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Do tempo livre à libertação do tempo

Quando a alegria não é uma distração - A propósito de um Caderno do Sicómoro

A vida são dois dias, o Carnaval três. Diz-se a brincar, em hábil exercício de palavras e números, como se na realidade nada significasse. Mas significa: a vida dura pouco, menos que uma história de Carnaval. Vivemos uma sociedade de trabalho, produção, eficácia, rendimento. Mesmo com o apoio da técnica e da tecnologia, nunca o homem pode dizer que o seu tempo de vida é de lazer e contemplação, como teria acontecido a Adão e Eva, não fora o acidente da queda original.

O Carnaval surge como divertimento de choque, excitação, entretenimento esgotante. E com uma lógica que se estende a outras áreas. O repouso e a festa já não são o que eram. O próprio tempo de férias constitui uma multiplicação - um compacto - de entretenimentos que se escolhem como em carta de vinhos e se consomem até à embriaguez. Umberto Eco fala mesmo da carnavalização da vida face aos espetáculos constantes que as pessoas procuram, nomeadamente através dos media que são os agentes deste divertimento «non stop» quer de informação quer de ficção.

À parte outros considerandos importa refletir a conceção de repouso, divertimento, festa, corte do trabalho cotidiano ou do fim-de-semana, muitas vezes, alucinante. Com tudo isso, há valores e inspirações que não afloram nos tempos comuns de trabalho e rotina. Há pausas, silêncios, escutas, olhares que só se descobrem num certo despojamento de alma. Ativo, criativo.

O tempo livre não é um tempo marginal na vida. O entretenimento é uma atividade muito séria.

Há alguns anos que as jornadas do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura têm afrontado o "choque" entre cultura e entretenimento. A reflexão foi amadurecendo. Foram recordadas as olimpíadas gregas, os teatros romanos, os espetáculos de Coliseu com gladiadores, jogos sanguinários, e a lista de divertimentos que, com algumas variantes, se repetem nos tempos modernos com os mesmos mecanismos lúdicos, culturais, massivos, espectaulares e, por vezes, morais e imorais.

E também as tertúlias, as conversas de corte e costura, os contos, fábulas, as acrobacias de circo ou atletismo, os livros, a música, a dança, as viagens, os jogos, a pausa. Com divertimentos nobres e vilões, ou diferentes no invólucro e próximos no miolo. O pão e o circo nunca estiveram longe das necessidades primárias do homem, não como interregno dos seus momentos mais nobres, mas como elemento integrante do seu todo. Assim sendo, é tão importante para o homem o lazer como o trabalho. Foi nessa integração que dançou David, ou que os peregrinos entoam canções no seu caminhar, e os soldados se exaltam ao toque das marchas militares e gritos de guerra.

Foi este todo que o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura assumiu e transpôs para instância organizada de reflexão, "num processo de discernimento sobre a nossa contemporaneidade" com o "tempo livre" como tópico particularmente sintomático. Um tempo que "só é livre quando realmente liberta". O tempo é nosso mas "dentro do tempo cada um transforma o tempo físico no seu horizonte de possibilidades." Aí se abre a construção entre o nascimento e a morte. Tecendo um elogio ao tempo livre, recorda que "ele não é apenas um tempo 'entre' tempos... mas interroga-nos, antes de mais, sobre a realização pessoal e social que projetamos".

Os media, os velhos e os novos, e os que estão sempre a chegar, entram em cheio na indústria do entretenimento, e podem remontar a uma questão levantada por um estudioso dos públicos consumidores: "Não existe grande diferença entre as temáticas dos guiões das tragédias gregas, a ópera, a maior parte dos filmes e a telenovela." Algo de mais erudito dizia Goethe, no prelúdio de Fausto, mas com conselhos de "sensação" muito semelhantes. Está aberta a grande batalha que os media devem travar: a da educação e da qualificação cultural. Estes, afirma o documento, "deveriam ser aliados estratégicos da escola, da universidade, dos centros de criação e investigação, procurando encontrar uma articulação entre formatos populares e formulários eruditos".

Neste todo, o belo ocupa um espaço essencial. Alude-se nesta reflexão à maravilha do Génesis, ao esplendor da criação e ao olhar jocoso de Deus. Viu (segundo a tradução dos LXX) que "era belo". E chega-se a uma "gramática da alegria" no salmo 96 e no gozo que desperta o louvor: "Rejubilem os campos, irrompam em danças as árvores dos bosques na presença do Senhor que se aproxima."

O homem é convidado a um horizonte mais vasto, pois "a alegria não é uma distração: é antes uma forma radical de atenção àquilo que somos".

 

António Rego
Diretor do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais.
In Communio, 4/2008
11.05.12

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