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Leitura: "Quando Ele nos abre as Escrituras"

Imagem Capa (det.) | D.R.

Leitura: "Quando Ele nos abre as Escrituras"

O bispo de Lamego, D. António Couto, especialista na Bíblia, é o autor do novo livro "Quando Ele nos abre as Escrituras - Domingo após domingo", recentemente lançado pela Paulus Editora.

O volume "abre" as leituras bíblicas proclamadas nas missas dos domingos e solenidades do ano litúrgico em curso, que termina a 20 de novembro de 2016, constituindo um roteiro quer para quem participa nas celebrações, quer para quem prepara as homilias.

«É a estrada bela, e é andando nela que se encontra repouso para a vida (Jr 6,16). Encontramos lume e sentido, para voltar à estrada dos dois de Emaús, a quem já ardia o coração (Lc 24,32). É a estrada que desce de Jerusalém para Gaza. A estrada é no deserto (At 8,26), como a de Isaías (35,8; 43,19), mas pode sempre encontrar-se nela o sentido e a água (At 8,35-36). É a estrada de Damasco, em que podemos sempre cair de nós abaixo e ouvir chamar o nosso nome de uma forma nova e diferente (At 9,4; 22,7; 26,14). É a estrada que se abre à nossa frente sempre que ouvimos Jesus dizer: "Segue-Me!" ou "Vai"!», escreve o autor na apresentação.

O livro, que completa as obras publicadas por D. António Couto nos dois anos litúrgicos anteriores (A e B) segue «o estilo é o de sempre»: «A substância é bíblica e litúrgica, com tempero teológico, literário, simbólico, cultural, histórico, arqueológico».

«Fui-o escrevendo com gosto, pensando em todos aqueles que gostam de saborear os textos bíblicos que a Liturgia nos oferece. Pensei sobretudo naqueles que, domingo após domingo, têm a responsabilidade de abrir as Escrituras à compreensão dos homens e mulheres, jovens e crianças, que, domingo após domingo, entram nas nossas igrejas», refere o prelado.

Tendo em conta que o Evangelho mais proclamado este ano será o de Lucas, D. António Couto recorda que assina o volume intitulado "Introdução ao Evangelho segundo Lucas", «que pode ajudar a enquadrar e compreender cada passagem na paisagem mais vasta do inteiro Evangelho».

«Uma tradição espalhada sobretudo no Oriente acrescenta que, além de médico, Lucas era também pintor. Tenha-o sido ou não, o facto é que a escrita de Lucas apresenta um carácter particularmente plástico e pictórico, deixando-nos, nos seus textos, figuras inesquecíveis, como são vários retratos de Maria (anunciação, visitação, "magnificat"…), Zacarias e Isabel, os pastores, Simeão e Ana, o bom samaritano, Marta e Maria, a parábola da misericórdia (Lc 15), o homem rico e o pobre Lázaro (Lc 16,19-31), o juiz iníquo e a viúva importuna (Lc 18, 1-8), a oração do fariseu e do publicano (Lc 18,9-14), Zaqueu (Lc 19,1-10), os dois discípulos de Emaús (Lc 24,13-35)», recorda D. António Couto.

Apresentamos dois excertos do livro: o primeiro aplica-se ao próximo domingo, o quarto e último do Advento, e o segundo centra-se na solenidade do Natal. Antes, fica o desejo que o autor formula ao concluir a introdução: «Desejo ao leitor bom apetite. Já se sabe que nem só de pão vive o homem».

 

Senhora da Visitação - Domingo IV do Advento
D. António Couto

1. A liturgia deste Domingo IV do Advento, já quase em cima do Natal do Senhor, convida-nos a contemplar com amor emocionado algumas joias da Escritura Santa.

