Se é verdade que aos livros devemos conhecimento e paixão, a memória do que existiu e do que está por chegar, o plural mais amplo e o singular mais ardente, essa combinação inesquecivelmente minuciosa de palavra e silêncio, de realidade e imaginação.
Se é verdade que aos livros devemos o microscópio e o telescópio, o remo e a âncora, o distante e o incrivelmente próximo, a atenção ao ínfimo e o espanto face ao imprevisível infinito.
Se é verdade que aos livros devemos paisagens, passagens, viagens em velhas naus e em sofisticadas máquinas do futuro, voltas ao mundo e dentro do nosso quarto, inquirições e confidências, verdades gritadas nos telhados ou, em segredo, confiadas a um coração.
Se é verdade que aos livros devemos os nossos autorretratos mais certeiros, a irrupção por uma sala de espelhos em intimidade, múltiplas janelas que depois descobrimos que nos pertencem e descidas assistidas a profundidades onde, não raro pela primeira vez, acolhemos a nossa própria voz.
Se é verdade que aos livros devemos alegrias tão diversas: manhãs esplêndidas carregadas de infância; passeios de bicicleta pela costa; o tempo esquecido num jardim; trocas inocentes que mais se parecem a um contrabando; páginas molhadas com lágrimas que nos consolam; o fulgor de uma ideia que, de repente, nos acelera o passo; pequenas trepidações e abalos irremediáveis; milhões de coisas que nunca tínhamos pensado; apagões tão necessários como vislumbres ou vice-versa.
Se é verdade que aos livros devemos a interrogação como instrumento, não só de cálculo, mas também de conduta.
Se é verdade que aos livros devemos o emaravilhamento da busca e da descoberta, que muitas vezes nos surgem como um só.
Se isso é verdade, aos livros devemos nunca menos do que vida!
José Tolentino Mendonça