Projecto cultural
Religião e cultura

Devoções marianas no Norte de Portugal

“Os presentes mais belos para as crianças de todas as idades são os das grandes pessoas que aceitam partilhar com elas o que sabem e o que acreditam: a história das aldeias, os nomes das flores e das árvores, as revoluções das estrelas, os segredos da casa da sua infância. Há também a vida secreta dos santos juntos na Igreja da aldeia. Cada igreja tem os seus santos particulares mas em todas as igrejas há sempre a imagem de uma mãe com o seu menino nos braços: Maria, mãe de Deus. Maria é da terra e do céu. É da terra: nela todas as nossas mães estão reunidas. É do Céu: é Santa Maria, Mãe de Deus. Basta olhar bem alguma das pinturas ou esculturas que representam Maria e seu filho para ensinar às crianças um segredo: como Maria amou Jesus e como ela nos ama.”.

Gostaria que este estudo constituísse um momento de partilha da minha fé, olhando para a igreja da minha aldeia, onde cada um poderá esfolhear o catecismo vivo que é a Mãe de Deus, Não é preciso ir longe, nem passar muito tempo nas prateleiras de bibliotecas; é preciso moldar o olhar e sintonizar o ouvido, escutando aquilo que nós rezamos, pois só rezamos o que acreditamos e olhando para aqueles sinais sensíveis que são a tradição mais simples da nossa arte.

Assim, esta reflexão será de agradável convivência com aquilo que é nosso, trazendo à memória o que fazemos e o que rezamos. Trata-se daquilo que comummente se chama religião popular mariana sem ópticas de exclusão, mas na admiração daquela simplicidade que atrai quando olhamos para Maria. Depois, a outro nível, procurarei reflectir num ângulo mais antropológico, partilhando algumas notas inscritas nas nossas rotinas marianas, ajudando a ler o que poderá estar do outro lado. Por último, apresentarei alguns tópicos como sugestões pastorais, no intuito de preservar tantas coisas simples e belas que nos constroem sob o ícone radioso da mãe do Céu.

 

Na memória ritual

Recordem-se, em leitura simples pelo do nosso quotidiano neste contexto português do Norte, os dados mais relevantes que nos estruturam na devoção a Maria. Do ponto de vista de um diagnóstico, já se encontra publicado um primeiro conjunto de dados. Não o repetindo, recordamos apenas o que ali escrevemos sobre a grande visibilidade mariana na região do Norte: Maria “nos cruzamentos de estrada de pequenas localidades está presente na indicação de santuários ou de igrejas de romaria (...)) nos nichos murais dedicados à Senhora do Caminho ou à Senhora dos Emigrantes, bem como em muitas capelas que, por toda a região, lhe são dedicadas sob as mais diversas invocações (...). Maria preside frequentemente aos destinos do lar, mesmo exteriormente (os azulejos são disso prova), Esta presença pública não esgota a visibilidade mariana. (...)”. Do exterior ao interior das moradias reflectem-se devoções que solidificam de forma simples as gerações. O diagnóstico é feito também em termos individuais, do terço de bolso à pagela, da imagem-«bibelot» à agenda, da vela à jaculatória, da avé-maria ao angelus.

Acentue-se, no entanto, o que marca o povo do Norte, durante o mês de Maio. Se a devoção do mês de Maria, Maio, está espalhada um pouco por toda a parte onde há cristãos, e se ela retoma proporções no nosso tempo mesmo em Portugal, a região forte nunca se separou dela. Hoje vive-se de forma diferente, mas continuamos a assistir ao cruzamento de gerações ao longo de todo o mês num ritual simples que consagra a rotina eficaz de uma devoção. O Mês de Maio, depois de alguma turbulência dos finais da década de oitenta no século passado, retoma em algumas das comunidades aquele ritmo fresco que possuía em tempo de cultura agrária. Dizem-nos que talvez não tenha tantas velas nem tronos apropriados, mas revela a frescura das flores em ladainhas simples que coroam a salmodia das avé-marias. E prossegue o mês de Maio. Nas práticas rituais distingue-se bem dos outros, ainda hoje. No ciclo de um ano, é o mês diferente no qual se valoriza a presença de Maio na oração das comunidades, Como o mês de Outubro assinala o limiar da estação fria, o de Maio assinala o Verão que ai está, Um e outro reflectem a grandeza da devoção mariana. Trata-se de um mês cheio de flores que evidencia bem a função cósmica da religião e que, se não for alvo de atropelos, poderá constituir um tempo regenerador nas comunidades ao terminar os trabalhos da Primavera. Compreende-se ainda que numa sociedade voltada à cultura académica e escolar, este mês possa enquadrar com êxito uma fase fulcral no itinerário estudantil em época de avaliação da aprendizagem.