2. Em primeiro lugar, porque o Evangelho tem sempre o primeiro lugar, o Evangelho de Lucas 1,39-45. As Igrejas do Ocidente conhecem este episódio por «Visitação» de Maria a Isabel, enquanto os nossos irmãos do Oriente preferem denominá-lo «Saudação» de Maria a Isabel. O episódio é deslumbrante e começa por nos mostrar Maria a correr sobre os montes para ir ao encontro de Isabel. Ao correr sobre os montes, Maria reveste-se dos traços sublimes do mensageiro de Isaías 52,7, que diz: «Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a Paz, que leva Boas Novas a Sião!». Claramente, Maria aparece como portadora de Notícias Felizes. Mas, ao correr sobre os montes, Maria reveste-se também do perfume do amor novo do Cântico dos Cânticos 2,8, onde se ouve a amada a dizer: «A voz do meu amado, ei-lo que vem correndo sobre os montes!». Assim, com esta simples nota narrativa, Maria aparece-nos como uma Mulher Bela, Encantada, cheia de Alegria, Esposa Amada e habitada por Notícias Felizes, pela Notícia Feliz, isto é, pelo Evangelho em Pessoa, Jesus, que Maria humildemente serve e ternamente apresenta, mais tarde a Senhora "Odighítria", venerada nas Igrejas do Oriente, que com a mão aponta o caminho verdadeiro, o seu Filho Jesus, que leva ternamente ao colo.

3. Seria bom que nos demorássemos longamente a contemplar esta figura de Maria, bela, leve e feliz. Contemplando esta figura cheia de beleza e de leveza, estamos já a ver, em contraluz, o retrato dos evangelizadores do Evangelho, também belos, leves e felizes e habitados por um amor novo: sem ouro nem prata nem cobre nem alforge nem duas túnicas. E, se olharmos agora um bocadinho para nós, verificaremos logo, em contraponto, que talvez levemos peso a mais!

4. Esta Mulher Bela, Esposa Amada e Feliz, saúda Isabel. Não pode senão encher de Alegria o mundo de Isabel, que irrompe naturalmente num hino de louvor, acrescentando mais umas palavras à oração da «Ave-Maria», iniciada pelo Anjo: «Ave [Maria], cheia de graça, o Senhor é contigo», disse o Anjo (Lc 1, 28). Acrescenta agora Isabel: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre [Jesus]» (Lc 1,42), e aponta logo a seguir Maria como «Mãe do meu Senhor» (Lc 1,43), desvelando o seu nome grande de «Mãe de Deus», começo da «[Santa Maria], Mãe de Deus».

5. A segunda joia da Escritura Santa, que hoje nos é dado contemplar, é o texto singular da profecia de Miqueias 5,1-4, que começa: «E tu, Belém de Éfrata, pequena entre os clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que será o governador ("môshel") de Israel» (Mc 5,1). E termina, afirmando: «E ele será a Paz!» (Mc 5,4).

6. Postando-se na esteira de luz de Isaías, Miqueias vê também que vai nascer um mundo novo. Mas de forma diferente do citadino Isaías, o camponês Miqueias não vê o mundo novo provir do Palácio ou do Templo da capital. Do Palácio e do Templo, do Rei e dos Sacerdotes, o humilde Miqueias apenas vê sair exploração, opressão, opulência, mentira e violência. É por isso que Miqueias critica asperamente os grandes da Capital que esbulham o povo, cortando a sua carne aos pedaços, e metendo-a na panela (Mc 3). Por isso, quando Miqueias ousa sonhar e vislumbrar um mundo novo, não é para a Capital que ele olha, mas para a província. E o condutor deste mundo novo não é um Rei nem um filho de Rei, mas um "môshel", um contador de histórias ou de parábolas ("meshalîm", "sing". "mashal"), portanto, um guia sábio, simples e direto e penetrante, como Jesus, que guiará o mundo com o sabor do sol e do sal da sua humilde sabedoria. Genial esta avenida de sentido que atravessa as Escrituras Santas: Miqueias canta um "môshel", um contador de histórias e de parábolas, como condutor de um mundo novo; os evangelhos apresentam Jesus, que fala apenas em parábolas (Mt 13,34; Mc 4,34). E nós sabemos bem que Jesus não nos guia com exércitos e carros de combate, mas com a brancura dos lírios do campo e a inocente alegria dos pássaros do céu! É por isso que Miqueias evita Jerusalém e se volta para Belém. Os evangelistas Mateus e Lucas saberão ler muito bem esta preciosa indicação de Miqueias.

7. A terceira joia é o texto da Carta aos Hebreus 10,5-10, em que Cristo supera ao mesmo tempo o sacerdócio antigo e os sacrifícios rituais da antiga liturgia do Templo. Cristo é o novo Sumo-Sacerdote que inaugura um culto novo, oferecendo-Se a Si mesmo ao Pai, por nós, para nós. Nós somos do tempo, não das coisas e dos animais, mas da pessoa.

