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Os cristãos que Francisco (não) vai encontrar no Iraque: A fé marcada pela discriminação

A letra nun. A marca usada pelos milicianos do pretenso Estado Islâmico em Mossul para indicar as casas dos “nassarah”, os seguidores de Jesus, os “nazarenos”, naquela estratégia de terror que conduziu ao êxodo em massa cristãos do planalto de Nínive em 2014: dos centros de Qaraqosh ou Bakhdida, Telkaif, Tel Eskof, Bartella, Qaramlesh, Bashiqa. Obrigados a converter-se, pagar um imposto ou fugir. E no entanto os “nazarenos” ali viviam desde os alvores do cristianismo. Ali tinham as suas raízes, e a dor de terem de partir deixando não só as suas coisas mas a sua “geografia” deve ter ficado impressa, a par do medo, nos seus corações. A vida desta comunidade, subdivivida hoje entre caldeus, sírios, arménios, latinos, melquitas, ortodoxos e protestantes não tem sido fácil, marcada por discriminações e perseguições ao longo dos séculos.

 

As raízes bíblicas

A presença dos cristãos no Iraque é antiga, sendo inclusive testemunhada nos Atos dos Apóstolos. Trata-se de uma Igreja que tem as suas raízes no primeiro século com a pregação do apóstolo S. Tomé e dos seus discípulos Tadeu, conhecido no Oriente com o nome de Addai, e Mari, que evangelizaram na Mesopotâmia, e a eles é atribuída a composição de uma anáfora (oração central da Eucaristia).

Mas a terra do atual Iraque já antes do cristianismo se entretecia com as raízes do povo de Israel. De Ur para Haran sairá Abrão, rumo às terras de Canaã. Depois é interessante notar como Nínive, que nasce diante da cidade de Mossul, comparece muitas vezes na Bíblia. Capital da Assíria, alcança o seu esplendor máximo no século VII a.C., e é no final dessa centúria que é destruída, como pré-anunciado pelo profeta Naum. Citada em vários livros do Antigo Testamento, a ela foi enviado por Deus o profeta Jonas, para anunciar a sua destruição, mas «os habitantes de Nínive acreditaram em Deus, ordenaram um jejum e vestiram-se de saco, do maior ao menor», e «Deus viu as suas obras, como se convertiam do seu mau caminho, e, arrependendo-se do mal que tinha resolvido fazer-lhes, não lho fez».

Também Jesus se referirá a estes lugares, atestando a sua importância na geografia e na história da salvação: «No dia do juízo, os habitantes de Nínive hão-de levantar-se contra esta geração para a condenar, porque fizeram penitência quando ouviram a pregação de Jonas».

Nesta terra o povo judeu sofreu o exílio babilónico. Berço de antiquíssimas civilizações, são também os santuários, os mosteiros e as igrejas que testemunham a presença do cristianismo desde os primeiros passos.

 

A conquista árabe e a Igreja do Oriente

A Igreja do Oriente foi muito florescente, sublinha o sacerdote libanês maronita Jean Azzam, pároco e professor de Sagrada Escritura na Pontifícia Faculdade de Teologia em Junieh: «No século VII d.C., quando chegaram os árabes que derrotaram os sassânidas, os cristãos eram já pelo menos 50% dos habitantes do atual Iraque, de língua e cultura siríaca. Depois, pouco a pouco, adotaram a língua árabe para poderem integrar-se, enquanto o siríaco foi mantido na liturgia e na literatura».

Com a chegada do califado abássida, o centro do poder transferiu-se para Bagdade. Neste contexto, «os cristãos tiveram um papel especial, facilitando a integração cultural, e sobretudo no campo das traduções. Recordo um famoso literato, Hunayn Ibn Ishâq al-‘Ibâdî, que traduziu mais de 40 livros do grego para o árabe e mais de 95 em siríaco». Tratava-se de livros da filosofia grega e das ciências gregas dos séculos anteriores a Cristo, com Aristóteles e Platão. Conhecimentos que depois os árabes desenvolveram, e deste modo passaram também para o Ocidente. Foi, portanto, «uma grande contribuição para a cultura do tempo».

O estudioso assinala também outra figura central, Catholicos Timóteo, o Grande (780-832), literato, de quem se recordam vários diálogos com a califa al-Mahdī sobre questões de fé cristã e islâmica.

«Porém, depois, aos poucos, o califado abássida procuraram converter muitos cristãos ao islão, mas ainda assim esta Igreja evangelizou em Damasco, Jerusalém, Alexandria, Chipre, e também enviou missionários para a Índia – a Igreja em Malabar teve origem na evangelização desta Igreja – e inclusive para a China.»

 

No período dos otomanos

Os otomanos conquistaram a região a partir de 1516 e derrotaram os mamelucos, «que fizeram perseguições terríveis aos cristãos de todas as regiões do Médio Oriente. Os otomanos deixaram viver os cristãos. E os diálogos da Igreja do Oriente com Roma começaram primeiro em Chipre, e depois no próprio Iraque, progredindo em várias retomadas, até que (séculos XVIII-XIX) houve um ramo bastante grande desta Igreja que se tornou caldeu, portanto católico em união com Roma».

Neste tempo era, ainda assim, necessária a “permissão” do sultão para cada ato no interior da Igreja. Depois, com a primeira guerra mundial, houve uma grandíssima perseguição contra os cristãos, tendo morrido um milhão e meio de arménios, e nesta vaga de massacres foram igualmente mortos muitos membros da Igreja do Oriente e de outras Igrejas, inclusive bispos e padres. Durante 1400 anos houve momentos de boa convivência, mas «a cada 20 ou 30 anos ocorreram perseguições mais ou menos locais».