A origem da tradição do “Mês de Maio” encobre-se em hipóteses antigas desde o século VII na Igreja copta do Egipto ou segundo o estudo de V. Grumel, nos rituais bizantinos. Sabe-se, com certeza, que no Ocidente os primeiros “Mês de Maria”, como livros de devoção, são impressos nos inícios do século XVIII. O primeiro conhecido é de 1724, em latim e o segundo de 1726, em italiano.

Esta tradição retempera o ciclo anual de vida das comunidades. Funciona bem porque comporta a rotina de uma fórmula estruturante aprendida desde a mais tenra idade. As devoções marianas não se mantêm sem a avé-maria estruturada em 15 dezenas, constituindo-se em saltério popular. O terço é a prece mais popular da devoção. Se estas fórmulas simples de alternância com o Pai-nosso se vão acentuando em toda a Idade Média, o Rosário parece enraizar-se na piedade de S. Domingos, apesar de a sua forma actual remontar a Alain de Ia Roche (1470), com o nome de Saltério Marial, comparando cada avé-maria a um salmo, No início era a oração das confrarias, oração comunitária expressiva de profunda confiança.

Rapidamente se propagou por toda a Europa e para a sua forma actual muito contribuiu a persuasão do Papa Pio V. Só a partir deste Papa dominicano do século XVI, a forma se cristalizou com o ritmo binário da avé-maria/Santa Maria, esta última acrescentada à parte bíblica que vinha desde Alain de la Roche. Tudo ganha mais fervor com a vitória de Lepanto em 1573 que levou o Papa Pio V a instituir a festa litúrgica do Rosário.

Em Portugal, esta devoção mariana desenvolve-se fortemente no século passado com as aparições da Virgem em Fátima (1917) formulando o pedido aos pastorinhos de que rezassem o terço todos os dias para implorar a paz e pela conversão dos pecadores. Esta mensagem foi fortemente enraizada em todas as paróquias do Minho, mormente nas missões populares que se seguiram à segunda grande guerra e ainda hoje dão frutos nas gerações mais maduras. “Bíblia dos pobres”, o povo mais simples entende-a bem já que corresponde à sua cultura, pela estrutura de louvor e de petição na qual o integra, com simplicidade, sem esforço e facilitando a rotina.

Desde o século XIII, a recitação ternária das três avé-marias, cada dia, recorda a vinda de Deus em Cristo, no seio de Maria. Sabe-se que esta devoção, enraizada no povo do Norte de Portugal, vem do século XI na Igreja, em alguns lugares, particularmente no que diz respeito ao fim do dia, O século XIII é uma época de oiro para a devoção, já que se o Papa Gregório IX tinha já instituído o costume de tocar os sinos à tardinha, S. Boaventura pelo ano 1269 terá proposto a todos os fiéis o costume franciscano de rezar três avé-marias ao tocar dos sinos à tardinha, No século XIV, João XXII vai tornar esta prática indulgenciada. As três avé-marias de manhã constituem, certamente, a réplica popular correspondente à hora de “Prima” nos conventos como o Angelus do meio-dia é, desde o século XIV, a adesão popular à comemoração da Paixão do Senhor, o que terá começado à Sexta-feira e depois terá sido estendido a toda a semana. O Angelus, tal como o temos hoje, é uma devoção uniformizada no século XVII. Profundamente mariana, não é menos cristológica, quer na recitação da avé-maria quer no diálogo que lembra o mistério da Encarnação.

