Projecto cultural
D. António Marcelino

Na fé, testemunhar a esperança, num mundo de contradições

1.

Conta-se que Frei Bartolomeu dos Mártires encontrou nas serranias do Barroso um pequeno pastor ao qual recomendou que se guardasse da chuva. Perante a resposta cheia de sentido de responsabilidade do adolescente: “Isso não posso fazer, pois me pagam para guardar o rebanho. Se penso em mim posso perder as ovelhas que me foram confiadas”, perguntou-Ihe o arcebispo se ele era crente e o que é que acreditava: “Tudo quanto a Santa Madre Igreja nos ensina” respondeu. “E o que é que ela nos ensina?” replicou o santo arcebispo. “Tudo quanto eu acredito, senhor”, respondeu o pequeno pastor.

A coerência de vida acompanha a fé, suficientemente motivadora, testemunha-a nos compromissos assumidos, ainda que seja uma fé simples e pouco esclarecida, e a compreensão do compromisso pareça um exagero.

Este pequeno facto pode ajudar-nos a ser alegres na esperança, ainda que tenhamos de ser pacientes na tribulação que cada dia enfrentamos, para que sejamos coerentes com a fé que professamos.

 

2.

Hoje muitos cristãos porque vêem dificuldade em ser coerentes dado o contexto em que vivem, pensam que preservam a sua fé ou que sossegam a sua consciência, não se misturando com os outros que não crêem, ou fugindo do mundo, por formas novas, talvez para se instalarem junto do altar, que não implicam ir para o convento, como em tempos acontecia com alguns.

Acontece que a “fuga mundi” não pode mais comportar ou ser expressão correcta de um ideal de vida de um cidadão normal.

Para os seus discípulos Jesus rezava ao Pai: "Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal (maligno)”.

O ideal é estar sempre equipado para saber apreciar todas as coisas com critérios de verdadeira sabedoria, sabendo o que vale e o que vale, decidindo e agindo em consequência do caminho que se abre.

O grande desafio que se põe aos cristãos por isso mesmo, comporta a necessidade de uma formação que esclareça os que querem ser verdadeiros discípulos de Cristo, homens e mulheres, os molde pela novidade do Evangelho, e os ajude a viver e agir no seu mundo concreto, com todas as suas potencialidades e oportunidades, contradições e limites, que o mesmo mundo comporta.

 

3.

E que mundo é este? O mundo que Deus ama como desígnios de salvação, porque é o mundo das pessoas. Sô estas são capazes de voltar a dar à natureza criada a beleza e a bondade da criação na consciência de que tudo o que existe na obra da criação foi feito para todos, para que todos, pela fé em Jesus Cristo, acolham e percebam os projectos de Deus, que estão acima da simples compreensão humana.

O caminho da fé leva, por uma experiência pessoal, que se toma vivência diária ao conhecimento de Deus, um Deus próximo, um “Deus connosco”, um Deus amor, que nos revela os seus projectos, para que no mundo concreto ajudemos a sua realização, desde já, hoje e aqui. E, por igual experiência o mesmo caminho da fé nos faz conhecer o mundo em que vivemos e a sociedade de que fazemos parte.

É esta dupla experiência de Deus e do mundo real, fruto de uma fé que se tornou dinâmica, activa e participativa, a que nada nem ninguém é estranho e que gera uma esperança jubilosa e firme e um amor gratuito, que podemos tornar-nos homens novos, construtores de um mundo novo, fraterno e de solidário.

 

4.

Este mundo das pessoas, tão forte como débil, está sujeito a muitas situações contraditórias, que constituem um apelo, traduzido em desafio, para todos os que nele vivem, actuam e interagem.

Trata-se dum mundo, o nosso mundo ou a sociedade de que fazemos parte, cada vez mais influenciado pela modernidade e seus postulados: implementação da democracia aos diversos níveis e com suas consequências; consciência do valor da pessoa humana, sua dignidade e direitos; participação na vida da comunidade familiar, profissional, política e eclesial; acesso aos direitos humanos fundamentais em pé de igualdade, proclamados pela Declaração da ONU; possibilidade de afirmar e defender dons e capacidades pessoais; autonomia legítima no pensar, no decidir e no agir, em muitos campos da vida social e política.