 

A convivência possível

Em 1920 o território foi confiado pela Sociedade das Nações à administração britânica. O Iraque torna-se uma monarquia independente em 1932 e uma república em 1958, após um golpe de estado. Em 1979 acontece a chegada de Saddam Hussein. Durante o regime ditatorial os cristãos encontraram um estilo de vida que permitiu à Igreja desenvolver atividades também no campo sócio-caritativo. Saddam precisava do apoio dos cristãos, que naqueles anos – apesar da nacionalização das suas escolas – se «empenharam na educação, na medicina, e apesar de serem uma minoria tinham importância e eram apreciados pela sua cultura e abertura», explica o sacerdote.

«Os cristãos sempre quiseram conviver com os muçulmanos, e souberam fazê-lo, e muitos muçulmanos apreciaram a presença dos cristãos», destaca o docente, sublinhando que «é preciso reconhecer que a convivência é possível». «Estou satisfeito por o papa Francisco ter feito estas aberturas ao mundo muçulmano, nos passos dos seus predecessores. Por exemplo, o grande entendimento de há dois anos (com o “Documento sobre a Fraternidade Humana”). E agora vai encontra-se com os chefes religiosos dos xiitas no Iraque. Há, portanto, algo a construir, e é possível fazê-lo.»

 

Um perdão mais forte que a morte

A situação no Iraque para os cristãos precipita-se após as duas guerras do Golfo. Verifica-se uma série de ataques contra os cristãos, até à dramática perseguição realizada pelo autodenominado Estado Islâmico, entre 2014 e 2017, em particular com a conquista de Mosul e o consequente êxodo dos cristãos para outras regiões e países.

«O êxodo dos cristãos começou logo desde a guerra entre Iraque e Irão. Depois o embargo, o pretenso Estado Islâmico… tudo isto provocou o êxodo em massa para as regiões curdas, e aí o patriarca e os bispos organizaram verdadeiramente um acolhimento fraterno, muito belo para com todos os refugiados. Quando estive em Ankawa, na cidade de Erbil, vi todo o trabalho da Igreja, por parte dos padres, de muitos leigos, de muitas realidades». O arcebispo católico caldeu de Erbil, D. Bashar Warda, chamou muitas realidades eclesiais nascidas após o Concílio Vaticano II, e muitos outros bispos procuraram responder não só às necessidades materiais, mas também espirituais.

O P. Jean Azzam recorda os tocantes testemunhos de pessoas que sofreram muito, que perderam tudo. Diziam, lembra, que não queriam condenar ou julgar os membros do Isis porque, afirmavam, «não sabiam o que faziam». E repetiam estas palavras de Cristo na cruz.

 

O êxodo dos cristãos

Dos 1,4 milhões de cristãos que viviam no Iraque antes do início da segunda guerra do Golfo, contam-se hoje entre 300 e 400 mil. Só entre 2003 e março de 2015 foram mortos 1200 cristãos. Entre eles D. Pauylos Rahho, o arcebispo de Mossul dos caldeus, assassinado em 2008, cinco sacerdotes e mais 48 vítimas do atentado jihadista de 31 de outubro de 2010 contra a igreja siro-católica de Nossa Senhora do Socorro, e foram destruídas ou danificadas 62 igrejas. Com o advento do Isis, mais de 100 mil cristãos foram forçados a abandonar as suas casas, juntamente com outras minorias perseguidas, como os yazidi. E cerca de 55 mil saíram nestes últimos anos do Curdistão iraquiano.

Após a derrota do califado, em 2017, gradualmente alguns cristãos regressaram ao planalto de Nínive, mas têm medo. Começou e avança a reconstrução, também graças ao empenho da Ajuda à Igreja que Sofre, mas vive-se com falta de segurança, moléstias, intimidações e pedidos de dinheiro por parte de milícias e grupos hostis, que continuam a ser uma ameaça para a comunidade cristã iraquiana, de tal maneira que 57% dos cristãos pensa emigrar.

O especialista na Bíblia espera que os cristãos possam permanecer e dar um bom testemunho. E cita um dito muçulmano: «Os cristãos são uma grande riqueza para os muçulmanos, e a sua ausência é uma perda insubstituível».

 

Sinal de paz e reconciliação

Dos anseios dos cristãos tem-se feito porta-voz o patriarca Louis Raphaël Sako, que insiste na importância de um diálogo corajoso entre todas as partes em causa no Iraque, com vista à construção de um estado forte e pluralista. Desde há anos que as Igrejas cristãs reiteram a necessidade da aprovação de uma constituição laica e de terem mais espaço na vida política e social do país.

Uma declaração aprovada em 2005 garante formalmente o respeito pela liberdade religiosa, mas de facto o islão constitui uma fonte primária da legislação. Há diálogo e muito caminho a percorrer. O papa Francisco fez sempre sentir a sua proximidade aos cristãos, e a viagem apostólica prevista para começar esta sexta-feira, exprime-o cabalmente. O pontífice, com efeito, recordou «os cristãos obrigados a abandonar os locais onde nasceram e cresceram, onde se desenvolveu e enriqueceu a sua fé», acrescentando a necessidade de a presença cristã nessas terras «continuar a ser aquilo que sempre foi: um sinal de paz, de progresso, de desenvolvimento e de reconciliação entre as pessoas e os povos».


 

Debora Donnini
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: D.R.
Publicado em 04.03.2021 | Atualizado em 20.04.2023

 

 

 
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