Na nossa região, o Angelus à tardinha está vinculado à oração pelas “almas”, o que lhe imprime um crédito popular ainda maior, dada a intensidade da comunhão com os mortos. Esta devoção é tão simples quanto se trata da versão popular da fé em Deus que se fez homem no ventre puríssimo da Virgem, o que explica sem grandes desenvolvimentos racionais o lugar de Maria e o seu estatuto mediador na fé do nosso povo.

Como oração ao findar do dia, também toda ela voltada para Maria, conserva o povo a “Salvé Rainha”, com a qual normalmente termina também a recitação do terço. Desde o século XIII é uma tradição mariana habitual nas comunidades na sua forma padronizada por Cluny “Salvé Rainha, Mãe de Misericórdia”. Trata­-se de uma antífona da renovação da piedade mariana no século XI que fazia voltar as comunidades para Nossa Senhora, Rainha da Misericórdia, Oração de louvor e de súplica, é uma jóia de ternura, apresentando a Maria a miséria dos seus filhos neste “Vale de lágrimas” e implorando-a no seu estatuto de mãe do perdão e advogada, para que no final “nos mostre Jesus, bendito fruto do seu ventre”, Ela que no-Lo doa na aurora da Encarnação, Aliás a esta devoção, de teor medieval, juntou-se a tradição da Senhora da Boa Morte, fazendo a articulação entre o Angelus com três avé-marias e esta entrega à Advogada no Salve Regina. As três avé-marias ao deitar, devoção estereotipada na catequese ao longo do século passado, apontam para este fundo histórico e para o novo impulso de piedade mariana depois das aparições de Fátima.

Outra devoção bem presente é a das ladainhas, O Mês de Maio integra-as e Fátima dá-lhes um novo impulso, A forma de súplica, que coloca Maria num estatuto explícito de mediadora, provém das ladainhas dos santos, difundidas na Europa nos séculos VII e VIII por monges irlandeses. Nestes, Maria era invocada três vezes, como “Santa Maria, Santa Mãe de Deus e Santa Virgem das Virgens”, como ainda hoje se invoca. Nas ladainhas marianas, a enumeração dos quarenta e nove títulos de louvores de Maria inspira-se nas orações da Igreja grega, As mais conhecidas são as “ladainhas de Loreto” aprovadas pelo Papa Sixto V (1587),acrescentadas sucessivamente por outras invocações, Imaculada Conceição, Assunção, Rosário e Paz (como chegaram até nós). As mais antigas foram provavelmente redigidas no século XII (entre 1150 e 1200) na região parisiense. A fórmula litânica, de teor admirativo e confiante, é sobretudo uma oração simples e completa, com ritmo, facilitando um cenário de repouso, quase de embalo.

Muito frequente ainda, em todas as idades, é o uso das jaculatórias, que são os versículos separados de uma ladainha, como salmo longo. Elas hoje estão sobretudo ligados às mensagens das aparições em La Salette (1846), a Senhora da Reconciliação dos pecadores, na Rua do Bac (1830), O Maria, concebida sem pecado..., em Lourdes (1858) a Imaculada Conceição, em Fátima (1917), Nossa Senhora do Rosário de Fátima.

As devoções a Maria não se esgotam nesta enumeração. Os exemplos apresentados estão bem presentes entre nós. Não nos detivemos na devoção do escapulário, ainda muito arraigada e que, nas nossas aldeias, faz da festa da Senhora do Carmo concorrida. Convém, porém, não esquecer o lugar das medalhas, como pequenos ícones de protecção, de defesa e mesmo de esconjuro e o alto lugar das festas e peregrinações em honra da Senhora, como encenações colectivas que dinamizam ao longo de todo o ano o Alto Minho.

As medalhas apontam para o que aconteceu a Catarina Labouré, aos 24 anos, em Abril de 1830, na capela da Casa-mãe das Filhas da Caridade, em Paris (140, rue du Bac): num primeiro passo, a Virgem fala longamente com a vidente no coro da capela; depois, em Novembro, ela vê a Virgem de pé sobre o globo, de braços estendidos e de mãos abertas das quais saem raios de luz. Em redor do quadro pode ler: “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós”. Momentos depois, a vidente é encarregada pela Virgem de “mandar cunhar uma medalha seguindo este modelo...”. É assim que nasce a “medalha milagrosa” espalhada por todo o mundo, como “pequena catequese em imagens”. Outras medalhas ganham um conjunto de créditos a partir deste momento, já que são todas da mesma Virgem miraculosa (ou milagrosa).