8. Enfim, o Salmo 80, com o nosso desejo expresso de ver o rosto de Deus: «Mostrai-nos, Senhor, o vosso rosto, e seremos salvos!». E o Natal do Senhor ali mesmo à nossa beira!

Senhora da Visitação,
Que corres ligeira sobre os montes,
Vela por nós,
Fica à nossa beira.
É bom ter a esperança como companheira.

Contigo rezamos ao Senhor:

Dá-nos, Senhor,
Um coração sensível e fraterno,
Capaz de escutar
E de recomeçar.

Mantém-nos reunidos, Senhor,
À volta do pão e da palavra.
Ajuda-nos a discernir
Os rumos a seguir
Nos caminhos sinuosos deste tempo,
Por Ti semeado e por Ti redimido.

Ensina-nos a tornar a tua Igreja toda missionária,
E a fazer de cada paróquia,
Que é a Igreja a residir no meio das casas
dos teus filhos e das tuas filhas,
Uma Casa grande, aberta e feliz,
Átrio de fraternidade,
De onde se possa sempre ver o Céu,
E o Céu nos possa sempre ver a nós.

 

Na tua casa e na tua sala, há lugar para quem e para quê? - Natal do Senhor
D. António Couto

1. «Exultemos de alegria no Senhor, porque nasceu na Terra o nosso Salvador», é a Antífona do Cântico de Entrada da Missa da Meia-Noite, que dá o devido tom de exultação a esta solenidade, magnífico pórtico para este intenso feixe de Luz, Mistério de Jesus, fazendo logo ver o Natal à Luz da Páscoa, «a Páscoa do Natal», assim o diz significativamente a liturgia oriental. A Antífona da Missa da Aurora prossegue a mesma sinfonia, conjugando Isaías 9,1 e Lucas 2,11, e soa assim: «Hoje sobre nós resplandece uma Luz: nasceu o Senhor». A Antífona da Missa do Dia continua a indicar o «para nós» deste Filho e do seu Mistério, trazendo ao de cima outra vez a pauta de Isaías: «Um menino nasceu para nós, um _lho nos foi dado» (Is 9,6).

2. A linha dos evangelhos deste dia é de excecional riqueza e desenvolve-se em três movimentos: o acontecimento, o anúncio e o acolhimento. Começa com Lucas 2,1-14 (Meia-Noite) e continua com Lucas 2,15-20 (Aurora), que nos trazem o quadro histórico-geográfico do nascimento de Jesus (Lc 2,1-7), o seu anúncio (Lc 2,8-14) e acolhimento (Lc 2,15-29). O nascimento de Jesus, na sua nudez, aparece narrado três vezes, nos três movimentos do texto (Lc 2,7.12.16). Ele é claramente o centro. Aparece logo situado no decurso do recenseamento do mundo romano ordenado por César Augusto, sendo Quirino prefeito romano da Síria (Lc 2,1-2). O reinado de Augusto estende-se por muitos anos (27 a. C.-14 d. C.), mas Pôncio Sulpício Quirino foi prefeito da Síria apenas no ano 6 d. C., sendo então que liquida os bens de Arquelau, filho de Herodes, "o Grande", e anexa definitivamente a Judeia ao Império Romano. O leitor menos prevenido dirá logo que há aqui uma imprecisão histórica. Acrescento então que este recenseamento foi iniciado em 7-6 a. C. por Sêncio Saturnino, prefeito da Síria durante os anos 9-6 a. C. É sabido, de resto, que a era cristã atualmente em vigor foi fixada no século VI pelo monge xiita, de origem egípcia, Dionísio, "o Pequeno", com um pequeno erro de cálculo que resultou no atraso seis ou sete anos em relação ao nascimento de Jesus. Portanto, Jesus terá nascido seis ou sete anos antes do início da era cristã fixada pelo monge Dionísio. E aí está então tudo em dia: Jesus nasce quando Sêncio Saturnino dá início ao recenseamento. Dirá outra vez o leitor incauto: Se assim foi, porque é que Lucas fala de Quirino e não de Saturnino? Se repararmos bem, Lucas faz exatamente como nós fazemos hoje. Nas placas que colocamos nos edifícios públicos que inauguramos, constam os nomes das autoridades que os terminam e inauguram, e não daqueles que os iniciam. O mesmo se diga da promulgação de leis e tratados.

