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Quem foram Mani e Marcião?

Imagem Santo Agostinho discute com os heréticos (det.) | Família Vergós | C. 1470-1485

Quem foram Mani e Marcião?

Das duas personagens, Mani é de longe a mais misteriosa e a mais intrigante, chegando até a inspirar, há alguns anos, a fantasia de um escritor libanês, Amin Maalouf, que lhe dedicará uma biografia romanceada (“Os jardins de luz”).

Comecemos por dar algumas informações sobre Mani (todos os dicionários de história das religiões lhe consagram uma parte importante). Mani nasceu na Mesopotâmia em 216; fundou uma Igreja “sui generis” com uma estrutura e uma escritura sagrada que compreendia as Escrituras bíblicas. Elas foram postas à luz no fim do séc. XIX, em Turfan, no Turquestão chinês, através de traduções em línguas locais, e no Egito em língua copta, mas também indiretamente nos diferentes testemunhos dos Padres da Igreja e em historiadores cristãos e muçulmanos antigos, muitas vezes em plena polémica com a doutrina de Mani.

Mani considerava-se o sucessor de personagens bíblicas como Set, Henoc, Sem e mesmo de Jesus Cristo, mas igualmente de Buda e Zaratustra, na história da libertação do mal; ele apresenta-se como o Paráclito (isto é, o Espírito Santo) pré-existente, anunciado por Cristo, e propunha uma religiosidade de influência sincretista que misturava de forma original e muito complexa doutrinas persas, budistas, mistéricas e cristãs. Não é possível descrever aqui todo este sistema de pensamento muito marcado por imagens, símbolos e figuras, capaz, todavia, de tocar intelectuais e pessoas mais simples, ao ponto de se difundir na China e no Ocidente.

A este propósito, o próprio Santo Agostinho se encontrou envolvido neste movimento durante uma década desde os 19 anos: poderoso e influente, este movimento ajudou-o em 384 (tinha 30 anos), quando chegava a Roma, a obter a disciplina de Retórica em Milão. Foi precisamente neste momento que o célebre Padre da Igreja abandonou essa fé, contando nas “Confissões” a sua conversão ao cristianismo autêntico e opondo-se abertamente àquela doutrina.

Aquela forma religiosa organizada em verdadeira Igreja tinha por núcleo o dualismo: a história é conduzida pelo confronto entre o Deus da luz e o não-Deus das trevas. A história humana é o teatro de uma mistura trágica de bem e de mal; mas na origem, na Criação, e no fim dos tempos, haverá uma separação clara e radical entre os dois princípios e os seus adeptos. A missão dos fiéis de Mani era a de revelar e combater o mal e as trevas. Os elementos conservados do Antigo Testamento eram entendidos antes de tudo como negativos e, por isso, rejeitados à luz do Novo, que ra uma profecia da vinda de Mani enquanto Paráclito.

Perseguido durante a sua vida e morto na prisão, em 277, num pequeno reino persa (o seu corpo foi decapitado e a sua cabeça exposta ao público), Mani foi condenado comop «inimigo do império» cristão de Bizâncio por Teodósio, em 382, por diversos sínodos locais, como o de Braga, em 561, e por documentos eclesiais; estes textos atacariam, entre os séculos XI e XIII, movimentos cátaros (como os albigenses) que se inspiravam em doutrinas dualistas e maniqueias. Estas ideias fascinaram com frequência o mundo cristão, devido ao seu esoterismo complexo, a par da simplificação fácil da realidade em bem e mal, luz e trevas.

Por seu lado, Marcião era cristão em sentido estrito, filho do bispo de Sinope (na margem do mar Negro), homem rico e teólogo. Chegado a Roma em 140-144, alcançou algum sucesso. Foi seguidamente excomungado por heresia e funda então a sua Igreja, que lhe sobreviverá durante quase três séculos (ele morre em torno de 160). Apoiando-se em S. Paulo e na sua antítese Lei-Evangelho, Marcião, como Mani, afirmava a oposição entre duas divindades, o Demiurgo criador do mundo, uma divindade cruel, que se revela no Antigo Testamento, e o “Pai de misericórdia” revelado por Cristo.