A globalização da informação toma-nos a todos cidadãos mais próximos uns dos outros e, por vezes, mais solidários e com prometidos.

Tudo isto constitui aquisições civilizacionais e aprofundamento das realidades criadas, que se devem apreciar, respeitar, aceitar e promover, como autênticos valores.

A pessoa e o mundo actual, nas suas linhas constitutivas e formais, constituem uma realidade que a todos toma mais livres, mais abertos, mais responsáveis pelo seu presente, pelo seu futuro e pela vida social em comunidade humana.

 

5.

Mas todos nós verificamos, também, que neste mundo e nas pessoas que o constituem, se manifestam desvios nestas potencialidades, que redundam em fraquezas pessoais e sociais preocupantes, porque constituem autênticos extravios, como estes no meio de outros: individualismo empobrecedor, relativismo crescente em muitos campos da vida, dificuldade crescente de diálogo, não apenas geracional, apagamento programado de valores morais e éticos, empobrecimento do ser pessoal, endeusamento do ter e do poder, retorno a velhas clivagens sociais, como o fatalismo do cada vez mais rico e do cada vez mais pobre, desvalorização e reacção às expressões institucionais, relativização a caminhar para a desvalorização progressiva dos aspectos religiosos, deficiente, quando não mesmo nula, aceitação de qualquer forma, expressão e manifestação de autoridade, liberdade sem peias nos diversos aspectos da vida e da convivência social, não aceitação de normas, porque cada um é norma, a norma é o que interessa e parece bem a cada um, especificamente pessoal no entender e no querer.

O homem de hoje cai frequentemente no endeusamento de si próprio, dispensa Deus e o que com Ele se relaciona. Reage aos absolutos tradicionais, normalmente ligados a verdades objectivas ou transcendentes, mas multiplica por si os absolutos da sua opinião, da sua ideologia política, da sua cor clubista, dos seus direitos indiscutíveis, calando normalmente os seus deveres.

A aceitação do outro, a todos os níveis, vai passando de difícil a impossível. Assim se fragilizam e destroem famílias se foge a compromissos permanentes e a esforços normais, se evitam convivências em casa, no trabalho, na vida social, que podem levar a prisões ou compromissos de vida. Há um cultivo da irresponsabilidade e a condução da vida social cai frequentemente nas mãos de pequenos ou de grandes ditadores.

Deste modo vai crescendo o nível da crítica emocional e pouco criteriosa. O que se faz de bem é calado, o que se faz de menos bem, e que também é normal que aconteça, constitui, por via de um farisaísmo vergonhoso, ocasião de escândalo e de crítica, com o favor imediato de uma crítica dependente do emocional e do vazio, pobre e empobrecedora.

Este clima entra em todo o lado e tem sempre aí fautores, defensores e teóricos do sistema.

Capa

 

6.

É neste mundo concreto de capacidades e de contradições, que os cristãos vivem e, muitas vezes, são também eles afectados pelo espírito empobrecedor reinante do individualismo, do relativismo e de muitas situações e comportamentos, que os tornam, não raro, objecto de criticas e de julgamentos, rigorosos e de pouca compreensão.

Isto exige, desde logo, ao cristão consciente a atitude evangélica fundamental de não se julgar melhor que os outros, de não julgar os outros, expressando acolhimento e aceitando ser ponte reconciliadora e unificadora num mundo que sublinha mais as divisões que os pontos de encontro e de diálogo sempre possíveis.

A fé esclarecida tem uma dimensão não meramente religiosa, mas também de convivialidade, de compromisso cívico e político, de solidariedade aberta, de diálogo cultural, político e religioso e de empenhamento activo em todas as causas que visam a dignidade das pessoas, o bem comum, os valores não discutíveis os legítimos projectos a favor de todos, e muito especialmente, dos mais excluídos na sociedade.