3. É ainda no quadro deste recenseamento que José, acompanhado por Maria, sua esposa, sobe a Belém para se recensear. O texto explica bem que esta deslocação se fica a dever ao facto de José ser da descendência de David (Lc 2,3-4). Alguém poderá perguntar: Então porque foi José viver para Nazaré, se ele era natural de Belém, a uns 150 km de distância? Provavelmente dentro do programa político-religioso de rejudaização da Galileia, iniciado por Alexandre Janeu (103-76 a. C.), em que colonos judeus eram incentivados a repovoar e rejudaizar a Galileia.

4. O próximo passo refere que não havia lugar para eles (José e Maria) na sala (Lc 2,7). Note-se que o texto refere, de forma clara, "sala", grego "katályma", e não "hospedaria", como se lê em muitas e preconceituosas traduções. Na verdade, Lucas sabe bem dizer hospedaria, como faz na passagem do bom samaritano (Lc 10,34), em que usa o termo grego "pandocheîon". "Katályma" não significa "hospedaria". Significa "sala". Pode ser a "sala" do andar superior (Lc 22,11), mas é, neste caso, a "sala de hóspedes" que a arqueologia pôs a descoberto no rés do chão de muitas das casas da Palestina do tempo de Jesus. Esta "sala" apresenta forma quadrada ou retangular, com um banco rochoso ao longo das paredes, destinado ao descanso das pessoas. Uma única porta de entrada dava acesso à sala a pessoas e animais. Ao fundo da sala localizava-se outra porta, que dava para um estábulo, para onde as pessoas conduziam naturalmente os animais. É neste estábulo anexo à sala de hóspedes que vai nascer Jesus, e é também aqui que se compreende perfeitamente a presença da manjedoura (Lc 2,7 e 12).

5. Vem depois a cena maravilhosa da manifestação desta Notícia aos pastores dos campos de Belém. Os pastores são os últimos da sociedade, e não entram nas contas de ninguém, tal como o pequeno pastor de Belém, David, não entra nas contas já encerradas de seu pai (1Sm 16,10-11), mas entra nas de Deus (1Sm 16, 11-12). Assim é também aos pastores de Belém que o mensageiro celeste anuncia a Alegria do nascimento de um Salvador para todo o povo, Hoje nascido em Belém (Lc 2,8-11).

6. E, deste acontecimento, o mensageiro celeste dá um sinal ("sêmeîon") aos pastores e a nós: «encontrareis um recém-nascido envolto em faixas e deposto numa manjedoura» (Lc 2,12). Entra então subitamente em cena uma multidão do exército celeste (Lc 2,13) – expressão que só se encontra aqui nos evangelhos – para entoar aquele celestial e humano "Gloria in excelsis Deo" e Paz na terra aos homens que Ele ama (Lc 2,14). Depois desta cena grandiosa e única, aí vão eles, os pastores, aqueles com quem ninguém conta e que não entram em nenhuma lista, aí vão eles "apressadamente" (Lc 2,16), como Maria (Lc 1,39), verificar ("ideîn") os acontecimentos a eles dados a conhecer por Deus (Lc 2,15), e que, como verdadeiros anunciadores, não podem calar, e devem dar também a conhecer a todos (Lc 2,17). Note-se esta Paz diferente, que não é obra das armas, como no mundo romano, nem de acordos entre as partes, como no judaísmo palestiniano, mas dom de Deus!

7. Cena sublime e suprema ironia. Os senhores do mundo (César Augusto e Quirino) são mencionados, mas saem logo de cena para dar lugar aos pastores, que assumem o papel de verdadeiros protagonistas. Os senhores do mundo ocupam um único versículo cada um (Lc 2,1 e 2). Os pastores enchem treze versículos (Lc 2,8-20). Também lá estão Maria, José e o Menino, mas não dizem uma única palavra. A palavra é toda dos anjos e dos pastores. Mas Maria é estupendamente retratada a «guardar todas aquelas palavras, compondo-as ("symbállousa") no seu coração» (Lc 2,19).

