Vemos, ouvimos e lemos
Paisagens
Pedras angulares A teologia visual da belezaQuem somosIgreja e CulturaPastoral da Cultura em movimentoImpressão digitalVemos, ouvimos e lemosPerspetivasConcílio Vaticano II - 50 anosPapa FranciscoBrevesAgenda VídeosLigaçõesArquivo

Leitura

Padre Abel Varzim: Editorial Cáritas lança reedição de "Procissão dos Passos"

A Editorial Cáritas lança este domingo, em Lisboa, a reedição da obra "Procissão dos Passos - Uma vivência no Bairro Alto", do Padre Abel Varzim, iniciativa integrada das comemorações dos cinquenta anos da morte do sacerdote.

O volume, fruto de parceria com o Forum Abel Varzim, inclui o excerto de outro texto do autor, intitulado "Porque fugiste, Senhor?", que seria o principio do livro que só mais tarde seria publicado.

O livro começa com uma nota de apresentação, assinada por Paulo Fontes, investigador do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa (UCP), que enquadra a vida e a obra do Padre Abel Varzim, texto que reproduzimos abaixo.

A sessão de lançamento começa às 11h45 na igreja da Encarnação (Chiado), junto ao Bairro Alto, na qual Abel Varzim foi pároco, com a apresentação, por Juan Ambrosio, professor da Faculdade de Teologia da UCP.

O encontro prossegue com a celebração da missa, às 12h30, presidida pelo patriarca de Lisboa e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. Manuel Clemente.

 

Apresentação
Paulo Fontes

Nascido a 29 de abril de 1902 e falecido a 20 de agosto de 1964, o padre Abel Varzim da Cunha e Silva foi, a vários títulos, uma figura marcante do catolicismo português no século XX. Homenageado em 1994, por ocasião do 30° aniversário da sua morte, a Conferência Episcopal Portuguesa definiu-o então como «apóstolo dos trabalhadores, paladino da justiça social em Portugal e defensor das vítimas contra a dignidade humana», em nota publicada pela sua comissão permanente. E o Presidente da República, Dr. Mário Soares, concedeu-lhe, a título póstumo, a medalha da Ordem da Liberdade. Das celebrações realizadas nasceu a vontade de criação do Fórum Abel Varzim - Desenvolvimento e Solidariedade, associação entretanto fundada em 19962 e cujas atividades desenvolvidas podem ser acompanhadas através do seu boletim "Transformar".

No centenário do nascimento, decidiu o Fórum promover a publicação de um texto - ao que sabemos - inédito" e à guarda de familiares do autor. "Procissão dos Passos", editado com a chancela da editora Multinova, é um escrito de caráter autobiográfico mas simultaneamente um exercício de meditação e reflexão, através do qual o padre Abel Varzim descreve o modo como, a partir de 1951 e enquanto pároco da Igreja da Encarnação, em Lisboa, passou a contactar e se envolveu pastoralmente com uma nova realidade social, a prostituição feminina na zona do Bairro Alto. Seria este seu envolvimento pessoal e o trabalho iniciado a nível do acompanhamento humano e religioso dessas mulheres a viverem na margem da sociedade, que o conduziriam ao lançamento de uma nova e inédita iniciativa de promoção humana, a "Obra das Raparigas da Prostituição". O projeto de acolhimento e reinserção social das mulheres "toleradas" traduziu-se na inauguração, em 1954, do chamado Centro de Recuperação da Quinta do Bosque (Amadora), anos depois substituído por novo centro no Porto, e no lançamento de uma Liga Nacional Contra a Prostituição.

Segundo testemunha Domingos Rodrigues, «a Liga atraiu a simpatia e a adesão de muitas pessoas bem formadas que se esforçavam por angariar contribuintes para o Centro e, paralelamente, tentavam despertar nas prostitutas a vontade da recuperação», mas gerou também «a partir dos meios puritanos da Capital, uma vaga de escândalo que magoou profundamente Abel Varzim» e que terá contribuído para o desgaste físico e moral que o conduziria ao seu retiro na terra natal de Cristelo, a partir de 1957. Segundo o mesmo autor, o projeto do padre Abel Varzim ter-se-á inspirado na experiência francesa do movimento católico "Le Nid", fundado pelo padre André Marie Talvas, que em Portugal seria retomada anos depois, através de nova iniciativa que daria origem à atual instituição "O Ninho".

