Da autoria do atual responsável máximo pela Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal alemão Gerhard Müller, "Pobre para os pobres" propõe uma reflexão sobre «a relação da pobreza com a missão evangelizadora e libertadora da Igreja».
Enraizado no Evangelho e na doutrina social da Igreja, o volume, recentemente lançado pela Paulus Editora, é prefaciado pelo papa Francisco, que escreve: «Estou certo de que cada um de vós que irá ler estas páginas, de algum modo, deixar-se-á tocar no coração e sentirá surgir dentro de si a exigência de uma renovação da vida».
"A Teologia da Libertação hoje", «desafios para a Teologia no horizonte contemporâneo», «a opção preferencial pelos pobres em Aparecida» e «pobreza: o desafio da fé» constituem alguns dos temas de "Pobre para os pobres - A missão da Igreja".
Gerhard Müller recorda que fez uma «experiência muito concreta da Igreja pobre para os pobres no Peru, nas favelas de Lima e entre os camponeses dos Andes», e sublinha a importância do padre dominicano Gustavo Gutiérrez.
«Foi precisamente a partir da experiência concreta da proximidade com os homens para quem Gutiérrez desenvolveu a Teologia da Libertação, que se impunha aos meus olhos cada vez com mais clareza o que representava o seu coração: o seu coração é o encontro com Jesus, é seguir Jesus Cristo, o Bom Samaritano», realça o cardeal.
O excerto que apresentamos dá início ao terceiro capítulo da obra, intitulado "A Teologia da Libertação hoje".
Pobre para os pobres
Gerhard Müller
Com a dramática crise dos reféns na residência do embaixador do Japão em Lima [dezembro de 1996], que se prolongou durante semanas, saltou poderosamente à atenção da opinião pública global a situação explosiva do Peru e de toda a América Latina. Movimentos revolucionários, guerras civis e terrorismo não são, contudo, as causas, mas os sintomas inequívocos da condição social e económica devastadora em que se encontra a maior parte das pessoas daquele continente.
Depois da queda do muro de Berlim e do colapso do bloco comunista, para muitos observadores pareceu apenas uma questão de tempo o facto de a América Latina vir a abandonar a resistência e o protesto, à qual a Teologia da Libertação dava voz, contra a exploração e a opressão plurissecular realizada inicialmente por potências coloniais e depois pelos centros de poder económico norte-americanos e europeus.
A divisão “natural” de papéis entre países ricos e pobres pareceu de novo voltar ao equilíbrio. Somente o vírus do marxismo – dizia-se – pode ser responsável pelo facto de que, imprevistamente, os homens se levantem contra a sua exploração como forças de trabalho a baixo custo e contra a subtração, a preços ridículos, de matérias-primas da sua própria terra. É unicamente culpa desse vírus se eles já não querem renunciar a uma assistência médica de base, a uma administração estatal fundada no direito e na justiça, a uma formação escolar e a uma habitação digna. O triunfalismo de um capitalismo que se presumia vitorioso andou a par e passo com a satisfação pela qual parecia reduzir-se o próprio fundamento da Teologia da Libertação. Pensou-se que seria um jogo fácil associá-la à violência revolucionária e ao terrorismo de grupos marxistas. No famigerado documento secreto, predisposto pelo presidente Ronald Reagan em 1980, o Comité de Santa Fé solicitava que o governo dos Estados Unidos procedesse de forma militante contra a «Teologia da Libertação» e a Igreja católica latino-americana que tinha a respetiva marca: «O papel da Igreja na América Latina é de vital importância para a conceção da liberdade política. Infelizmente, as forças marxistas-leninistas utilizaram a Igreja como arma política contra a propriedade privada e o sistema de produção capitalista, na medida em que infiltraram na comunidade religiosa ideias que são mais comunistas que cristãs.»
