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Leitura: Patriarca de Lisboa comenta Evangelhos de Domingo e solenidades

Imagem Capa (det.) | D.R.

Leitura: Patriarca de Lisboa comenta Evangelhos de Domingo e solenidades

A editora Principia, através da chancela Lucerna, lançou recentemente um livro com comentários aos Evangelhos de domingo que o atual patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, partilhou durante 12 anos aos microfones da Renascença.

"O Evangelho e a vida - Ano B", que percorre os domingos desde 30 de novembro a 22 de novembro de 2015, oferece uma seleção do que o então bispo auxiliar de Lisboa, e depois bispo do Porto, comentou no programa semanal "Dia do Senhor", que deixou após ter sido nomeado patriarca de Lisboa.

«Este não é um livro de homilias, porque a homilia é um género literário que se inscreve na própria liturgia. São meditações, mas meditações que partem profundamente do Evangelho de Domingo, partem explicitamente, e são um convívio com a própria palavra», sublinhou o padre José Tolentino Mendonça na sessão de apresentação, refere a Renascença.

 

Natal do Senhor
D. Manuel Clemente
In "O Evangelho e a vida - Ano B"


«E o Verbo fez-Se carne a habitou entre nós». O que aqui é dito é importantíssimo. Nesta frase está o cerne da fé cristã e aquilo que a distingue de muitas outras propostas que podem parecer espiritualistas, mas que não são ainda cristãs. Eu gostava muito de salientar este aspeto, por ser Natal e por ser particularmente relevante hoje: «E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós»… «Et incarnatus est»; «encarnou», como se diz no «Credo». Sempre que os grandes compositores trataram o «Credo» (o enunciado das verdades da fé cristã), quando chega ao «et incarnatum est», «encarnou», parece que tudo se suspende e temos aí uma parte especialmente expressiva dessa mesma composição. E porquê? Porque esta encarnação do Verbo é a marca de distinção da nossa fé cristã: «E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós».

«Carne» é uma maneira muito hebraica de dizer; a língua hebraica, a língua das escrituras, é muito realista, mesmo quando está por detrás do grego do Novo Testamento. Aqui, fala em "carne", não em "pessoa humana", pois que este é já um conceito muito trabalho, mais de origem grega, ao contrário de "carne". "Carne" é aquilo que nós somos, enquanto nos vemos, enquanto nos tocamos… os nossos ossos, a nossa pele, o nosso sangue. Esta referência à carne remete para o realismo de uma presença naquilo que nos constitui e nos faz viver e, até, sofrer quando estamos doentes. «Sentir isto ou aquilo na carne» - costuma-se dizer quando se viver intensamente alguma coisa.

«O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós». Podemos traduzir «Verbo», a palavra latina que traduz a palavra grega "logos", com os teólogos e, antes dos teólogos ainda, com os filósofos, que como «razão», que como «palavra». Mas tem dado muita matéria de reflexões aos teólgos e, enfim, a todos os pensadores cristãos nestes 2000 anos de História, porque refere-se à comunicação do próprio Deus: Deus comunica-Se, Deus, que nós nunca vimos, como diz São João, no início do seu Evangelho: «A Deus nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que está no seio de Pai, é que O deu a conhecer» (Jo 1, 18). Portanto, Deus comunica-Se, não comunica outra coisa além de Si, mas a Si próprio em Jesus Cristo: Ele é o Verbo de Deus, Ele é a comunicação de Deus. Especialmente neste evangelho de João, mas em muitos outros trechos do Novo Testamento, sejam de Jesus ou relativos a Jesus, nós encontramos esta mesma verdade, ou seja, que em Jesus de Nazaré não há uma comunicação qualquer, mesmo religiosamente falando. Não se trata de mais uma página da história religiosa da humanidade, mas sim da própria comunicação de Deus e do próprio Deus comunicado.

Por conseguinte, não é uma comunicação qualquer: em Jesus, é o próprio Deus que Se comunica. E, por isso, Ele até pôde dizer: «Quem me vê, vê o Pai» – (Jo 14, 9). O Pai… Deus como fonte, como origem sua e de todos! E Deus comunica-Se em Jesus: Ele é o Verbo de Deus! Mas trata-se de uma comunicação encarnada, assim tal e qual como ela foi vista no presépio de Belém, como ela vai ser vista depois pelos pastores e pelos magos, como ela vai ser vista em Belém, como ela vai ser vista em Nazaré da Galileia, como ela vai ser vista lá na oficina de José, onde Jesus aprendeu a profissão de carpinteiro, como ela vai ser vista depois na sinagoga de Nazaré, quando Jesus diz: «O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu para anunciar a Boa Nova» – quer dizer, o Evangelho «aos pobres…» (Lc 14, 18); como foi vista depois, durante o tempo da sua vida pública, nas margens do lago da Galileia; como foi vista em Jerusalém e naqueles últimos dias, na entrada triunfal em Jerusalém, e na agonia dramática no Horto das Oliveiras, no Pretório de Pilatos, a caminho do Calvário e na crucificação… Jesus é o Verbo encarnado: o Verbo encarnou.

