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Para uma teologia do meu quotidiano

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Para uma teologia do meu quotidiano

«Porque os leigos, supostamente, transfiguram o mundano. A fé torna-se a chave hermenêutica do profano, da bagatela... para aí mesmo ver insinuada a presença de Deus e o convite ao Bom e ao Belo.» (Maria Carlos Ramos, comunicação pessoal)

Quando era muito jovem (últimos anos do ensino secundário) fui premiada nos Jogos Florais do Liceu Carolina Michaelis, no Porto, com um poema intitulado: “Senhora das Coisas Pequenas”. É óbvio que, depois de ler, saborear e alimentar-me de tanta poesia ao longo da minha vida - tenho sempre um livro de poesia à  cabeceira, tal como tenho a Bíblia... - me não identifico com o tipo de poesia que então escrevia. Agora não ouso escrever poesia, tão bela poesia tenho à mão, basta-me saboreá-la..., mas identifico-me, sim, com as “minudências” de que esse poema antigo falava. Ainda hoje escrevo sobre os fios do meu quotidiano, tecendo-os, refletindo-os, e reconstruindo-os à luz da trama da minha vida. Deixo entretecer-se nessa trama a de outros, do que se passa no mundo – sou acima de tudo cidadã do meu país e da minha igreja – mas também recorrendo à poesia, música, por vezes, até, "dançando" as minhas preocupações, olhando para a reprodução de um quadro ou, simplesmente, para o “estado” das plantas da minha varanda.

Por isso a citação da Maria Carlos Ramos (companheira do Graal , teóloga e ex-aluna desta Faculdade de Teologia) que li no início inspira e redimensiona o contexto em que me movo: mulher leiga, membro do movimento do Graal, cristã, mente e coração abertos a tantas outras buscas de Deus entre os seres humanos. Creio que ser “senhora das coisas pequenas” é intuir a presença de Deus na “bagatela”, no ”rasteiro”, naquilo que parecerá de somenos importância...  A isso chamo fazer a “teologia do meu quotidiano”: tocar Deus em mim, nas outras e nos outros, na natureza, na alegria e no desastre, no sofrimento e na escuridão... vejo-me “discípula” de Cristo, a viver no mundo e com o mundo, sabendo que o cristão do futuro ou será “místico” ou não será cristão (K. Rahner). Mística, para mim, é este "trespassar" do quotidiano pelo divino, este "sofrimento" iluminado pela graça de me saber conectada com outros.

Como sou um “pássaro da manhã” e em geral me levanto mesmo muito cedo, é nessas horas de silêncio e  (ainda) quietude que vou escrevendo regularmente, a um ritmo praticamente diário, num caderno de capa grossa (já lá vão tantos!...).   Vou tecendo a teologia do meu quotidiano que não está desligada da construção da minha mais profunda humanidade. É desse caderno que partilho convosco algumas “entradas” mais recentes, conforme o tempo que tiver disponível. Estão num português pelo menos escorreito já que as pude reler, coisa que raramente faço:

 

28 de janeiro de 2014, 3.ª feira

Faço 65 anos e estou no Fratel, às portas do Ródão na casa da minha amiga MJ. Três dias na natureza, que bom! Balbucio: «Gratias a la vida que me ha dado tanto, me ha dado la risa me ha dado el llanto», imaginando a voz inesquecível de Violeta Parra. Graças a Deus que me chamou pelo nome. No Fratel de que gosto tanto, à lareira em boas conversas pela noite fora, respirando o campo, a manhã em que todos os outros dormem, as plantas e o cheiro das rosas, as três oliveiras velhinhas e os dois pujantes jacarandás e o limoeiro carregado de limões... o canteiro em que ontem, até me doerem os rins, retirei as ervas más para deixar crescer a hortelã no seu cheiro acre-preguiçoso. Perceber quais as raízes a tirar, mantendo a hortelã. Um verdadeiro “ofício de paciência”, nas palavras de Eugénio de Andrade. Fazer tudo isto concentrada, como se fosse a coisa mais importante deste mundo. Vida, no seu estado mais puro. Estar no presente. À noite comemos fatias de pão barrado com azeite e hortelã: capricho dos deuses! Enternece-me o número de telefonemas e "sms": saboreio cada mensagem como uma festa, pensando na pessoa que ma envia e como quero bem a tanta gente. «Gratias a la vida.» Sinto-me abençoada. Faço “des provisions de douceur” para os dias mais cinzentos que vierem. Releio a antífona de hoje: «Voltai-vos para o Senhor e sereis iluminados, o vosso rosto não será confundido». A promessa de Deus no centro da minha vida.