O cristão num mundo de contradições, não pode ser um homem de seita ou de grupo enquistado, mas deve estar aberto à colaboração com todos quantos honestamente trabalham pelo bem de todos, capaz de apreciar e de louvar o que se faz de bem, mesmo quando realizado por gente que Ihe seja estranha pelas ideias ou pela convivência diária.

 

7.

A fé em Jesus Cristo e a preocupação de penetrar cada vez mais no mundo dEle, vai configurando o cristão, de modo a tornar-se, também ele, à maneira de Cristo, um homem para os outros.

A parábola do bom samaritano que faz pôr aquele que precisa como o que determina o comportamento daquele com quem se encontra, a cena do lava­pés que nos diz que só é grande aquele que considera os outros maiores do que si próprio, a revelação antecipada do exame final a que cada um se vai sujeitar, irreversivelmente, o exame mais determinante na vida, que se reduz ao bem que cada um fez ou deixou de fazer, àqueles que precisavam de si, todas estas páginas do Evangelho de Cristo são páginas de ouro que qualificam os verdadeiros discípulos de Cristo e valorizam o seu testemunho cristão e compromisso no mundo.

Este testemunho e compromisso de fé implicam por parte de todos os que se consideram cristãos e que vivem num clima e numa tónica de esperança, simplicidade na relação, abertura ao diálogo, solidariedade a toda a prova, colaboração aberta e gratuita, ausência de expressões de fanatismo e intransigência, coragem e fortaleza na proposta e defesa de valores humanos e espirituais essenciais, luta pela verdade, pela justiça e pela paz.

 

8.

Jesus falou aos discípulos da importância do seu comportamento: “Vendo-vos e vendo as vossas boas obras, outros acreditarão", disse Ele.

Não bastam mais intenções nem boa vontade. Muito menos juízos inconsequentes sobre a realidade e sobre os outros que estão em dissonância.

São necessárias obras. Estas são o aval das propostas feitas, a demonstração de que não é vã a nossa esperança e quaI a qualidade da mesma.

Paulo VI deixou dito que a esperança era uma virtude em crise e que era urgente dar-Ihe vida e sentido num mundo que não crê ou onde as pessoas reduzem a sua vida a coisas meramente passageiras.

A interpelação aos cristãos, em relação à esperança, vem de longe. Pedro na sua I Carta (3,15), dando conta de que a fé e a esperança são inseparáveis, recomenda: “Estai sempre preparados para dar razão da vossa esperança". A recomendação tem dimensão que vai longe, porque dar razão da esperança e mostrar quaI o seu fundamento e como só ela determina o sentido da vida na sua globalidade.

Virtude em crise também para muitos cristãos ou porque acomodados ou porque já inquinados do espírito do mundo, que muitas vezes se apresenta em confronto e em conflito com o Evangelho de Cristo, e o desígnio de salvação como no-lo recorda Paulo VI na EN n.º 19 falando dos “Critérios de julgar, valores que contam, centros de interesse, linhas de pensamento, fontes inspiradoras e modelos de vida.”

Tudo isto se pode e deve ter em causa na resposta aos desafios que na sociedade se põem hoje aos cristãos e que Bento XVI, em comunicação à Academia Pontifícia das Ciências Sociais, enumerou como “desafios da época pós-moderna”: a defesa da vida, a tutela de todos os direitos da pessoa e da família a construção de um mundo solidário, o respeito pela natureza criada e seus bens, o diálogo intercultural e religioso.

Resumindo, fala o Papa de três desafios centrais, a saber: o respeito pela pessoa humana, o respeito pelo ambiente, o evitar o perigo de que a sociedade tecnológica desterre e despreze os valores do espírito.

 

9.

Um adolescente de 9 ou 10 anos, em dia de inauguração oficial de uma sala pública de computadores para gente nova, já lá vai uma dúzia ou mais de anos, quando o interrompi, para Ihe perguntar, agarrado como estava freneticamente a um computador, se aquilo era importante, olhou-me displicentemente e res­pondeu apenas: “Isto é o futuro!”