8. Note-se ainda o sinal dado aos pastores e a nós, leitores: um recém-nascido "envolto" em faixas, "deposto" numa manjedoura. É preciso também ver já aqui a Luz da Páscoa, com o corpo de Jesus a ser "envolto" num lençol e "deposto" num sepulcro (Lc 23,53). Mas também a "sala" ("katályma") onde não havia lugar para eles (Lc 2,7) reclama já a "sala" para comer a Páscoa (Lc 22, 11). O Evangelho do Dia (Jo 1,1-18) deixa-nos de joelhos em contemplação: «E o Verbo se fez carne e pôs a sua tenda entre nós, e nós contemplámos ("theáomai") a sua glória» (J. 1,14). Mas também: «Veio para o que era seu, e os seus não o receberam» (J. 1,11).

9. Os passos dos peregrinos e os nossos convergem hoje para a Basílica da Natividade em Belém. Não obstante os múltiplos trabalhos de reconstrução e conservação ao longo dos séculos, a basílica que hoje se depara ao peregrino é, nas suas linhas gerais, obra do imperador Justiniano, edificada entre 531 e 565, e é mesmo o único templo, provindo de Justiniano que resta na Palestina. Escapou mesmo à razia dos Persas de Cosroé, em 614, contra os templos cristãos, devido ao facto de os frescos que adornam a basílica conterem representações dos Magos, o que muito terá sensibilizado os Persas. Esta não é, porém, a basílica primitiva. Os trabalhos arqueológicos efetuados pelo P. Bagatti em 1949-1950 mostraram, por debaixo do pavimento da atual basílica, os traços arquitetónicos de outra grandiosa basílica, levantada entre 326 e 333, por Santa Helena, mãe do imperador Constantino. Esta primitiva basílica foi assolada por diversos incêndios e depois grandemente devastada pela revolta dos Samaritanos de Nablus em 529 contra o governo bizantino. Foi sobre as ruínas desta basílica constantiniana que o imperador Justiniano fez construir, com traços arquitetónicos diferentes, a basílica atual.

10. Mas a basílica constantiniana também não representa o estádio primitivo do culto cristão em Belém. Este encontra-se certamente na cripta da basílica atual, guardado num espaço retangular de 12,30 metros de comprimento por 3,50 metros de largura, para onde convergem os passos dos peregrinos. Este espaço corresponde ao estábulo anexo à já mencionada sala de hóspedes. Aí se encontra o Altar da Natividade, debaixo do qual se pode ver uma estrela de prata com a inscrição: "Hic de Virgine Mariae Jesus Christus natus est" [= «Aqui da Virgem Maria nasceu Jesus Cristo»]. A Basílica da Natividade guarda na sua cripta o mistério do nascimento de Jesus, da pobreza, da humildade, do amor, da paz. Daquele e daquilo que não tem lugar na sala do nosso bem-estar, poder, ódio, ostentação, tirania. Na tua casa e na tua sala há lugar para quem e para quê, meu irmão deste Dia de Natal?

Há dois mil anos Deus sonhou
E foi
Natal em Belém.
Sonha também.
Se o jumento corou
E o boi se ajoelhou,
Não deixes tu de orar também.

A notícia ecoou nos campos de Belém.
Com o celeste recital que ali se deu,
O Céu ficou ao léu,
A Terra emudeceu de espanto,
E os pastores dançaram tanto, tanto,
Que até os mansos animais entraram nesse canto.

Isaías 1,3 antecipou a cena,
E gravou com o fulgor da sua pena
O manso boi e o pacífico jumento
Comendo as flores de açucena
da vara de José sentado ao lume,
E bafejando depois suavemente o Menino de perfume.
Enquanto os meigos animais vão comer à mão do dono,
O meu povo, diz Deus, não Me conhece,
e perde-se nos buracos de ozono.

Vem, Menino!
E quando vieres para a tua doirada sementeira,
Que logo cresce e se faz messe (Jo 4,35),
Quando assobiares às boieiras,
Chama também por mim,
Diz bem alto o meu nome,
Vamos os dois para o campo e para a eira,
E enche-me de fome de um amor como o teu,
Pequenino e enorme.