Por sua vez as festas e peregrinações são de todos conhecidos. Basta ater-se ao Roteiro Mariano recentemente editado pela RTAM. A Senhora do Minho serve de ilustração à capa deste Roteiro que apresenta, na região, de Maio a Setembro, um total de 348 festas (ou romarias) sob as mais variadas invocações de Nossa Senhora, quer de teor topológico, quer a partir de elementos naturais, quer de títulos dogmáticos, quer de índole devocional ligadas às necessidades das comunidades e das pessoas, Sem outro objectivo que não seja o de chamar a atenção para o lugar eminente de Maria no panorama social do Norte, importa não esquecer que Portugal é Viana do Castelo por ocasião da Romaria da Senhora da Agonia em Agosto, quando se leva a Senhora ao Mar para abençoar o trabalho dos pescadores ou quando a majestosa procissão faz ver a toda a gente o potencial humano e religioso que esta região integra. Além disto, também o Minho se volta para a Senhora da Peneda na primeira semana de Setembro, como ao findar do ciclo de Verão se volta para a Senhora da Bonança em Vila Praia de Ancora. A Senhora do Minho possui aquele encanto singular de se deixar retratar numa das nossas lavradeiras, de espigas na mão (em vez de oiro), de traje regional, de lenço de lavradeira e de manto azul doirado, onde a elegância se conjuga com a flor azul vianense bordada à mão. Não se deve esquecer que, com maior ou menos aparato festivo externo, as festas em honra de Nossa Senhora são mais do que as comunidades paroquiais, assim como só no mês de Agosto registam-se 129 festas marianas.

 

Breve visita antropológica .

Sem pretender ser exaustivo na leitura que apresento, gostaria agora de me situar a nível antropológico, procurando ler o que está inscrito neste conjunto de devoções que, apesar das transições culturais em curso, continua vivo e actuante no coração da nossa gente.

Procissão de Nossa Senhora da Agonia

O sentido apurado da mediação materna de Maria é o primeiro dado de relevo. Pode discutir-se sobre o lugar excessivo ou não de Maria na devoção popular, esquecendo o povo (dizem alguns) o mais importante da fé. Por vezes, as devoções podem desfocar aqueles que as pareciam de fora. Com Maria no coração do povo de Deus, isto pode acontecer. Parece-me, porém, que se trata mais de um problema de quem olha do que de uma questão de quem pratica. O sentido da fé do povo é mais profundo, não discutindo ele se é ou não conforme à formalidade teórica oficial. Na sua prática, nunca esteve em causa a adequação à doutrina formal. Esta é profundamente vivida, mas com aquele nível de compreensão que lhe é peculiar. Quem escuta o povo de Deus rezar, nunca lhe ouvirá dizer que põe em causa a mediação única de Cristo ou que subalterna a Trindade à protecção dos santos, E certo que nestas devoções se apura um sentido fiel da comunhão na santidade e, por isso, em Deus, Daí não está desfocado o “sensus fidelium”. Maria aparece nas devoções como aquela que na proximidade de um coração materno abre as portas ao divino, à sua graça, aos seus dons. “Abre a porta”, ela é “porta do Céu” ou “estrela da manhã”, para quem anseia por um novo dia, o de Deus no seu quotidiano.

O divino entre os homens, nas suas comunidades, encontra-se sempre mediado. Através dos seus sinais, os homens encontram Deus, nos actos mais concretos da sua vida. Nossa Senhora, mãe dos homens e de Deus, é aquele sinal próximo, terno e experimentado, que o povo de Deus possui desde o início para aceder, na liberdade das suas práticas, ao mistério divino que por Ele lhe vem. As práticas devocionais são lugares de transição, onde o divino se apresenta no coração por meio daquele sinal grandioso que lhe deu carne na manhã da plenitude dos tempos. A mediação de Maria, no coração do povo, talvez não seja formalizada de maneira adequada, mas ela provoca no coração aquela paz que só a Trindade concede na Sua presença beatífica, Nem se pergunte ao povo se está a pensar em Deus quando reza a Maria, A pergunta não tem objecto no seu coração, já que Maria pertence à comunhão de Deus, em primeiro plano; por isso, desde sempre a confessou na Sua Glória. Rezar a Maria é estar com Deus porque Ela é Sua Mãe, eis o sentido da sua mediação. A Mãe não é Deus, mas Sua Mãe e, por isso, a mais próxima, a que nunca se afasta, a mais rápida, a mais directa,”a primeira vizinha de Deus”, Se a Religião é o lugar das expressões de confiança, Maria é este sinal mediador vizinho de Deus e vizinho de cada homem e mulher: vizinho de Deus porque aceitou ser mãe, vizinho de cada um porque da mesma raça.

