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Os raios infravermelhos da arte

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Os raios infravermelhos da arte

Para entender o presente há algo mais útil do que ler o jornal: ajuda muito ver um filme de Éric Rohmer, passar o tempo diante de um quadro de Bracque e ler um romance de Patrick Modiano, escreve Pierre Cahne no contributo publicado em "Ler, escutar, ver", fruto do trabalho do "Observatório fé e cultura", do episcopado francês, cujo número 8, de 2014, é dedicado ao valor terapêutico - e não só artístico - do cinema, literatura e pintura.

As obras de arte são, desde sempre, uma via privilegiada para visões inéditas do mundo, e isto continua a ser verdade para a cultura moderna e contemporânea. Amar os livros - lê-se no texto - significa «amar a carne e amar as coisas». Porquê Rohmer, e não outro cineasta? Porque para ele o cinema é a análise da realidade e das suas contradições. Por isso indaga os sentimentos e os aspetos mais banais da vida do dia a dia, as relações interpessoais, desde a solidão ao amor em todas as suas declinações. Já a sua primeira longa-metragem, "O signo do leão" (1959), apresenta a característica que tornou original toda a sua obra: mostrar o sentir das pessoas através do seu olhar sobre as coisas.

A poética deste grande mestre do cinema europeu, um dos inovadores da linguagem cinematográfica ao tempo da "nouvelle vague", tem muito em comum com a perda que se respira nos romances de Modiano, em que a ausência do pai (com minúscula, mas também, e talvez sobretudo, com maiúscula) condena os personagens a um sentido de culpa, tão vago quando angustiante, difícil de exorcizar. Mas a espera exasperante que vivem os personagens é o sinal mais evidente do mistério oculto no fundo de cada situação, vivida ou apenas imaginada.

Do discurso de Patrick Modiano quando recebeu o Prémio Nobel da Literatura, a 7 de dezembro de 2014, em Estocolmo:

«Sempre acreditei que o poeta e o romancista conferem mistério a seres humanos que parecem submersos pela vida quotidiana, às coisas aparentemente banais, e isso à força de os observar com uma atenção sustentada e de maneira quase hipnótica. Sob o seu olhar, a vida de todos os dias acaba por se envolver de mistério e por tomar uma espécie de fosforescência que não tinha à primeira vista mas que estava oculta em profundidade. O papel do poeta e do romancista, e também do pintor, é revelar o mistério e a fosforescência que se encontram em cada pessoa.

Penso no meu longínquo primo, o pintor Amedeo Modigliani, cujas telas mais comoventes são aquelas em que ele escolheu para modelos pessoas anónimas, rapazes e raparigas das ruas, serventes, pequenos agricultores, jovens aprendizes. Ele pintou-os com traços precisos que lembram a grande tradição toscana, de Botticelli e dos pintores de Siena do séc. XV. Desta maneira ele deu-lhes - ou melhor, revelou-lhes - toda a graça e a nobreza que existiam neles sob a sua humilde aparência.

O trabalho do romancista deve ir neste sentido. A sua imaginação, longe de deformar a realidade, deve penetrá-la em profundidade e revelar esta realidade como ela é, com a força dos infravermelhos e ultravioletas para detetar o que se esconde por trás das aparências. E não estarei de longe de acreditar que, no melhor dos casos, o romancista é uma espécie de vidente, e mesmo de visionário. E também um sismógrafo, pronto a registar os movimentos mais impercetíveis.»

 

Silvia Guidi
In "L'Osservatore Romano", 21.12.2014
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 01.01.2015 | Atualizado em 20.04.2023

 

 
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O trabalho do romancista deve ir neste sentido: a sua imaginação, longe de deformar a realidade, deve penetrá-la em profundidade e revelar esta realidade como ela é, com a força dos infravermelhos e ultravioletas para detetar o que se esconde por trás das aparências
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