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O resto é indiferente

Uma das últimas entrevistas a Sophia de Mello Breyner Andresen, se não mesmo a última, apareceu numa pequena publicação católica chamada "Cidade Nova". As perguntas eram telegráficas, mas completamente centradas na ética da existência (tão cara a Sophia). E eram perguntas do tipo: «Se tivesse a força para mudar qualquer coisa, o que mudaria?»; «De que tem medo nesta vida?»; «Tem uma obra muito extensa, isso significa que foi muito feliz?»; «Que considera mais importante na vida?».

As respostas de Sophia têm o impacto e a clareza definitiva que se espera de um testamento, que é, no fundo, o que aquela entrevista constitui. Quando Joaci Oliveira, o entrevistador, lhe pergunta: «Que gostaria de ver realizado em Portugal neste novo século?», a poeta dá uma resposta veemente, que deveríamos acolher como um legado (político, poético, civilizacional): «Gostaria que se realizasse a justiça social, a diminuição das diferenças entre ricos e pobres. Mais justiça para os pobres e menos ambições para os ricos. O resto é-me indiferente».

Este «o resto é-me indiferente», desde que o li pela primeira vez, teve o impacto de um raio. Evidentemente que para uma criadora como Sophia tantas outras coisas seriam fundamentais, desde logo a sua relação com a poesia e a literatura ou a apaixonada força de revelação que ela encontrava na paisagem do mundo. Todos recordamos o que ela deixou escrito: «Quando eu morrer/ voltarei para buscar/ os instantes que não vivi/ junto do mar». Não se trata, por isso, de um desinteresse efetivo pelo resto.

Mas a verdade é que, para ela, a justiça social era o critério de validação ou de repúdio dos modelos económicos, das organizações políticas ou dos itinerários culturais. E não uma justiça social como aspiração abstrata, desimplicada do real, mas uma justiça que se desenha da forma mais objetiva: «A diminuição das diferenças entre pobres e ricos».

Veio-me ao pensamento esta entrevista de Sophia de Mello Breyner ao contactar estes dias com as conclusões do estudo sobre "(i)literacia social", promovido pela Universidade Católica Portuguesa e o Instituto Luso-Ilírio para o Desenvolvimento Humano, conclusões suficientemente inquietantes para nos tirar o sono.

Aquilo que se constata é que quanto mais elevado é o nível da instrução dos inquiridos mais a consideração da importância da justiça ou da solidariedade vai progressivamente baixando. O que leva o investigador Lourenço Xavier de Carvalho, que coordena este estudo, a dizer que «são os mais instruídos e os mais ricos que também mais desvalorizam a justiça e a solidariedade».

Os dados falam por si: quando interrogadas sobre a importância de ajudar os outros, 86,5% das pessoas com o 1.º ciclo respondem afirmativamente; mas essa percentagem baixa para 76,2% quando possuem o secundário; passa para 59,2% entre os detentores de bacharelato; e atinge o valor mais baixo, 53%, no universo dos licenciados, mestres ou doutorados.

Esta mesma questão, cruzada com os níveis de rendimento, mostra que 86,4% das pessoas que ganham até 500 euros considera muito importante ajudar os outros, percentagem que vai diminuindo à medida que os rendimentos aumentam e que atinge o indicador mais diminuto - 46,7% - entre os que ganham mais de 4 mil euros por mês. No que respeita, por exemplo, à relevância dada ao «lutar por uma causa justa» conclui-se também que os portugueses com mais instrução são os que mais a desconsideram.

Impõe-se por isso perguntar: será admissível que a formação e o estatuto social nos tomem mais insensíveis à desigualdade e ao sofrimento e nos desresponsabilizem pelo bem comum?

 

José Tolentino Mendonça
In Expresso, 25.1.2014
20.02.14

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