Um segundo elemento que convém realçar nestas devoções é o do segredo. A escolha das mediações e dos mediadores tem muito a ver com a identidade que cada um quer preservar ou na qual gostaria de fazer alguma passagem quando os obstáculos imperam. Cada um, homem ou mulher, transporta consigo o seu próprio mistério. As mediações apoiam este encontro consigo mesmo, sem se compreender na totalidade, mas aceitando limitações e transferindo para além de si os seus próprios enigmas. É este o sentido antropológico da morada de cada um. É aqui que a devoção se enraíza, porque é sua, depende da sua liberalidade e intensifica­-se à medida que nela se investe. Cada devoção comporta esta dose de segredo, que alguns exteriorizam na poesia e que outros tocam em gestos próprios, em ladainhas ou em novenas. Cada um é só ele neste face-a-face com o mistério que o circunda. O segredo é a alma de cada ser e exterioriza-se de alguma forma na devoção que particulariza uma identidade. Neste sentido, quando se pergunta o porquê, normalmente não se sabe desvendar senão de forma narrativa. O povo de Deus conta então as peripécias da sua vida que deram origem à devoção, mas não explica o porquê da devoção. Esta faz parte do seu mistério e é tanto mais eficaz quanto se preserva no segredo.

Por aqui passa um outro elemento antropológico: os ritos e as fórmulas devocionais são a expressão possível deste segredo envolto na dificuldade da descodificação. As devoções promovem a tranquilidade, a paz e a serenidade de cada devoto, já que estabilizam a sua identidade. Este elemento faz pensar no equilíbrio. Algumas vezes, depois do ritual oficial, quedam-se os fiéis em jaculatórias em surdina ou em gestos inesperados, Trata-se de ritos complementares de índole devocional que criam a harmonia daquele indivíduo. Os ritos simples, pessoais, de acordo com o patamar em que se vive, tranquilizam, reconfortam, criam bonança no interior de uma vida quantas vezes em sobressalto. Assim, pode afirmar-se que o conjunto dos ritos devocionais cria aquele silêncio fecundo que faz chegar a uma outra fase da caminhada. Este silêncio de harmonia é o resultado daquelas comunicações simbólicas que cada fiel estabelece quando ritualiza as suas devoções, Se a devoção retempera e acalma, se é benéfica e se tranquiliza o indivíduo no seu mistério, é exactamente pelo universo de silêncio no qual o recoloca, não na ausência da palavra mas no seu pleno sentido, não no ópio tranquilizante da sua fuga mas na harmonia da sua vida visível com o invisível que o habita, Se a devoção tem sempre uma dimensão muito pessoal, ela aparece como o complemento que abre a porta ao silêncio do ser, transportando-o para a sua morada autêntica. O povo de Deus não diz isto, mas vive-o nas suas práticas.

