Pedras angulares
Bento XVI

A conversão que mudou a vida de São Paulo

Queridos irmãos e irmãs:

A catequese de hoje será dedicada à experiência que São Paulo teve no caminho de Damasco e, portanto, à sua comummente chamada conversão. Precisamente no caminho de Damasco, nos primeiros 30 anos do século I, e após um período no qual havia perseguido a Igreja, verificou-se o momento decisivo da vida de Paulo. Sobre ele muito se escreveu, e naturalmente desde diversos pontos de vista. O certo é que aconteceu uma viragem, uma mudança total de perspectiva. A partir de então, inesperadamente, ele começou a considerar «perda» e «lixo» tudo aquilo que antes constituía para ele o máximo ideal, quase a razão de ser de sua existência (Filipenses 3, 7-8). O que havia acontecido?

Temos a respeito disso dois tipos de fontes. O primeiro tipo, o mais conhecido, são os relatos devidos à escrita de Lucas, que em três ocasiões narra o acontecimento nos Actos dos Apóstolos (Cf. 9, 1-19; 22, 3-21; 26, 4-23). O leitor mediano terá talvez a tentação de deter-se muito em alguns detalhes, como a luz do céu, a queda na terra, a voz que chama, a nova condição de cegueira, a cura pela queda de uma espécie de escamas dos olhos, e o jejum. Mas todos estes detalhes fazem referência ao coração do acontecimento: Cristo ressuscitado apresenta-se como uma luz esplêndida e dirige-se a Saulo, transforma o seu pensamento e a sua própria vida. O esplendor do Ressuscitado deixa-o cego: apresenta-se também exteriormente o que era a realidade interior, a sua cegueira em relação à verdade, à luz que é Cristo. E depois o seu definitivo «sim» a Cristo no baptismo reabre os seus olhos, faz-lhe ver realmente.

Na Igreja antiga, o baptismo era também chamado de “iluminação”, porque este sacramento dá a luz, faz ver realmente. Tudo o que se indica teologicamente também se realizou fisicamente em Paulo: uma vez curado da sua cegueira interior, ele passa a ver bem. São Paulo, portanto, não foi transformado por um pensamento, mas por um acontecimento, pela presença irresistível do Ressuscitado, da qual nunca poderá duvidar, tão forte havia sido a evidência do evento, deste encontro. Este mudou fundamentalmente a vida de Paulo; neste sentido pode e deve-se falar de uma conversão. Este encontro é o centro do relato de São Lucas, o qual é muito possível que utilizasse um relato nascido provavelmente na comunidade de Damasco, pelo colorido local dado pela presença de Ananias e pelos nomes, tanto da rua como do proprietário da casa onde Paulo se hospedou (cf. Actos 9, 11).

O segundo tipo de fontes sobre a conversão é constituído pelas próprias Cartas de São Paulo. Nunca falou com detalhe deste acontecimento, penso que podia supor que todos conheciam o essencial desta sua história, todos sabiam que de perseguidor havia sido transformado em apóstolo fervoroso de Cristo. E isso não tinha acontecido após uma reflexão própria, mas depois de um acontecimento forte, de um encontro com o Ressuscitado. Inclusive sem falar dos detalhes, ele assinala em muitas ocasiões este facto importantíssimo, ou seja, que ele também é testemunha da ressurreição de Jesus, da qual recebeu a relevância directamente do próprio Jesus, juntamente com a missão do apóstolo. O texto mais claro sobre este aspecto encontra-se no seu relato sobre o qual constitui o centro da história da salvação: a morte e a ressurreição de Jesus e as aparições às testemunhas (cf. 1 Coríntios 15). Com palavras de antiquíssima tradição, que ele também recebeu da Igreja de Jerusalém, diz que Jesus morreu crucificado, foi sepultado, e após a sua ressurreição apareceu primeiro a Cefas, ou seja, a Pedro, depois aos Doze, depois a 500 irmãos que em grande parte ainda viviam naquele tempo, depois a Tiago, e depois a todos os Apóstolos. E a este relato recebido da tradição acrescenta: «E por último apareceu também a mim» (1 Coríntios 15, 8). Assim dá a entender que este é o fundamento do seu apostolado e da sua nova vida. Há também outros textos nos quais aparece o mesmo: “Por meio de Jesus Cristo recebemos a graça do apostolado” (cf. Romanos 1, 5); e em outra parte: “Acaso não vi Jesus, Senhor nosso?” (1 Coríntios 9, 1), palavras com as quais alude a algo que todos sabem. E finalmente o texto mais difundido é lido em Gálatas 1, 15-17: “Mas, quando Aquele que me separou desde o seio de minha mãe e me chamou por sua graça, teve por bem revelar em mim o seu Filho, para que o anunciasse entre os gentios, imediatamente, sem pedir conselho nem à carne nem ao sangue, sem subir a Jerusalém onde estiveram os apóstolos anteriores a mim, fui para a Arábia, de onde novamente voltei a Damasco”. Nesta “auto-apologia” sublinha decididamente que também ele é verdadeira testemunha do Ressuscitado, que tem uma missão recebida directamente do Ressuscitado.

