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Princípios e valores: Vida e morte de uma civilização

Princípios e valores: Vida e morte de uma civilização

Imagem viewapart/Bigstock.com

O vetusto termo helénico «arkhe» significava fundamentalmente isso que, anipotético, primeiríssimo, literalmente «fora de série», servia de razão de ser a tudo o mais. Nas suas diferentes formas, «isso» era o divino. Mais do que as variações, poeticamente interessantes todas elas, desse mesmo princípio, interessava o sentido que «isso» tinha como o fundamento absoluto de tudo o mais». «Isso» era o que, absolutamente, se opunha ao nada. De todas as formas, guardámos estruturalmente em nossa civilização a versão platónica de um bem atual e infinito positivamente que, ao modo análogo do sol, irradiava ser de forma totalmente gratuita. Com as mudanças necessárias à constituição de versões próprias, foi este ícone de «o princípio» que guardámos.

Até que se resolveu – parece que de forma incausada – substituir o princípio por valor, em termos universais; princípios por valores, em termos mundanos.

Ora, há uma diferença abissal entre uma coisa e a outra. O princípio é absolutamente objetivo, dispensando mesmo, em termos teóricos, um sujeito que o pense (embora para que se possa tal dizer tenha de haver um sujeito). Numa analogia pobre e de baixo custo intelectual, podemos dizer que o princípio funciona como a chamada «lei dos graves» (na realidade, é o «princípio natural dos graves»): na relação comigo como sujeito, posso eu julgar que a gravidade não me deve «puxar» para o centro de massa da Terra (e outros), que a gravidade continuará sendo o que é, enquanto a natureza for o que é (parece mesmo que a natureza é o conjunto destes mesmos princípios na coordenação com isso de que são princípios).

O valor, por sua vez, depende sempre de um qualquer avaliador. Sem este avaliador e o seu ato de avaliação, um valor não pode ser um «valor». Será outra coisa qualquer, mas um «valor» não é. Ora, sem que se recorra à absoluta objetividade do princípio, quando se avalia seja o que for, não há como proceder a tal ato de forma que não seja submetido ao arbítrio do avaliador. Este pode ser sempre qualquer, daqui sendo implicado que a avaliação possa ser sempre uma qualquer. Pode até ser “divinamente” justa. Mas como saber? Estamos no campo minado pela invencível dúvida, como muito bem verificou o velho Descartes.



Não admira que a nossa dita civilização esteja no estado caótico em que efetivamente está, insistindo em ser fundada sobre valores. É o preço a pagar por se ter prescindido da objetividade dos princípios e se ter optado pela subjetividade inultrapassável dos valores



O valor vale sempre e só o que «valer» o ato do avaliador e este ato vale o que vale o avaliador precisamente como avaliador. Quem avalia o que o avaliador vale como avaliador?

A tentação de dizer: alguém independente da valoração. Mas, então, não terá de ser alguém que se apoie em algo como um princípio? Sendo assim, para que serve a valoração, se tem de ser ela própria valorada segundo princípios, ou nunca se poderá dizer que valha algo de positivo?

Poderíamos complicar um pouco mais, porque o assunto a tal se presta. Mas o que nos interessa mostrar é que não admira que a nossa dita civilização esteja no estado caótico em que efetivamente está (parece que apenas a guarda pretoriana do caos pensa que isso que guarda não é caótico), insistindo em ser fundada sobre valores. É o preço a pagar por se ter prescindido da objetividade dos princípios e se ter optado pela subjetividade inultrapassável dos valores.

E, não, não são as buscas de consensos que podem substituir a ausência de princípios. O consenso não é objetivo senão como uma espécie de algoritmo político obtido por uma operação qualquer de integração de subjetividades. O que resulta é tão subjetivo quanto cada uma das partes. Uma assembleia não é objetiva senão nos resultados do que através do algoritmo subjetivo das suas decisões – consensuais ou não – decide. Não nos esqueçamos do algoritmo de consensualidade entre suficientes alemães capaz de em janeiro de 1933 levar Hitler ao poder.

Foi um ato de valoração, que valorou positivamente os novos valores propostos em Mein Kampf. Poucos perceberam ou quiseram perceber que tais valores violavam mortalmente princípios como o da universal dignidade humana.

É tempo de regressar à objetividade dos princípios. Poder-se-ia começar pelo «imperativo categórico» kantiano: laico e anticaótico.



 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 16.01.2017

 

 
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