão XIII publicou a encíclica num momento em que a Igreja católica atravessava uma fase de profunda crise: estava em curso um processo de intensa descristianização, ao ponto de a educação para a religião católica ter tocado o nível mais baixo da sua história. A imagem que a Igreja dava de si ao mundo era a de uma instituição em agonia, fechada e incapaz de compreender as ânsias e as razões do ser humano contemporâneo. Com o seu documento, o papa estimulou em pouco tempo a atenção de muitíssimos políticos e intelectuais de todo o mundo, favorecendo o nascimento e o desenvolvimento de movimentos abertos à dimensão social e política, quer no interior quer no exterior das instituições. Deu novo impulso ao compromisso dos católicos no campo do voluntariado e contribuiu para a fundação de associações de trabalhadores, cooperativas, bancos rurais, até chegar à fundação de partidos políticos inspirados no “popularismo”, que pudessem responder aos desafios do liberalismo e do socialismo.
Com referência ao socialismo, Leão XIII usa esse termo numa aceção ampla, de maneira a poder ser compreendida pelos católicos da Europa e do resto do mundo, até porque é preciso recordar que as economias mistas e o “welfare state” não eram ainda pensáveis, e que a propaganda sindical dos partidos socialistas oscilava entre um socialismo gradual que desembocará na social-democracia e no fabianismo, bem como no socialismo liberal britânico, e um comunismo radical que conduzirá ao totalitarismo soviético.
Mas se o papa condenou o socialismo, definindo-o como contrário à justiça, à natureza, à liberdade e ao bom senso, foi ao mesmo tempo indiscutivelmente crítico em relação às ideias, atitudes e injustiças de que eram protagonistas os países que tinham empreendido o caminho do liberalismo económico. Ainda que a crítica tenha sido severa e rigorosa, a atitude do papa perante o liberalismo foi substancialmente diferente; com efeito, Leão XIII não criticou o socialismo recomendando-lhe a reforma – simplesmente condenou-o. Eis como ele conclui o primeiro capítulo da “Rerum novarum”, intitulado, inequivocamente, “O socialismo, falso remédio”: «Por tudo o que nós acabamos de dizer, se compreende que a teoria socialista da propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles membros a que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando as funções do Estado e perturbando a tranquilidade pública. Fique, pois, bem assente que o primeiro fundamento a estabelecer por todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo é a inviolabilidade da propriedade particular».
As razões pelas quais a proposta socialista foi totalmente rejeitada diziam respeito ao princípio da propriedade privada e da iniciativa pessoal. Referindo-se ao primeiro, o papa afirmava um critério que cruza tanto o argumento tomista como o de Locke: «Da mesma forma que o efeito segue a causa, assim é justo que o fruto do trabalho pertença ao trabalhador. É, pois, com razão, que a universalidade do género humano, sem se deixar mover pelas opiniões contrárias dum pequeno grupo, reconhece, considerando atentamente a natureza, que nas suas leis reside o primeiro fundamento da repartição dos bens e das propriedades particulares; foi com razão que o costume de todos os séculos sancionou uma situação tão conforme à natureza do homem e à vida tranquila e pacífica das sociedades. Em relação ao direito de iniciativa pessoal, está intimamente ligado ao direito de possuir a propriedade privada: «Ora, que justiça seria esta, em que um outro o qual não trabalhou lhe sucedesse a usufruir os frutos?»; e ainda: «Mas, além da injustiça do seu sistema, vêem-se bem todas as suas funestas consequências, a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a habilidade privados dos seus estímulos, e, como consequência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade na nudez, na indigência e na miséria».
Leão XIII pedia uma profunda renovação da economia, condenava sem qualquer possibilidade de apelo o socialismo e reivindicava, com argumentos específicos da tradição cristã, alguns traços positivos do mercado livre, como, por exemplo, a propriedade privada e a iniciativa pessoal. Todavia, o papa estava convicto de que as sociedades baseadas no sistema liberal-capitalista fundavam-se em dois erros, ambos derivados de uma errada compreensão antropológica. Em primeiro lugar, a antropologia subentendida ao capitalismo primitivo acabava por reduzir os seres humanos a muitos indivíduos isolados uns dos outros, e unidos apenas por laços sociais artificiais e por razões exclusivamente utilitaristas. Pelo contrário, na tradição aristotélico-tomista, o ser humano tende naturalmente para a socialização, não para a solidão, e o Estado torna-se a expressão política destas inclinações, não o refúgio de um ser humano amedrontado e suspeitoso de um outro ser humano. Além disso, a proclamação de uma igualdade meramente formal fazia dos sistemas políticos entidades insensíveis ao grau de sofrimento que provinha de quem, substancialmente, não era igual.
A preocupação de Leão XIII era de que a difusão da exploração da classe dos trabalhadores por um lado, e do pragmatismo e do utilitarismo, considerados necessários para o bom funcionamento de um sistema de livre mercado por outro, conduzissem à afirmação de esquemas de pensamento meramente funcionalistas e à propagação de sentimentos antirreligiosos e eticamente indiferentes.
Cento e trinta anos é muito tempo, e a sociedade mudou radicalmente. Leão XIII dirigia-se a um mundo cujo contexto estava ainda fortemente caracterizado pelas revoluções liberais e burguesas do século XVIII, quer na frente política – as revoluções na América e na França – quer na frente económica – a primeira e segunda revolução industrial. A sua ação pastoral teve o grande mérito de fazer reemergir junto dos fiéis o prudente cuidado pelo bem comum, como em 1987 João Paulo II definiu o compromisso civil. O papa Francisco fala aos nossos dias, às contradições dos sistemas económicos que podem matar, a uma sociedade fragmentada e sempre em risco de implosão, por causa de regurgitações nacionalistas, populistas, xenófobas e terroristas, agravadas por uma série de graves crises económicas que caracterizaram o advento do século XXI. Ambos falaram ao ser humano, à sua dimensão mais profunda e insondável; ambos repropuseram a grande questão: a pergunta sobre si próprio, sobre o sentido do nascer, viver e morrer.