 

Edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 15.12.2015

 

Título: Quando Ele nos arbre as Escrituras - Domingo após domingo
Autor: D. António Couto
Editora: Paulus
Páginas: 464
Preço: 18,90 €
ISBN: 978-972-301-896-7

 

 
Imagem Capa | D.R.
Uma tradição espalhada sobretudo no Oriente acrescenta que, além de médico, Lucas era também pintor. Tenha-o sido ou não, o facto é que a escrita de Lucas apresenta um carácter particularmente plástico e pictórico, deixando-nos, nos seus textos, figuras inesquecíveis
Claramente, Maria aparece como portadora de Notícias Felizes. Mas, ao correr sobre os montes, Maria reveste-se também do perfume do amor novo do Cântico dos Cânticos 2,8, onde se ouve a amada a dizer: «A voz do meu amado, ei-lo que vem correndo sobre os montes!»
Seria bom que nos demorássemos longamente a contemplar esta figura de Maria, bela, leve e feliz. Contemplando esta figura cheia de beleza e de leveza, estamos já a ver, em contraluz, o retrato dos evangelizadores do Evangelho, também belos, leves e felizes e habitados por um amor novo: sem ouro nem prata nem cobre nem alforge nem duas túnicas
Do Palácio e do Templo, do Rei e dos Sacerdotes, o humilde Miqueias apenas vê sair exploração, opressão, opulência, mentira e violência. É por isso que Miqueias critica asperamente os grandes da Capital que esbulham o povo, cortando a sua carne aos pedaços, e metendo-a na panela (Mc 3). Por isso, quando Miqueias ousa sonhar e vislumbrar um mundo novo, não é para a Capital que ele olha, mas para a província
Genial esta avenida de sentido que atravessa as Escrituras Santas: Miqueias canta um "môshel", um contador de histórias e de parábolas, como condutor de um mundo novo; os evangelhos apresentam Jesus, que fala apenas em parábolas (Mt 13,34; Mc 4,34). E nós sabemos bem que Jesus não nos guia com exércitos e carros de combate, mas com a brancura dos lírios do campo e a inocente alegria dos pássaros do céu
É sabido, de resto, que a era cristã atualmente em vigor foi fixada no século VI pelo monge xiita, de origem egípcia, Dionísio, "o Pequeno", com um pequeno erro de cálculo que resultou no atraso seis ou sete anos em relação ao nascimento de Jesus. Portanto, Jesus terá nascido seis ou sete anos antes do início da era cristã fixada pelo monge Dionísio
O próximo passo refere que não havia lugar para eles (José e Maria) na sala (Lc 2,7). Note-se que o texto refere, de forma clara, "sala", grego "katályma", e não "hospedaria", como se lê em muitas e preconceituosas traduções
Uma única porta de entrada dava acesso à sala a pessoas e animais. Ao fundo da sala localizava-se outra porta, que dava para um estábulo, para onde as pessoas conduziam naturalmente os animais. É neste estábulo anexo à sala de hóspedes que vai nascer Jesus, e é também aqui que se compreende perfeitamente a presença da manjedoura
Vem depois a cena maravilhosa da manifestação desta Notícia aos pastores dos campos de Belém. Os pastores são os últimos da sociedade, e não entram nas contas de ninguém, tal como o pequeno pastor de Belém, David, não entra nas contas já encerradas de seu pai (1Sm 16,10-11), mas entra nas de Deus
Cena sublime e suprema ironia. Os senhores do mundo (César Augusto e Quirino) são mencionados, mas saem logo de cena para dar lugar aos pastores, que assumem o papel de verdadeiros protagonistas. Os senhores do mundo ocupam um único versículo cada um (Lc 2,1 e 2). Os pastores enchem treze versículos
Note-se ainda o sinal dado aos pastores e a nós, leitores: um recém-nascido "envolto" em faixas, "deposto" numa manjedoura. É preciso também ver já aqui a Luz da Páscoa, com o corpo de Jesus a ser "envolto" num lençol e "deposto" num sepulcro
Os passos dos peregrinos e os nossos convergem hoje para a Basílica da Natividade em Belém. Não obstante os múltiplos trabalhos de reconstrução e conservação ao longo dos séculos, a basílica que hoje se depara ao peregrino é, nas suas linhas gerais, obra do imperador Justiniano, edificada entre 531 e 565, e é mesmo o único templo, provindo de Justiniano que resta na Palestina
A Basílica da Natividade guarda na sua cripta o mistério do nascimento de Jesus, da pobreza, da humildade, do amor, da paz. Daquele e daquilo que não tem lugar na sala do nosso bem-estar, poder, ódio, ostentação, tirania. Na tua casa e na tua sala há lugar para quem e para quê, meu irmão deste Dia de Natal?
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