Hoje fala-se mais de Sophia de Mello Breyner, por ocasião dos 100 anos do seu nascimento, e de Natália Correia, evocada numa série televisiva recente. «Mas, e Fiamma Hasse Pais Brandão? E Luiza Neto Jorge? E Irene Lisboa?»
E Sylvia Plath, Susan Sontag, Leonor Xavier, Clarice Lispector, Maria Teresa Horta? «Ficávamos sempre em boa companhia, em vez de obrigarmos as nossas crianças e adolescentes a estudar complementos oblíquos, modificadores verbais, e outros absurdos que secam completamente a alma humana.»
«Como é que podemos querer formar um país que faça sentido, se estamos a negar às nossas crianças e adolescentes o acesso à cultura letrada, à cultura literária, ao património literário que lhes pertence?»
As interrogações foram lançadas pelo escritor António Carlos Cortez, durante a 15.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, que debateu o tema “A Mulher na Sociedade e na Igreja”. A intervenção, que apresentamos integralmente em vídeo, foi marcada pela evocação, cantada, do poema “Mulheres de Atenas”, conhecido pela composição musical de Chico Buarque e Augusto Boal.
«À luz de um paradigma educativo, a meu ver completamente errado, de há pelo menos 20 anos para cá, o ensino para as competências e sem conteúdos trouxe-nos até aqui: a uma indigência generalizada» de jovens e crianças, que «desde cedo» são colocadas pelos pais à frente dos ecrãs de telemóveis e computadores, vincou o professor do ensino secundário e superior.
Ao propor à leitura dos mais novos um poema ou texto literário, «a incapacidade para ler e compreender palavras é preocupante», carência que também se revela na dificuldade que manifestam em comunicar sentimentos, angústias e dores, e que tendem, por isso, a expressar-se através da violência.
«O ministro da Educação, assim como o seu secretário de Estado, que até foi meu professor, insistem num modelo educativo completamente errado, que conduz as crianças e adolescentes àquilo que George Steiner chama “a barbárie da ignorância”», vincou o crítico literário.
António Carlos Cortez defende que «a Igreja podia ter uma voz forte» no apelo ao Ministério da Educação a mudar de rumo: «Acho que um dos combates do nosso tempo é levar, a quem governa, a mensagem de que esta formatação e obsessão por uma educação para o sucesso, vão, a curto prazo, encaminharmo-nos – e já está – para uma república de bárbaros».
A propósito, recordou as palavras que Maria Barroso lhe dirigiu, há cerca de 15 anos: «“Professor, é bom que escreva, é bom que publique e arraste os seus alunos para lançamentos de livros, e os leve consigo a ouvir poesia; porque se assim não for, vamos ter uma sociedade de funcionários”; depois estacou, e acrescentou: “E repare que um funcionário é aquele que funciona, não pensa nem sente”».
Escola e famílias estão a «falhar» não só no âmbito das competências literárias, como também, observa, na educação para a vida das jovens: «Há hoje um efeito pernicioso de mimetismo nas adolescentes, que é o de exercerem violência ou terem até uma espécie de culto provinciano que vai da linguagem ao comportamento e à relação que têm com o seu corpo».
Veem-se «cada vez mais» jovens «que perigosamente vivem o seu corpo, perigosamente vivem a sexualidade e perigosamente pensam que ser rapariga, hoje, é beber muito, fumar toda a espécie de estupefacientes e ter mil e um parceiros sexuais».
Para António Carlos Cortez, uma das razões pelas quais a sociedade «está em perigo é porque há, subterraneamente, uma questão que não é só portuguesa, mas mundial, do sentido», associada ao desvanecimento da importância dada aos «valores».
Referindo-se à condição da mulher na literatura, o escritor lembrou que muitas, no passado, tiveram de assinar as suas obras com nomes de homens, ou tiveram de optar entre a escrita e a maternidade. E hoje, ao olhar «para o cânone da literatura portuguesa, em particular da poesia, é com grande admiração que se vê um peso enorme dos escritores do sexo masculino», comparativamente às escritoras.
O vencedor do Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes notou que na poesia portuguesa do século XX há, em autoras como Florbela Espanca, Irene Lisboa e Luiza Neto Jorge, «uma assunção cada vez mais vincada e declarada do corpo feminino como algo a respeitar, e ao mesmo tempo que se pode usar para o prazer, sem que isso o desmereça».
«Se devemos muito ao Chico Buarque, ele só escreve assim na medida em que pôde amar, e ama e tem amado mulheres de corpos belos e de cabeças de ideias luminosas», apontou, assinalando depois que «a repressão sexual autoimposta traduz-se em comportamentos muitas vezes bestiais», alusão à pedofilia entre membros do clero.
Antes de concluir, lendo “Epístola para os amados”, de Fiamna Hasse Pais Brandão, António Carlos Cortez evocou o quanto deve às mulheres, e expressou o desejo de que, dentro de uma década, já não seja preciso realizar encontros sobre o papel da mulher na sociedade.