Marcião identifica uma parte do Novo Testamento como Escritura inspirada por este Deus Pai, mas purificada de todo o elemento judaico, como o discurso sobre a montanha, o Evangelho de Lucas e dez Cartas de S. Paulo. A resposta da Igreja foi clara e severa. Policarpo, bispo de Esmirna, interpelá-lo-á secamente: «Reconheço em ti o primeiro filho de Satã». O célebre escritor cristão africano Tertuliano redigiu um tratado “Contra Marcião”, conseguindo reconstruir a obra “Antítese” de Marcião, que nos chegou em múltiplos fragmentos. Santo Agostinho escreveu igualmente para contestar o seu pensamento.

A conceção de Marcião deixa-nos hoje perplexos à luz do diálogo inter-religioso caro ao Concílio Vaticano II, mas também por causa de uma frase lapidar de Cristo: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição» (Mt 5, 7). É certo que Ele acrescenta: «Ouvistes o que foi dito aos antigos […]. Eu, porém, digo-vos…». Ao observar com atenção estas antíteses presentes em Mateus (5, 21-48) são menos uma negação do passado do que um esforço para fazer sair os preceitos antigos de um minimalismo literário e mostrar o alcance positivo radical, conduzindo-os a um «além» de plenitude. É assim que Ele condena não apenas a morte mas também toda a ofensa contra o próximo. Quanto a Paulo, não combate a Torá, a lei bíblica, que declara santa e pedagógica para levar até Cristo, mas a sua interpretação legalista e voluntarista que se podia encontrar em alguns meios do judaísmo da época. É ele que lembra que a Aliança divina com Israel nunca foi revogada definitivamente porque «os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis (cf. Romanos 11, 29).

Como é que um cristão pode acolher corretamente os dois Testamentos? Convirá considerá-los como a expressão de uma única história da salvação que – justamente porque é uma história, uma sucessão temporal e progressiva – comporta etapas e faz parte de um projeto transcendente unificado, a salvação. Cada etapa deste caminho tem a sua importância e a sua eficácia, numa tensão global para o futuro, para Cristo. Como num diálogo, não é possível acolher e compreender o discurso final se não se presta atenção a cada etapa do discurso, com cada uma das suas frases.

O discurso divino transcendente atravessou a sucessão de etapas do tempo e da história, ritmado por elementos ligados a acontecimentos humanos, a linguagens de determinado tempo, ao realismo da Incarnação, através da qual Deus se revela não na pureza dos céus, da transcendência, mas no interior do peso terrestre da história da humanidade. Este caminho conhece inevitavelmente etapas difíceis e provisórias, sinal de um itinerário histórico em desenvolvimento e em tensão para uma purificação e uma plenitude. Contudo, estas etapas contêm sempre um gérmen de salvação, de verdade, de luz, dado que participam no projeto divino transcendente único e unificado

 

Card. Gianfranco Ravasi
In "150 questions à la foi"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 05.07.2016

 

 
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Mani considerava-se o sucessor de personagens bíblicas como Set, Henoc, Sem e mesmo de Jesus Cristo, mas igualmente de Buda e Zaratustra, na história da libertação do mal; ele apresenta-se como o Paráclito (isto é, o Espírito Santo) pré-existente, anunciado por Cristo, e propunha uma religiosidade de influência sincretista que misturava de forma original e muito complexa doutrinas persas, budistas, mistéricas e cristãs
Marcião identifica uma parte do Novo Testamento como Escritura inspirada por este Deus Pai, mas purificada de todo o elemento judaico, como o discurso sobre a montanha, o Evangelho de Lucas e dez Cartas de S. Paulo. A resposta da Igreja foi clara e severa. Policarpo, bispo de Esmirna, interpelá-lo-á secamente: «Reconheço em ti o primeiro filho de Satã»
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