Pede-se muitas vezes aos crentes para lerem a Bíblia. E agora convida-se igualmente os não crentes a não ignorar as Escrituras judaico-cristãs porque elas são o «grande códice» cultural do Ocidente, o nosso ponto de referência em termos de ideal e de arte, presidindo às escolhas de vida individuais. Mas como interpretar todas essas páginas datadas, escandalosas, imorais que se encontram no Antigo Testamento? Mesmo do Novo Testamento não se diga que pode ser tratado com ligeireza: basta ler o Apocalipse...
Esta questão, aparentemente muito simples, é na realidade um dos elementos mais complexos que sacode o espírito e o coração de quem deseja unir-se seriamente à Bíblia. Fala-se, tecnicamente, de uma «questão hermenêutica», de critérios para uma justa interpretação das Sagradas Escrituras (a palavra, de origem grega, remete para o deus Hermes, intérprete da vontade e dos oráculos dos deuses). Na realidade, teologicamente falando, as Escrituras apresentam duas naturezas aos olhos do crente, como o Verbo exaltado por S. João no prólogo do seu Evangelho. Trata-se, por um lado, de uma palavra divina eterna; por outro, de uma palavra "incarnada" numa história, com uma linguagem humana e três línguas concretas (hebraico, aramaico, grego). A interpretação deve por isso seguir as duas vertentes.
Enquanto Palavra de Deus, a Bíblia exige ter um guia transcendente, capaz de fazer perceber a verdade de fé e de vida presente no texto histórico e literário. Neste sentido, Cristo, em ordem à plena compreensão das suas palavras, promete o auxílio do Espírito Santo, «que vos ensinará tudo, e há de recordar-vos tudo o que Eu vos disse [...] e há de guiar-vos para a verdade completa» (João 14, 26; 16, 13). Quando enuncia as verdades fundamentais da fé, a Igreja é assim sustentada e conduzida pelo «Espírito de verdade» dado pelo Pai e por Cristo ressuscitado. Todavia, estas verdades transcendentes foram reveladas através de acontecimentos históricos e palavras humanas.
Se ponho de parte a ajuda do Espírito Santo para penetrar em profundidade na revelação do mistério e da verdade de Deus, então reduzo as Escrituras a simples textos literários do Próximo Oriente antigo, colocando-os aos mesmo nível das outras literaturas. O processo «hermenêutico» exige, como é óbvio, uma verificação em dois níveis, o transcendente e o histórico, com critérios precisos e codificados no plano teológico e no plano histórico-crítico. Como os homens são falíveis, pode haver desvios. A missão do Espírito de verdade consiste em impedir a degradação da verdade substancial da fé, tendo em conta a fragilidade das interpretações do meio, das influências, das formulações contingentes da verdade na história do cristianismo.
Os autores sagrados escreveram com a sua conceção de história, mentalidade e cultura para descrever os grandes acontecimentos da salvação (criação, êxodo, reflexões de sabedoria, milagres, vida e palavras de Cristo). Ao mesmo tempo, o Espírito de Deus que os "inspirou" fez de maneira que eles ensinassem «com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Letras» (Concílio Vaticano II, Dei Verbum, 11). A finalidade da verdade de Deus não é um ensinamento científico nem historiográfico, que surgiria datado e ultrapassado na Bíblia: a verdade deve servir «para nossa salvação».
Card. Gianfranco Ravasi