 

14 de maio, 4.ª feira

Cá saio disciplinadamente para a ginástica ­- a sub-cultura dos ginásios daria um romance -. Faço alongamentos sob orientação desse verdadeiro "Adónis"que é o D: contemplar a beleza daquele jovem enche os olhos.  Levar o meu corpo a superar-se indo cada vez mais longe no esforço físico, é uma lição. Assim eu vá também aprendendo, no meu quotidiano, a superar-me humana e espiritualmente. Passo pelo “meu” romeno a quem compro sempre a revista "Cais" nos semáforos entre a Av. Padre Cruz e a Rainha D. Amélia. Se o semáforo se demora interagimos um bocadinho. Costuma chamar-me "Mãe". Gosto. Não tenho filhos, não sou diretamente mãe de ninguém, mas sinto-me tão irmã, tão prima, tão amiga, tão sangue-do-meu-sangue com tanta gente... «A tua Mãe e os teus irmãos estão lá fora», dizem a Jesus, que olha em seu redor: «Estes são a minha mãe e os meus irmãos». Desde que a querida Mãe Teresa morreu que deixei de dizer «a minha mãe», mas passei a balbuciar «Mãe» quando à noite apago a luz e me viro para o outro lado da cama: um sussurro, um suspiro. E continuo sem saber se estou a chamar pela minha mãe, se por Deus – prefiro pensar que são as duas coisas porque, agora, ela e Deus são Um, como afirma Teresa de Ávila.

 

26 de julho, sábado

Sigo esta tarde para a Golegã para o programa “Mulheres, Teologia e Mística”. Vou falar, ao longo de cinco momentos das manhãs sobre Teresa de Ávila, a “teóloga da experiência” que é doutorada igreja. Praticamente quatro meses a estudá-la, lendo os seus escritos em primeira mão – ganhei mais um pneu na barriga de tanto estar sentada... Mas tem valido a pena - uma inspiração, essa grande e apaixonada Teresa. E o Espírito sopra onde quer: que melhor forma de fazer face à absurda morte da "nossa" A do que mergulhar em Teresa de Ávila?  Deus dá-me destas coisas...  Preparei-me o melhor que pude: quanto ao resto deixo que o Espírito me guie. Não sou teóloga, não me sinto competente e segura, mas amo Santa Teresa: farei então o melhor que puder e souber, na consciência dos meus limites. Que consiga passar a quem estiver no programa a interpelação espiritual que Teresa me traz e ficarei serena e contente: essa mística que podia viver a pão, água e meia sardinha, mas que simultaneamente se deliciava com as uvas doces da mesa do bispo... aquela que falava nas “pestilências” do quotidiano – adoro soprar a palavra: «pestilências»! – as pestilências que, apesar do nosso desejo de Deus, nos impedem de entrar na Segunda Morada. Teresa, a que fala da união com Deus como de duas velas que se juntam numa chama única... na consciência de que são entidades separadas – porque só a morte nos poderá trazer a comunhão absoluta "em" Deus. Teresa, a que escreve a mais bela das orações  e que rezo sempre que posso  e me lembro: 

«Se me queres na alegria
por amor de Ti, quero alegrar-me.
Se me enviais trabalhos para realizar,
quero morrer a trabalhar.
Eu sou vossa, por Vós nasci.
Que quereis que eu faça?»

 

14 de setembro, domingo

Continuo com a mente longe, grudada ainda na estadia em Moçambique [onde passei o meu “querido mês de agosto” fazendo voluntariado com o Graal em Maputo e na Beira]. Foi um lavar a alma e ainda tenho nos ouvidos aquele português “moçambicanamente falado” mencionado pelo Mia Couto. E o dom da hospitalidade, da alegria, do humor e da colorida resiliência dos moçambicanos – consciente de que estou de que o contexto de vida da maioria é o da mera sobrevivência. Introduzi Teresa de Ávila em duas paróquias, nos encontros das “mamãs” da Legião de Maria (que se juntam semanalmente para rezar o terço). Encontrar a metodologia mais apropriada fez-me revisitar o mestre Paulo Freire. Na paróquia da Polana quiseram que eu voltasse na semana seguinte para explicar as "Moradas” – usei as metáforas que Santa Teresa usa para cada uma das Moradas, só substitui a metáfora do “crisol” pela do “pilão”. Como elas entenderam bem o que representa o gesto de moer o milho e fazê-lo combinando harmoniosamente o duplo esforço quando esta “arte” é feita de modo colaborativo entre duas mulheres...

Na paróquia de S. João Batista na Beira, as mamãs elencaram quais as “sevandijas” (insetos repelentes) e “pestilências” que nos impedem de entrar na 2ª Morada (palmas e "tritris" quando se identificavam com o que uma delas dizia...) e usei duas velas unidas por uma única chama para demonstrar a nossa união com Deus. D. Cláudio, bispo da Beira, relatou como se estão a recrutar e/ou comprar crianças e jovens de famílias pobres para serem levados para madraças fundamentalistas e regressarem ao seu país com o cérebro «bem lavado».  Que acontecerá dentro de uns anos em Moçambique, onde a sã convivência entre religiões tem sido exemplo para tantos outros países do continente africano?