O futuro que nos compete também a nós, cristãos, construir com esperança e determinação, deve ser um futuro humanizado e não será se quem tem valores morais e éticos, se omitir, na sua dedicação e acção. E, tratando-se de professores e educadores, deles depende muito a educação das novas gerações.

O jornal Público de 12 de Dezembro último [2007] apresenta, com base em inqué­ritos e sondagens, o retrato-robot do português-tipo num futuro não muito distante. Os traços deste retrato são os mais variados e ecléticos, inspirados e marcados pelos traços mais salientes da modernidade. Vão das experiências exóticas às formas do novo consumismo, das apetências comodistas às procuras espirituais, da exclusiva utilização das novas tecnologias ao contacto directo, sempre breve, com pessoas e terras que ofereçam novidade, de rotura com o mundo dos pais à aceitação de novas formas de vida que não se apresentem com exigências de compromisso permanente, da preocupação de ter hábitos com "dimensão espiritual, à abordagem de filosofias orientais com influência na vida e ao estudo de religiões como formas de desenvolver a espiritualidade, da decisão de não fumar à procura de formas novas de conservar a saúde e de conseguir o relaxamento, como o reiki, o yoga e o tai chi, da opção por cursos de curta duração e temas imprevisíveis ao estudo a sério de línguas não europeias sé para as conhecer e, no mesmo clima, por querer ver filmes que não sejam nem europeus, nem americanos, do direito, sem reservas, ao casamento homossexual e ao direito de adoptar crianças, por parte de qualquer pessoa...

É evidente que hoje não se poderá considerar a sociedade portuguesa em bloco. A sociedade urbana está visivelmente fragmentada e por todo o lado cada um quer mostrar a sua originalidade, usando para isso todos os meios técnicos ao seu alcance.

 

10.

Este é o mundo de muita gente nova e, também, de muita gente menos nova. O nosso mundo, mesmo que a adesão pessoal seja mínima e o espírito critico exigente e acirrado.

O mundo onde vivemos e temos de viver. Um mundo que está dentro da casa de muitos de vós, especialmente dos vossos filhos e dos seus amigos e, também, nas salas de aulas, nos recreios e nos corredores desta escola, de todas as escolas, massificadas, mas com cada um a querer ser diferente, vivendo e movendo-se na mesma órbita de valores e de sentimentos.

Os verdadeiramente diferentes, que se movem num mundo de valores diferentes e de opções personalizadas, quase que têm de ser clandestinos na sua casa, na sua escola, no seu grupo de amigos e colegas. Se não tiverem quem meta ombros com eles na senda que escolheram e onde querem persistir, porque encontraram ai o sentido a sua vida, correm o risco de serem submergidos.

É neste contexto concreto, hoje bastante generalizado, que a fé ganha dimensão de esperança e esta de compromisso e de testemunho.

“Vendo-vos e vendo as vossas boas obras, outros acreditarão..." (...)

 

11.

Deixai que termine pondo tudo isto que vos disse em chave de esperança com palavras de Bento XVI na sua recentíssima encíclica, “Salvos na Esperança” n.48

“Nunca é tarde demais para tocar o coração do outro, nem é jamais inútil. Assim se esclarece melhor um elemento importante do conceito cristão de esperança. A nossa esperança é sempre essencialmente também esperança para os outros; só assim é verdadeiramente esperança também para mim.”

D. António Baltasar Marcelino, Bispo emérito de Aveiro

Encontro com professores, Coimbra, Colégio de S. Teotónio, 19.12.2007

in Igreja Aveirense

06.06.2008

 

 

Topo | Voltar | Enviar | Imprimir

 

 

barra rodapé

Capa

Igreja Aveirense

Autor
AA.VV.

Editor
Comissão Diocesana
da Cultura (Aveiro)

Páginas
206

Período
Julho/Dezembro 2007

ISSN
1646-3110

Contactos
234 42 06 00
Correio electrónico

Edição mais recente do ObservatórioOutras edições do Observatório
Edição recente do Prémio de Cultura Padre Manuel AntunesOutras edições do Prémio de Cultura Padre Manuel Antunes
Quem somos
Página de entrada