O projecto cultural de Paulo VI
Todos sabem que a Igreja está mergulhada na humanidade, dela faz parte, a ela vai buscar os seus membros, dela extrai tesouros preciosos de cultura, dela sofre as vicissitudes históricas e pelo bem dela trabalha.
Ora é sabido igualmente que a humanidade no tempo actual está em vias de grandes transformações, abalos e progressos, que lhe modificam profundamente não só o estilo de vida no exterior, mas também o modo de pensar. O pensamento, a cultura e o espírito sofrem modificação profunda, originada no progresso científico, técnico e social, como também nas correntes do pensamento filosófico e político, que a invadem e penetram. Tudo isto, como ondas do mar, envolve e sacode a Igreja. As almas, que a ela se confiam, são muito influenciadas pelo clima do mundo temporal; de maneira que um perigo quase de vertigem, de aturdimento, de extravio pode abalar a solidez dos seus membros e levar muitos a admitir os pensamentos mais desvairados, como se a Igreja houvesse de negar-se a si mesma e adoptar formas novíssimas e nunca imaginadas de viver. Não foi, por exemplo, o fenómeno modernista que ainda se manifesta em várias tentativas de expressão heterogéneas à realidade autêntica do catolicismo, não foi ele um episódio duma exaltação semelhante das tendências psicológico-culturais, próprias do mundo profano, que pretendiam suplantar a expressão fiel e genuína da doutrina e das normas da Igreja de Cristo?
Ora, para nos imunizarmos desse perigo ameaçador e múltiplo, que vem de várias partes, parece-nos que é remédio bom e óbvio aprofundarmos o conhecimento que temos da Igreja, daquilo que ela é na verdade, segundo o plano de Cristo, que nos é conservado na Sagrada Escritura e na Tradição, e depois interpretado e desenvolvido pela genuína tradição eclesiástica. Esta é, como sabemos, iluminada e guiada pelo Espírito Santo, sempre pronto, todas as vezes que o imploremos e ouçamos, a dar cumprimento indefectível à promessa de Cristo: "O Espírito Santo, que o Pai enviará no meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos recordará tudo o que Eu vos tiver dito" (Jo 14,26). (n. 10)
A cultura e a vida cristã
O afã de aperfeiçoamento espiritual e moral é também estimulado exteriormente pelas condições em que a Igreja vai vivendo. Não pode ficar imóvel e indiferente entre as mudanças do mundo que a cerca. Este, por mil caminhos, influencia e condiciona a atitude prática da Igreja. Como todos sabem, ela não está separada do mundo, vive nele. Por isso, os membros da Igreja estão sujeitos à influência do mundo, de que respiram a cultura, aceitam as leis e absorvem os costumes. Este contacto permanente, que a Igreja tem com a sociedade temporal, impõe-lhe uma problemática contínua, hoje dificílima. Por um lado, a vida cristã, como a Igreja a defende e promove, deve com perseverança e tenacidade preservar-se de tudo quanto pode enganá-la, profaná-la e sufocá-la, procurando imunizar-se do contágio do erro e do mal; por outro, a vida cristã deve não só adaptar-se às formas do pensamento e da moral, que o ambiente terreno lhe oferece e impõe, quando elas forem compatíveis com as exigências essenciais do seu programa religioso e moral, mas deve procurar aproximá-las de si, purificá-las, nobilitá-las, vivificá-las e santificá-las: nova missão, que impõe à Igreja um exame constante de vigilância moral, reclamado hoje com particular urgência e gravidade. (n. 20)
Características do diálogo: clareza, mansidão, confiança, prudência