O percurso de Abel Varzim, um dos "padres de Lovaina", do nome da cidade onde se formariam várias das figuras do catolicismo social português e onde se doutorou em Ciências Político-Sociais (1934), é conhecido sobretudo pelo trabalho que realizou enquanto doutrinador e impulsionador do movimento operário católico, em particular de 1934 a 1948. Data de então a suspensão pelas autoridades governamentais do jornal "O Trabalhador" de que foi o principal animador e redator, e o seu afastamento, por pressão governamental, das funções que exercia de assistente geral da Liga Operária Católica (desde 1936), de diretor do Secretariado Económico-Social da Ação Católica Portuguesa (desde 1939) e de professor do Instituto de Serviço Social (desde 1938), onde lecionou as cadeiras "Encíclicas Sociais", ''A Família" e "Economia Política'". Entretanto apoiaria a fundação da Cooperativa Popular de Portugal (1935-1937), cooperativa de consumo para locistas, e fundara o Centro de Estudos da Ação Social para Universitários (1941-1945), de que foi também assistente.

As responsabilidades políticas que exerceu enquanto deputado à Assembleia Nacional, de 1938 a 1942, e o seu posterior afastamento e críticas que manifestou relativamente ao Estado Novo, resultam de um percurso individual mas expressam também uma evolução no posicionamento político de muitos católicos sociais no pós-II Guerra Mundial. A referência da doutrina social da Igreja ao corporativismo, nos anos 30, explica a aproximação ideológica e o empenhamento de algumas das elites católicas na institucionalização do Estado Novo, adotando a estratégia de penetrar as suas estruturas, para as transformar a partir de dentro. Mas, foi também em função de uma conceção própria desse mesmo corporativismo-corporativismo de associação versus corporativismo de Estado - que se foram verificando deceções, críticas e progressiva oposição de muitos católicos sociais em relação ao mesmo Estado Novo".

Enquanto formador, conferencista e escritor, o doutor Abel Varzim contribuiu decisivamente para o desenvolvimento em Portugal do que então se designava por "sociologia cristã", nomeadamente a partir do seu empenho nas Semanas Sociais Portuguesas" e na organização do I Congresso dos Homens Católicos (1950). Colaborou em diversos órgãos da imprensa católica, nomeadamente o jornal "Novidades" e a revista "Lumen", de que foi chefe de redação, tendo participado ativamente no lançamento da Rádio Renascença. De 1948 a 1950 desenvolveu intensa atividade na SET- Sociedade Editorial O Trabalhador, dedicando-se à difusão da doutrina social, e empenhou-se em atividades de formação do clero, nomeadamente através da pregação de retiros. Em 1951 seria nomeado «pároco do Bairro Alto». Refere-se a este período o texto que agora se reedita e que, apesar de não datado, se depreende terá sido escrito já em Cristelo.

Pároco pela primeira vez com 48 anos de idade, vê-se numa situação nova e desafiante na sua vida sacerdotal: «A paróquia da Encarnação, onde mora gente da mais fina flor e há cristãos da mais rija têmpera, aparecia no seu conjunto de tal modo marcada pela corrupção que, muita vez, me senti incapaz de paroquiá-la - confessa. A prostituição imprimia-lhe caráter, entranhava-se de tal modo nas suas casas, nas ruas e no ar que respirava, que mais parecia feudo do Diabo, do que paróquia da Igreja de Cristo. Quantas vezes, alta noite, da janela do meu quarto, não rezei os exorcismos sobre o casario do meu Bairrol». De então em diante é todo um combate que o padre Abel Varzim trava, de início, contra a existência da «ação corruptora dos lupanares», no fim, a favor da reinserção social das raparigas que «abandonadas» a essa não-vida, ele aprende a conhecer e a acolher na sua Igreja. Mas, o que o autor do texto nos narra é também, e sobretudo, o seu percurso humano e espiritual, um percurso interior no modo de aprender a lidar com uma realidade marginal mas também marginalizável, no quadro social, cultural e religioso da época.

Encontramo-nos assim diante de uma narrativa de grande densidade, escrita na primeira pessoa, mas marcada pela preocupação constante de confronto com os Evangelhos. Fidelidade à mensagem e à pessoa de Jesus, mas fidelidade também à realidade que se lhe impôs e que não pôde ignorar, surgem assim como as duas referências que balizam permanentemente a reflexão e atitudes de Abel Varzim, permitindo-lhe ultrapassar as limitações da «moral que aprendera». No centro do processo da sua própria conversão espiritual está um outro; a vida e a morte de uma mulher prostituta tornou-se para si «um rasgar de horizontes, como se, de repente, tivesse sido arrastado ao cimo duma montanha, donde avistasse a linha do infinito». Assiste­-se assim como que à transição de uma visão da prostituição como realidade social catalogável, exterior, para uma outra visão habitada pela presença de pessoas a quem «ouvira a voz da alma».