Em casa revisito o disco de jazz moçambicano/sul-africano que o Clovis me ofereceu: Jimmy Dludlu, "Tonota", enquanto me movimento dengosamente ao sol da minha sala. “Chove-me” no computador a coluna do Público de Frei Bento sobre “O Desterro da Teologia” e cito: «Não me sinto mal na teologia do fragmento, do provisório (...) A Teologia deve ajudar a criar, no espaço eclesial, condições para que a palavra seja reconhecida a todos (...) O teólogo tem de abandonar a mania dos monopólios. É uma voz entre outras». Lufada de ar fresco para mastigar e saborear: também tenho direito à minha voz.

Mas a teologiado meu quotidiano tem de ser alimentada: acabei de me inscrever no curso livre do Padre João Lourenço sobre "Profetas e Profetismo". Já há dois anos que o Padre João Lourenço me tem vindo a ajudar a “mastigar” João Evangelista. Agora os profetas. O estado de “aposentada” permite-me luxos destes.

 

22 de setembro, 2.ª feira

Dou por mim a passajar roupa, nestes tempos de contenção de despesas: maravilhosa oportunidade de me debruçar sobre o nada e de deixar que a alma saboreie o gesto mecânico da agulha e linha. “Amo 'deste' trabalho”, diria o poeta Manoel de Barros. Regressei num “bajón” do Porto (como dizem "nuestros hermanos") - e a escuridão, quando me vem, é escura, bem escura... -: apesar da alegria esfuziante dos 10 sobrinhos-netos, a preocupação imensa com a situação de desemprego recorrente da M... [minha irmã mais nova, e minha afilhada]. Já não se oferece emprego a uma experimentada mulher de 50 e alguns anos, amplamente reconhecida no seu setor de atividade profissional: anátema, isolamento, depressão... injustiça nua e crua. Duas noites a dormir mal até conseguir colocar as coisas no “patamar de Deus” e, aí, parece que a mente se ilumina em saídas possíveis: "tudo bem, nada mal", autoconvenço-me - à maneira da maioria dos moçambicanos, quando se referem à sua duríssima vida...

Somos uma família que “cerra fileiras” quando um/a de nós está aflito/a: abri um “gabinete de crise” nos “paços do Lumiar” (minha casa): fiz contas e mais contas à minha pensão de reforma sistematicamente diminuída, olhei para as parcas poupanças e tenho o suficiente para, durante alguns meses, poder ajudar a minha irmã. Corta-se noutras coisas, paciência. Mas sei, no mais íntimo de mim, que não posso viver o sofrimento por ela: no sofrimento da M, há uma enorme solidão.  Como Verónica, que enxugou o rosto de Cristo, só posso agarrar numa toalha e limpar-lhe as lágrimas com carinho para não a magoar ainda mais: e aceitar que essa solidão é parte da nossa condição humana. Acendo a vela da mesa em frente do meu sofá. Deixo que a vela se consuma enquanto rezo por ela e nela: "tudo bem, nada mal..."

Termino citando novamente Teresa de Ávila: «Poder falar a Deus a partir da vida é vida de oração»,e relembro o meu amigo Frei Carlos Maria Antunes, monge cisterciense, numa homilia que fez no passado mês de julho quando visitou a sua antiga paróquia da Golegã: «No dia em que olharmos a nossa vida, tal como é e não como gostaríamos que fosse, com gratidão, com assombro, com alegria, então é porque Deus já tomou conta do nosso coração». Assim seja!

 

Teresa Vasconcelos
Movimento do Graal
5.ª Jornada de Teologia Prática, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 14.11.2015
Publicado em 15.02.2015 | Atualizado em 19.04.2023

 

 
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Creio que ser “senhora das coisas pequenas” é intuir a presença de Deus na “bagatela”, no ”rasteiro”, naquilo que parecerá de somenos importância... A isso chamo fazer a “teologia do meu quotidiano”: tocar Deus em mim, nas outras e nos outros, na natureza, na alegria e no desastre, no sofrimento e na escuridão...
Faço 65 anos e estou no Fratel, às portas do Ródão na casa da minha amiga MJ. Três dias na natureza, que bom! Balbucio: «Gratias a la vida que me ha dado tanto, me ha dado la risa me ha dado el llanto»
Não tenho filhos, não sou diretamente mãe de ninguém, mas sinto-me tão irmã, tão prima, tão amiga, tão sangue-do-meu-sangue com tanta gente...
Que consiga passar a quem estiver no programa a interpelação espiritual que Teresa me traz e ficarei serena e contente: essa mística que podia viver a pão, água e meia sardinha, mas que simultaneamente se deliciava com as uvas doces da mesa do bispo...
Dou por mim a passajar roupa, nestes tempos de contenção de despesas: maravilhosa oportunidade de me debruçar sobre o nada e de deixar que a alma saboreie o gesto mecânico da agulha e linha
Fiz contas e mais contas à minha pensão de reforma sistematicamente diminuída, olhei para as parcas poupanças e tenho o suficiente para, durante alguns meses, poder ajudar a minha irmã. Corta-se noutras coisas, paciência
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