O colóquio é (...) [o] modo de exercer a missão apostólica, arte de comunicação espiritual. Os seus caracteres são os seguintes: l) Primeiro que tudo, a clareza. O diálogo supõe e exige compreensibilidade, é transfusão do pensamento, é estímulo do exercício das faculdades superiores do homem. Bastaria este seu título para o classificar entre os mais altos fenómenos da actividade e da cultura humana; e basta esta sua exigência inicial, para levar o nosso zelo apostólico a rever todas as formas da nossa linguagem: para examinar se ela é compreensível, popular e digna. 2) Outro carácter é a mansidão, aprendida na escola de Cristo, como Ele nos recomendou: "aprendei de mim que sou manso e humilde de coração" (Mt 11,29). O diálogo não é orgulhoso, não é pungente, não é ofensivo. A autoridade vem-lhe da verdade que expõe, da caridade que difunde, do exemplo que propõe; não é comando, não é imposição. O diálogo é pacífico, evita os modos violentos, é paciente e é generoso. 3) Outra característica é a confiança, tanto na eficácia da palavra-convite, como na receptividade do interlocutor. Produz confidências e amizade, enlaça os espíritos numa adesão mútua ao Bem, que exclui qualquer interesse egoísta. 4) E o último carácter é a prudência pedagógica, que atende muito às condições psicológicas e morais de quem ouve (cf. Mt 7,6): se criança, se inculto, indisposto, desconfiado e mesmo hostil. Essa prudência leva a tomarmos o pulso à sensibilidade alheia e a modificarmos as nossas pessoas e modos, para não sermos desagradáveis nem incompreensíveis.
No diálogo, assim entabulado, realiza-se a união da verdade e da caridade, da inteligência e do amor. n. (47)
Uma questão problemática: a adaptabilidade da missão da Igreja à cultura
Apresenta-se nesta altura uma questão espinhosa: a adaptabilidade da missão da Igreja à vida dos homens num dado momento, ou lugar, numa dada cultura e situação social.
Até que ponto deve a Igreja adaptar-se às circunstâncias históricas e locais em que desempenha a sua missão? Como deve premunir-se contra o perigo dum relativismo que ofende a sua fidelidade dogmática e moral? Mas, ao mesmo tempo, como lhe será possível abeirar-se de todos para todos salvar, segundo o exemplo do Apóstolo: "Fiz-me tudo para todos, para salvar a todos" (1 Cor 9,22). Não é de fora que salvamos o mundo; assim como o Verbo de Deus se fez homem, assim é necessário que nós nos identifiquemos, até certo ponto, com as formas de vida daqueles a quem desejamos levar a mensagem de Cristo, é preciso tomarmos, sem distância de privilégios ou diafragmas de linguagem incompreensível, os hábitos comuns, contanto que estes sejam humanos e honestos, sobretudo os hábitos dos mais pequenos, se queremos ser ouvidos e compreendidos. É necessário, ainda antes de falar, auscultar a voz e mesmo o coração do homem, compreendê-lo e, na medida do possível, respeitá-lo. E quando merece, devemos fazer-lhe a vontade. Temos de nos mostrar irmãos dos homens, se queremos ser pastores, pais e mestres. O clima do diálogo é a amizade; melhor, o serviço. Tudo isto devemos recordar e esforçar-nos por praticar, segundo o exemplo e o preceito que Cristo nos deixou (cf. Jo 13,14-17). (n. 49)
Um perigo subsiste porém. A arte do apóstolo tem seus riscos. O desejo de nos aproximarmos dos nossos irmãos não deve traduzir-se numa atenuação ou diminuição da verdade. O nosso diálogo não pode ser fraqueza nos compromissos com a nossa fé. O apostolado não pode transigir com meias atitudes, ambíguas, quanto aos princípios teóricos e práticos característicos da nossa procissão cristã. O irenismo e o sincretismo são, no fim de contas, formas de cepticismo a respeito da força e do conteúdo da Palavra de Deus, que desejamos pregar. Só quem é de todo fiel à doutrina de Cristo pode ser apóstolo eficaz. E só quem vive em plenitude a vocação cristã pode imunizar-se do contágio dos erros com que entra em contacto. (n. 50)
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06.08.2008
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