O que Deus tem para nos dizer, porque Deus é o nosso princípio e também o nosso fim, finalidade de todas as nossas vidas, este Deus vem até nós em Jesus Cristo e n’Ele manifesta todo o seu sentimento, que nós podemos apreender. O sentimento que tem para connosco manifesta-se neste "vir-até-nós", mesmo quando nós hesitamos em recebê-l’O, mesmo quando retardamos acolhê-l’O: não fazemos como Maria, não fazemos como Jesus, não fazemos como os pastores, não fazemos como os Magos… Pelo contrário, não Lhe arranjamos presépio para nascer e não Lhe damos aquela companhia que Ele espera. E Ele insiste, este Deus insiste em vir até nós e em Jesus Cristo me todas as etapas da vida de Cristo, uma vida breve de pouco mais de 30 anos, mas maior do que toda a cronologia do mundo, porque Deus está nessa vida e comunica-Se. «Fez-Se carne», diz o Evangelho: faz-Se carne, faz-Se audível, faz-Se tangível e, na sua humanidade, chama por nós, apela ao nosso reconhecimento e à nossa presença também.

Neste Deus que vem até nós, há um mistério de companhia, de proximidade, de encarnação, de realismo. Não se trata de uma abstração! Perante este Deus que Se faz Deus, não é possível achar que cada um de nós pode pensar por si o que seja Deus: «Ah, eu cá acho…». Por mais que um de nós pense por si, nunca pensará senão por referência a si próprio; ou, então, achar-se-á na liberdade de dizer «eu cá aceito esta mensagem, mas não aceito aquela, porque está mais de acordo com o que me apetece ou com aquilo a que eu sou sensível e, porque, de contrário, já me exigiria outras coisas e eu agora não estou disponível para isso»…

O que nós temos no Natal é outra coisa: é o Verbo, a comunicação que o próprio Deus faz de Si! «Fez-Se carne», assumiu a nossa humanidade, assim tangível, audível, verificável e é aí que Ele nos salva, vindo a nós exatamente como presença, como companhia, como proximidade, não nos deixando sós! Por isso, um dos nomes que Lhe é dado é "Emanuel", que quer dizer "Deus-connosco". Ele é Jesus, que quer dizer "Deus salva", e é "Emanuel", que quer dizer Deus-connosco!

Hoje, podemos senti-l’O próximo também no seu corpo continuado que é a Igreja dos cristãos. Passa de uns para os outros e, nesta companhia, digamos nesta "carne" acrescentada, nesta corporeidade acrescentada que Jesus ganha na sua Igreja, Ele vai continuando a estar presente no mundo como proposta concreta, realista, porque quando nós pensássemos «ai, não, eu comunico diretamente com Deus, eu cá tenho a minha religião…», pensaríamos mal, porque não comunicaríamos senão connosco mesmos e com os nossos fantasmas, imaginações, alienações e por aí fora… Não! Deus visita-nos concretamente, encarna na figura de Jesus Cristo!

E nesta mesma figura, que nós hoje sabemos ressuscitada e presente em todo o mundo, chega a todos através do corpo que ganha nos seus discípulos e discípulas. Portanto, eu também não posso dizer: «Porque é que eu hei de juntar-me aos outros cristãos? Porque é que eu me vou reunir com eles? Porque é que eu hei de ganhar o ritmo que este corpo (a Igreja) tem – como o próprio corpo humano tem, nas suas pulsações, na sua inspiração e na sua expiração?». Não! Eu tenho de encarnar também, tenho de me incorporar também, tenho de me ligar também à presença viva de Cristo ressuscitado, continuando assim o presépio de Belém, agora, em toda a parte, no seu corpo que é a Igreja, para que O alcance a Ele e para que esse Verbo continue a ressoar, para que eu continue a ouvir concretamente (não é abstratamente) e aí a ser salvo na sua companhia! O conforto e a esperança que Deus nos dá em Jesus Cristo estão precisamente nessa companhia! A sua encarnação, como eu fazia notar há pouco, consiste em passar pela nossa vida tal como ela acontece: encarnar é passar pelas diferentes fases da vida, pelo nascer, o crescer e o morrer, sem se poupar em nenhuma delas. Jesus não veio ao mundo para nos levar para um paraíso abstrato, onde estivéssemos sempre ao pôr do Sol ou, para quem goste mais de se levantar cedo, à alvorada… Não! Ele é a companhia para todas as horas e em todas as circunstâncias! Ele «fez-Se carne e carne somos nós tal como somos, não como imaginaríamos ser; e Ele é Deus, tal como se apresenta, e não como nós O imaginaríamos também.

A mensagem de Natal, depois ampliada por esse Natal perene que é a Páscoa de Jesus, nunca mais acaba.

 

Edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 16.12.2014

 

Título: O Evangelho e a vida - Ano B
Autor: Manuel Clemente
Editora: Lucerna (Principia)
Páginas: 320
Preço: 14,75 €
ISBN: 978-989-851-695-4

 

 
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A referência à carne («encarnou») remete para o realismo de uma presença naquilo que nos constitui e nos faz viver e, até, sofrer quando estamos doentes. «Sentir isto ou aquilo na carne» - costuma-se dizer quando se viver intensamente alguma coisa
Neste Deus que vem até nós, há um mistério de companhia, de proximidade, de encarnação, de realismo. Não se trata de uma abstração! Perante este Deus que Se faz Deus, não é possível achar que cada um de nós pode pensar por si o que seja Deus: «Ah, eu cá acho…»
Eu tenho de encarnar também, tenho de me incorporar também na Igreja, tenho de me ligar também à presença viva de Cristo ressuscitado, continuando assim o presépio de Belém, agora, em toda a parte, no seu corpo que é a Igreja, para que O alcance a Ele e para que esse Verbo continue a ressoar
A sua encarnação consiste em passar pela nossa vida tal como ela acontece: encarnar é passar pelas diferentes fases da vida, pelo nascer, o crescer e o morrer, sem se poupar em nenhuma delas
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