Um outro elemento é o do afecto. As devoções marianas estão carregadas de afectividade. Poder-se-ia fazer aqui a análise dos cânticos mais populares que os fiéis entoam no mês de Maria, nas peregrinações, nos finais das romarias. A melodia e os poemas estão repletos de expressões afectivas. A devoção ultrapassa o meramente cerebral e racional, sem os dispensar já que cada fiel também é razão e cérebro. Nas práticas devocionais, o coração aparece na frente até na convicção que preside à jaculatória ou ao gesto que se faz, Não há rupturas a nível da pessoa, como se o coração fizesse uma parêntesis da razão, ainda que porventura isto possa transparecer numa leitura imediata, O coração tem sempre as suas razões às quais a racionalidade por vezes não chega. Aqui, a nível antropológico, impõe-se reflectir sobre o lugar do toque, do contacto, seja o beijo, o toque de mão, o aceno do lenço, que fazem parte da gramática afectiva que proporcionará bem-estar. E frequente o desafio relativo ao carácter triste ou melancólico de algumas celebrações fundamentais da fé, Não é de estranhar que, no final, se presenciem cenas carregadas de emoção e de afectividade tendo como alvo uma imagem, um altar de devoção fortemente enraizada, cravando o santo de flores e deixando a marca da mão no seu joelho ou o beijo no seu pé, Se a celebração é demasiado racional, até se explicam os actos devocionais que a acompanham, como é porventura o caso no decurso da Eucaristia. Se a afectividade estrutura cada homem e mulher no mais profundo do seu ser, compreende-se que haja alguma ruptura com os modelos oficiais quando não respeitam esta dimensão estruturante. O toque que acompanha os movimentos de afecto é, a nível religioso, um lugar expressivo de real importância, o que só pode ser feito de forma mediatizada, em sinais que do sagrado testemunham. No universo da fé cristã, o sinal mais eloquente, alvo do toque mais profundo, é o corpo de Cristo, o pão sagrado do altar. Os restantes convergem para ele. Porém, o religioso não prescinde do toque. Este constitui aquela leveza de comunhão que é benéfica para quem confia ou aparece como o silêncio de um gesto que entrega sentido sem fórmula, sem palavras. Comungar o corpo do Senhor é tocá-Lo, como colocar a mão na Senhora da Cabeça é apropriar-se da sua mediação de mãe. O corpo do Senhor vai no coração de cada comungante, como a mediação da Senhora vai na mão de quem a tocou na fé.

Um último elemento de singular importância nos rituais de devoção pode conduzir a uma atitude pastoral mais adequada. As devoções são, em regra, um alto lugar de fidelidade no itinerário crente do povo de Deus. Cada fiel, mesmo sem o redigir, possui o seu diário pessoal no qual estão presentes aqueles episódios mais marcantes e os apoios autênticos que permitiram prosseguir a caminhada. Neste diário estão inscritos os santos mais eficazes e também a fidelidade aos compromissos com eles assumidos. Há aqui algo parecido com “troca” inscrita neste diário. As “trocas” são feitas entre seres da mesma raça, caminhantes da santidade e santos protectores, A fidelidade é notória no universo desta vizinhança com os santos de maior importância pessoal. Nossa Senhora, entre o povo de Deus, é aquela que atende todas as dificuldades e que possui credibilidade sem par. Poder-se-ia dizer que, nos diários, aparece como advogada generalista. As devoções a Nossa Senhora são a inscrição ritualizada não só da sua credibilidade mas também da fidelidade de seus devotos. A fidelidade não se regateia em função da causa. Cumprem-se com muito afecto aqueles gestos e aquelas fórmulas que tornam a Senhora vizinha de todos os dias e, por isso, sempre disponível para apoiar em horas de obstáculos, Se se falou em segredo que faz conviver com o mistério do ser pessoal, fale-se aqui de fidelidade que revela o ser na sua autonomia, rodeado daqueles que lhe facilitam uma vida sensata e apostando numa relação autêntica. Pense-se que na origem de muitas devoções marianas estão crianças de tenra idade, capazes de comportamentos sem falha diante do acontecimento inesperado da visita de alguém com uma mensagem. A jaculatória, o terço, a medalha são os ritos de um diário de pessoas fiéis. Os comportamentos nas novenas, nas festas marianas, nas romarias traduzem muitas vezes a atenção cuidadosa a estas páginas do diário em que a Senhora foi, e continua a ser, a vizinha mais vizinha na fidelidade, Esta só se paga com fidelidade .