Podemos ver que as duas fontes, os Actos dos Apóstolos e as Cartas de São Paulo, convergem num ponto fundamental: o Ressuscitado falou com Paulo, chamou-o ao apostolado, fez dele um verdadeiro apóstolo, testemunha da ressurreição, com a tarefa específica de anunciar o Evangelho aos pagãos, ao mundo greco-romano. E ao mesmo tempo Paulo aprendeu que, apesar de sua imediata relação com o Ressuscitado, ele deve entrar na comunhão da Igreja, deve ser baptizado, deve viver em sintonia com os demais apóstolos. Só nesta comunhão com todos ele poderá ser um verdadeiro apóstolo, como escreve explicitamente na primeira Carta aos Coríntios: “Tanto eles como eu, isto é o que pregamos; isto é o que haveis crido” (15, 11). Só existe um anúncio do Ressuscitado, porque Cristo é um só.

Como se vê em todas estas passagens, Paulo nunca interpreta este momento como um facto de conversão. Porquê? Há muitas hipóteses, mas o motivo é muito evidente. Esta viragem da sua vida, esta transformação de todo o seu ser não foi fruto de um processo psicológico, de um amadurecimento ou evolução intelectual ou moral, mas veio de fora: não foi o fruto do seu pensamento, mas do encontro com Jesus Cristo. Neste sentido, não foi simplesmente uma conversão, um amadurecimento de seu “eu”, mas foi morte e ressurreição para ele mesmo: morreu uma existência sua e nasceu outra nova com Cristo Ressuscitado. De nenhuma outra forma se pode explicar esta renovação de Paulo. Todas as análises psicológicas não podem esclarecer nem resolver o problema. Só o acontecimento, o encontro forte com Cristo, é a chave para entender o que aconteceu: morte e ressurreição, renovação por parte d’Aquele que se havia revelado e havia falado com ele. Neste sentido mais profundo, podemos e devemos falar de conversão. Este encontro é uma renovação real que mudou todos os seus parâmetros. Agora pode-se dizer que o que para ele era antes essencial e fundamental converteu-se em «lixo», já não há «lucro», mas perda, porque agora só importa a vida em Cristo.

Contudo, não devemos pensar que Paulo se fechou cegamente num acontecimento. Na realidade, acontece o contrário, porque o Cristo ressuscitado é a luz da verdade, a luz do próprio Deus. Isso engrandeceu o seu coração, abriu-o a todos. Neste momento não perdeu o que havia de bom e de verdadeiro na sua vida, na sua herança, mas compreendeu de forma nova a sabedoria, a verdade, a profundidade da lei e dos profetas, e apropriou-se deles de modo novo. Ao mesmo tempo, a sua razão abriu-se à sabedoria dos pagãos; tendo-se aberto a Cristo com todo o seu coração, ele tornou-se capaz de estabelecer um diálogo amplo com todos, fez-se capaz de fazer-se tudo para todos. Assim realmente podia ser o apóstolo dos pagãos.

Passemos agora à nossa situação; o que é que isso quer dizer para nós? Quer dizer que também para nós o cristianismo não é uma filosofia nova ou uma nova moral. Só somos cristãos se encontramos Cristo. Certamente Ele não se mostra a nós dessa forma irresistível, luminosa, como o fez com Paulo para o transformar em Apóstolo de todos os povos. Mas também nós podemos encontrar Cristo, na leitura da Sagrada Escritura, na oração, na vida litúrgica da Igreja. Podemos tocar o coração de Cristo e sentir que Ele toca o nosso. Só nesta relação pessoal com Cristo, só neste encontro com o Ressuscitado nos convertemos realmente em cristãos. E assim se abre a nossa razão, abre-se toda a sabedoria de Cristo e toda a riqueza da verdade. Portanto, oremos ao Senhor para que nos ilumine, para que nos conceda no nosso mundo o encontro com a sua presença, e assim nos dê uma fé viva, um coração aberto, uma grande caridade para com todos, capaz de renovar o mundo.

Bento XVI

Audiência Geral, Vaticano, 03.09.2008

in Zenit

Trad.: Élison Santos | Revisão: Aline Banchieri | Adapt.: rm

04.09.2008

 

 

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A Conversão de São Paulo (det.)
Caravaggio. 1601
Igreja de Santa Maria del Popolo
Roma




















































































































































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