É sabido que vivemos na era da massificação das imagens. Em nenhuma época precedente da História foram produzidas tantas imagens, e para além disso nenhuma outra, como a nossa, assistiu à sua radical banalização. Em vez de imagens únicas e autênticas, temos produtos realizados em série, “selfies” fabricadas num instante e num instantes prontas a ser devoradas pelo esquecimento. O filósofo Walter Benjamim falou justamente de “perda da aura”, isto é, a imagem que deixa de constituir «a aparição única de uma coisa distante», fixando-se antes na sonâmbula repetição de um “déjà vu”. Por isso, o tocante consenso em torno à imagem do papa Francisco numa Praça de S. Pedro vazia [27 de março de 2020] é algo que faz pensar, fora e dentro do espaço eclesiástico.
A um ano de distância, vala a pena revisitar aquela imagem, que na realidade nunca deixou de estar presente, e questionar-se de onde provém o seu excecional poder icónico. Porquê aquela imagem que continuou a representar aquilo que estamos a viver, e não outra qualquer? E que coisa nos revela de si mesma ou que coisa nos ensina sobre nós próprios? Procurando sintetizar o que, seguramente, mereceria uma reflexão mais ampla, indicarei quatro razões.
1. A audácia de habitar a vulnerabilidade como lugar da experiência humana e crente.
É verdade que a cultura dominante, o “mainstream” modelado como um automatismo pelas nossas sociedades consunmistas, fez da vulnerabilidade uma espécie de tabu. A fragilidade está sujeita a um ocultamento. E à força de interditar-nos o encontro com o sofrimento humano, cada vez menos sabemos reconhecer-nos nele, ou partimos dela para aprofundar o sentido da nossa humanidade comum. Mas isto não é apenas um problema da cultura contemporânea. Também a performance religiosa tem alguma dificuldade em integrar aquilo que Michel de Certeau chamava a «fraqueza de crer». A imagem que se transmite é mais aquela de uma operação cumprida a partir de um guião do que a do despojamento e da abertura para realizar um “caminho não traçado”. O papa Francisco ousou habitar a vulnerabilidade. Não se limitou a falar da vulnerabilidade do mundo, como se dela fosse isenta. Na medida em que aceitou expor-se como um qualquer, emergiu como uma figura sacerdotal capaz de representar todos.
2. A audácia de abraçar e voltar a dar significado ao vazio.
Uma das experiências mais impactantes do confinamento foi, no início da pandemia, assistir ao esvaziamento das cidades. De um momento para o outro espalhou-se um estranho e desconhecido silêncio. Incrédulos, olhávamos das nossas janelas as ruas e as praças vazias numa solidão absoluta, sentindo-nos como expropriados do mundo. A nossa primeira reação foi a de ler o vazio como algo de hostil que nos ameaçava. Pois bem, Francisco teve a grande sabedoria de abraçar o vazio em vez de o repudiar, sublinhando o seu potencial simbólico e revelador. Por isso foi muito importante o texto evangélico escolhido, a cena da tempestade acalmada segundo marcos 4, 35-41. Porque se, por um lado, se aceitava o vazio, abraçando-o como lugar existencial e teológico, por outro a Palavra de Deus fornecia a chave para voltar a dar-lhe significado. O vazio tornava-se uma barca. «Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos». O vazio oferecia uma nova gramática para nos descobrirmos não como fragmentos isolados, mas como “Fratelli tutti” [todos irmãos].
3. A audácia de encontrar uma metáfora.
Ao comentar o texto evangélico de Marcos 4, 35-41, o papa Francisco cumpriu um gesto de grande alcance: reorientou a perceção em relação à pandemia. Os primeiros chefes de Estado a falar referiram-se à pandemia como a uma guerra, metáfora compreensível até certa medida, mas demasiado equívoca e com muitos perigos à espreita. O papa foi o primeiro a falar desta como de uma tempestade. Esta passagem do estrito plano beligerante para o plano cosmológico coincidiu com um alargamento de visão. Permitiu, por exemplo, desmantelar o impulso inicial de encontrar um culpado, aceitando, antes, que a tempestade nos mostrasse a todos numa vulnerabilidade que não queríamos ver e que nos envolve a todos numa reconstrução que nos compromete globalmente. Este tempo de prova representa assim um tempo novo para novas e proféticas opções que nos unam, em vez de intensificar o triunfo da lógica dos conflitos e das partes.
4. A audácia de rezar a Deus no silêncio de Deus.
As tempestades são experiências de crise também para os crentes. Há um escândalo implícito no grito dos discípulos que procuram despertar Jesus: «Mestre, não te importa que nos percamos?» (Marcos 4, 38). Como explica o papa, esta «é uma frase que fere e desencadeia turbulência no coração». Perante a disseminação do mal e da sua proximidade traumática, escutamos com sofrimento aquilo que parece ser o incompreensível silêncio de Deus. E a grande tentação nesses momentos é o niilismo ou a desmobilização.
Heidegger, sobre o poder das imagens, escreveu que «a essência das imagens está fazer ver alguma coisa». A imagem do papa que reza e que concede a bênção eucarística, num contexto universalmente experimentado como de desolação, faz ver como o invisível de Deus perfura os bloqueios da História, e o seu silêncio dá-nos a possibilidade de viver, seguindo os passos de Jesus, a situação de abandono como confiança e entrega nas suas mãos. Francisco pediu: «Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus». E assim foi.