É um texto rico, a vários títulos. Merece ser lido e analisado também enquanto testemunho de um tempo, de uma sociedade e de uma Igreja, onde as mulheres prostitutas não tinham lugar como pessoas mas apenas "toleradas". Em contexto específico e com categorias próprias, o autor narra também a reinvenção da religião, de que é exemplo a história da imagem de Santa Maria Goretti que o padre Varzim trouxera para a sua igreja: «Com efeito, alguma coisa não estava certa. Se tinha trazido a Santa para a igreja não foi precisamente para expulsar da freguesia as prostitutas? (...) Quisera-as fora da paróquia e elas começaram a invadir-me a igreja». É a partir desta "invasão" que o padre reflete a sua experiência e percurso, num tom que se apresenta também pedagógico, como a convidar o leitor a envolver-se nesta aventura e a comprometer-se no projeto social proposto. Daí que o texto se alargue em reflexões mais gerais sobre o sentido do outro, o bem comum, a natureza da caridade, mas também na denúncia do que considera a raíz da prostituição: a situação e sentimento de «abandono», a que muitas mulheres terão sido votadas na sua infância ou juventude, mesmo quando educadas em «Asilos e Orfanatos ou Casas dirigidas por educadoras religiosas». Em suma, uma realidade vivida, sofrida na carne por muitas mulheres, um calvário que sendo também o do seu Senhor - na perspetiva do padre Abel Varzim -, deveria ser também o de todos os cristãos: «Cristo continua habitando entre nós, mas não O reconhecemos. Contentamo-nos, por isso, com a nossa presença na procissão das imagens, que é representação e espetáculo, mas não é Paixão». É toda uma conceção teológica da encarnação que se afirma, e que o texto convida a estudar.

De facto, se a história do catolicismo português contemporâneo começou já a escrever-se, há que reconhecer, no entanto, que muitos dos estudos realizados se limitam frequentemente às dinâmicas mais institucionais ou ao quadro das relações da Igreja Católica com o Estado. Uma história do catolicismo implica necessariamente consideração por crenças e convicções religiosas, atenção às dinâmicas devocionais, cultuais e de sociabilidade, análise de correntes teológicas e espirituais, assim como estudo dos movimentos sociais e culturais que os católicos integraram ou promoveram na sociedade portuguesa contemporânea. Nesta perspetiva, "Procissão dos Passos" oferece não apenas um topos religioso, mas propõe uma reflexão que constitui em si mesma, simultaneamente, uma fonte historiográfica e um sugestivo texto espiritual, a merecer estudo e análise. Um texto atravessado pelo registo profético, ligando o ontem e o hoje num abertura ao porvir, que a esperança cristã suscita: «Não basta, por isso, vestir opas negras, empunhar lanternas ou pegar às varas dos pálios. A Procissão dos Passos é de todos os dias, mas não tem andores nem música, nem anjinhos. Tem dores, angústias, desesperos, lamentos, lágrima e chagas. São os ódios de raças, as lutas fratricidas, os colonialismos e os anticolonialismos, os campos de concentração, a opressão das consciências, as limitações da personalidade, da liberdade e da consciência humanas, a fome, o desemprego, os bairros de lata, os acidentes de trabalho ou de estrada, as prepotências e os desmandos do capital, as revoltas surdas ou abertas do trabalho, a exploração de menores, a escravatura da mulher, o tráfico das brancas, os compadrios, as injustiças, os egoísmos, os roubos, os assassinatos, as vinganças, a difamação, a soledade dos corações, as lentas agonias. Tudo isto flagela, dilacera, crucifica o Corpo de Cristo, como nunca talvez na História da Humanidade».

 

Esta transcrição omite as notas de rodapé.

 

In Procissão dos Passos, ed. Cáritas
10.03.14

Redes sociais, e-mail, imprimir

 

 

Artigos relacionados

 

Página anteriorTopo da página

 


 

Receba por e-mail as novidades do site da Pastoral da Cultura


Siga-nos no Facebook

 


 

 


 

 

Secções do site


 

Procurar e encontrar


 

 

Página anteriorTopo da página