 

Alguma luz pastoral

Um papiro retirado das areias do Egipto pelo ano de 1938, constitui o documento da mais antiga oração a Maria, texto do século III, conhecido pelas primeiras palavras “sob tuum praesidi urn”. “A vossa protecção recorremos, Santa Mãe de Deus. No que diz respeito às devoções marianas, cada um deve proceder àquela transição adequada de patamar para o entendimento do que os outros fazem e rezam sob a protecção de Maria. Pastoralmente, pode haver a tentação de pôr de parte o que as gerações passadas legaram, sem confiar ao presente outros ritos. Cada pastor é convidado a rever a sua atitude, considerar que o seu patamar cultural pode não ser o do outro, aceitar que a diferença é uma riqueza quando não colide com o credo, procurar incarnar a situação das pessoas mais simples ajudando-as nos seus gestos e procurando iluminar as próprias orações por vezes rotinizadas. Tratar-se-á de uma nova forma de estar com as devoções, evitando a atitude cega de deixar correr a magia e também a atitude não menos cega de suprimir aquilo que o povo entende, em nome de um outro entendimento. Chamo a esta atitude a atitude cristã. Cada um recebe-a de Cristo. Foi assim que ele agiu com a gente simples da Palestina mergulhada num ambiente de Império que lhe retirava a liberdade de expressão. A atitude imperialista não é cristã, mesmo em relação às práticas devocionais do povo.

Esta atitude gerará luz suficiente para saber apresentar o esplendor de Maria, sem confusões nem reducionismos, Mãe de Deus e mãe dos homens. O texto da homilia de João Paulo II, em Éfeso, no dia 3 de Novembro de 1979, é um exemplo da adopção de textos belos para apresentar a “mais bela de entre todos os filhos”, para que as devoções se aproximem muito desta beleza: “Maria (...) é o arquétipo da Igreja. (...) É a primeira entre os humildes e os pobres (...) E a primeira entre os redimidos que, na humildade e na obediência acolhem a vinda do Redentor. (...) Maria é o primeiro fruto e a imagem mais perfeita da Igreja”. Para esta perfeição caminham os cristãos envoltos na nuvem que não deixa ver totalmente. A nível pastoral, cada um sente-se comprometido a anunciar o fascínio desta figura singular para que os filhos e irmãos mais se aproximem da meta. A proposta de reflexão e de profecia deve apostar na singularidade bela do itinerário de Maria, na delicadeza da sua aceitação do mistério de Deus, na humildade de um serviço constante que é dádiva de Deus ao mundo. A meta mais alta das devoções marianas na sua nobreza passará por uma apresentação cuidada e constante da vida de Maria como ícone da Igreja peregrina. A atitude pastoral mais correcta é a positiva e pelo positivo, longe de proibições e de reflexões de ataque àquilo que o povo simples faz e reza na sua confiança de tipo carvoeiro.

Assim, estaremos a projectar luz sobre os caminhos devocionais dos homens já que o Evangelho que Maria nos legou é boa nova para todos os povos. Sem sombra de dúvida, tal boa nova comporta a opção por dispositivos de acolhimento e de apoio com qualidade e sempre norteados pelo respeito e pela atenção que merece a dignidade de cada crente. O respeito pela dignidade comporta também o respeito pelas suas expressões de piedade. Num santuário, numa ermida são tão importantes os ministros do acolhimento como o pregador que entrega uma Palavra nova aos romeiros. É tão pastoral o cuidado pelo asseio e pela beleza do lugar como a preparação da celebração litúrgica da festa, Para a Mãe, todo o afecto deve passar pela estrutura do espaço e pela organização da jornada, pela música e pelos gestos, como versos conjugados de um poema a oferecer com carinho. A harmonia e a beleza das diferentes expressões serão o lugar de acesso a um outro esplendor para quantos persistem em encarar Maria como mãe.

Concluindo, citarei Paul Claudel, fascinado pela luz de Fátima e pelo surpreendente “milagre do Sol”:

“Nela (Maria), como num puro espelho, vemos Deus e vemo­nos, tais como somos essencialmente, como o indica uma palavra forte de um dos três pastorinhos. Maria faz-nos compreender no meio das nossas trevas que é no fundo destas trevas que Deus nos chama para a Sua luz admirável (1 Ped. 2,9)”.

 

Este artigo não apresenta as notas de rodapé originalmente incluídas na versão impressa.

José da Silva Lima

in Memoria, Instituto Católico de Viana do Castelo, 9 (2002)

07.05.2008

 

 

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