O que é mais desconcertante, naquele documento, é o descaramento com que os seus redatores, responsáveis por ditaduras militares brutais e poderosas oligarquias, mostram o seu interesse pela propriedade privada e pelo sistema produtivo capitalista como critério do que é ou não cristão. Para o leitor europeu deve ficar claro que a propriedade privada, na América Latina, não é aquela pequena porção de bens que se adquiriu através de uma vida cheia de sacrifícios e privações; pelo contrário, trata-se da posse de enormes latifúndios ou, por exemplo, de minas inteiras de cobre e de prata, contrariamente a milhões de pequenos agricultores ou operários privados de qualquer bem e direito. Este é o pano de fundo em relação ao qual se compreende também a ajuda económica e política dada às seitas fundamentalistas e à sua atividade. Com elas pretende-se rejeitar a luta da Teologia da Libertação a favor de uma visão integral e completa da graça e da redenção, e isto com a redução do papel da religião a mera consolação ultraterrena, totalmente encerrada na esfera privada; e assim esta é utilizada como fator estabilizador de uma sociedade injusta. Um exemplo particularmente grave de desrespeito dos direitos humanos é dado pelo facto de que determinadas instituições da América do Norte fazem depender o fornecimento de géneros alimentares e de outros abastecimentos ao Peru do compromisso em adotar uma política virada para a descida drástica da taxa de natalidade. Esta condição foi apoiada pelo governo peruano, de modo que a homens e mulheres – com o pretexto de os submeter a determinadas análises – sem saberem, são impostos meios contracetivos e, contra a sua vontade, tornam-se definitivamente estéreis.
Neste caso, a palavra de ordem parece ser esta: luta contra a pobreza através da dizimação dos pobres. Supõe-se que a pobreza seja causada pela alta taxa de natalidade e assim desvia-se a atenção das suas verdadeiras causas. No Peru, que é cinco vezes maior do que a Alemanha e que tem uma percentagem de habitantes cinco vezes inferior, na realidade não podemos falar de população excedente. Quem vê com os seus próprios olhos as inumeráveis formas de degradação a que ali são submetidas as pessoas, as formas de escravatura e de exploração, não se deixará mais iludir pela tão aclamada eficiência e superioridade do capitalismo. E todavia, para evitar dúvidas, no que se refere ao termo “capitalismo” é necessário dar um esclarecimento.
No contexto latino-americano, a palavra “capitalismo” reflete um estilo de vida que, erigido como critério último do agir humano, tende ao desenfreado enriquecimento pessoal. Esta espécie de capitalismo não tem nada a ver com uma livre economia de empresa, de mercado, na qual as pessoas investem o seu trabalho e as suas capacidades cooperando para a edificação e para o funcionamento de uma economia social, no contexto de um Estado de direito constituído democraticamente.
Perante o fracasso deste sistema capitalista no estado puro e da correspondente mentalidade que desdenha os direitos humanos, a Teologia da Libertação mantém-se de candente atualidade. O elemento que distingue fundamentalmente a Teologia da Libertação do sistema marxista e do capitalista é, pelo contrário, precisamente aquele elemento que une profundamente os dois sistemas, apesar de todas as contraposições que definem a sua relação: é precisamente aquela conceção do homem e da sociedade comum a ambos segundo a qual Deus, Jesus Cristo e o Evangelho não podem ter nenhum papel na humanização do homem, nem no aspeto individual nem no social.
E, contudo, a Teologia da Libertação não morrerá enquanto existirem homens que se deixem contagiar pelo agir libertador de Deus e que fazem da solidariedade para com os que sofrem, cuja dignidade é pisada, a medida da sua fé e a fonte do seu agir na sociedade. Teologia da Libertação significa, em síntese, acreditar em Deus como Deus da vida.
Gustavo Gutiérrez: o homem, o cristão e o teólogo
A expressão “Teologia da Libertação” remonta a uma conferência realizada por Gustavo Gutiérrez em 1968, em Chimbote, no norte do Peru. Mais tarde, o termo dá o título ao seu livro Teología de la liberación, de 1971, e com ele adquire notoriedade em todo o mundo. A décima edição revista do livro (1992) é também precedida de uma ampla introdução. Nela o autor esclarece o significado de alguns termos, passíveis de mal-entendidos, tais como, por exemplo, o de opção preferencial pelos pobres, de luta de classes, de teoria da dependência e de pecado estrutural e social. Aqui ele desmonta também de modo convincente as acusações que lhe foram feitas de horizontalismo e de imanentização do Cristianismo.
Gutiérrez, por muitos considerado o pai da Teologia da Libertação, mostra como ela não é uma construção teórica que nasceu à mesa. Ela considera-se em continuidade com todo o desenvolvimento da teologia católica dos séculos XX e XXI. Neste sentido – perante as novas estruturas sociológicas que emergiram da transição para a moderna sociedade industrial, para a globalização dos mercados e para o concatenamento dos sistemas informáticos –, faz-nos voltar ao ensinamento social dos Papas, a partir da Encíclica Rerum novarum de Leão XIII, depois à Populorum progressio de Paulo VI e também a João XXIII, o qual afirmava que a Igreja devia estar do lado dos pobres. A ele juntam-se os grandes textos do Magistério de João Paulo II e o seu agir.
Card. Gerhard Müller