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O papa Francisco e o pensamento forte de "A alegria do amor"

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O papa Francisco e o pensamento forte de "A alegria do amor"

O escritor Denis de Rougemont afirmava muitas vezes que a crise do casamento remonta ao tempo em que começaram os casamentos por amor. Era uma piada, naturalmente, mas ao mesmo tempo o despertar para uma séria reflexão sobre a complexidade das mutações em curso (mudança de mentalidade, de paradigmas sociais, de regimes de existência, etc.).

É verdade que podemos sempre concordar, também a propósito do amor, que quem inventou a barca inventou igualmente o naufrágio. Ora, a tentação poderia ser simplesmente a de voltar atrás, procurando a solução na restauração de um códice ou de um modelo rígido, e substituindo o amor com um fundamento menos problemático. A situação de emergência que vivemos hoje (em Portugal, por exemplo, no ano de 2013 registaram-se 70,4 divórcios por 100 casamentos) pareceria dar razão a esta tentação.

Graças a Deus, o pensamento do papa Francisco não é esse. Na importante exortação publicada há um mês, o amor não aparece só no título: é nomeado mais de trezentas vezes, tornando-se assim o centro da sua articulada reflexão. A apresentação oficial do documento na Sala de Imprensa do Vaticano foi feita pelo cardeal de Viena, o dominicano Christoph Schönborn, que se referiu à questão sem meias palavras: «O papa Francisco acredita no amor, na força de atração do amor, e por isto pode ficar bastante desmotivado, crítico em relação a um comportamento que queira regular tudo com as normas, de quem pensa que basta concordar com as normas. Não, diz o papa: “Isto não atrai; o que atrai é o amor”».

Dito isto, deve reconhecer-se que o discurso de Bergoglio é tudo menos redutor ou evasivo. Temos aqui um dos momentos que ficará entre os mais emblemáticos do seu corajoso pontificado. De tal texto insolitamente extenso (nove capítulos para um total de mais de 300 parágrafos), facto que já por si revele o extremo cuidado e também a dificuldade que o tratamento destes temas impõe, arriscamo-nos a sublinhar três questões que têm a ver com o método. Seguramente, o que o papa diz é fundamental, e o documento aí está para se tornar objeto de uma ampla receção, mas também o modo como o diz constitui uma atitude e um programa.

1) Uma inovação metodológica do Concílio Vaticano II, sobretudo daquela magna carta do catolicismo contemporâneo que é a "Gaudium et spes", é a introdução de um discernimento da realidade a dois tempos, porquanto se fala não só das sombras mas também das luzes, que indicam um progresso e uma positividade. É uma nova aproximação, que entrou nos documentos magisteriais que se seguiram e que corresponde a um esforço de leitura da vida na sua complexidade. Esse esquema é mantido na "Amoris laetitia", mas com um posterior passo em frente: a Igreja, através da voz autorizada do papa, não promove unicamente uma análise crítica dos temas em análise, mas desenvolve uma honestíssima autocrítica do próprio contributo histórico.

2) No documento é acolhido com audácia um apelo que emergiu nos grupos de trabalho do Sínodo, ou seja, o reconhecimento de que o modo de pensar da Igreja é frequentemente demasiado estático e tem pouco em consideração a dimensão biográfica dos percursos de fé. Escreve assim Francisco: «É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral». E pede com insistência para que nos recordarmos de uma coisa que Tomás de Aquino, o teólogo mais citado em toda a exortação, ensina: «À medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação». E a indeterminação não é um acidente de percurso, mas uma componente da vida com a qual é preciso contar.

3) O documento é em si mesmo um ensaio de linguagem novo, privilegiando o modelo narrativo e a ligação com a experiência, com a trama da vida, com o dia a dia, em vez de propor um discurso abstrato. Disso são um curioso sintoma as próprias citações, que entram na vivacidade de uma antropologia enunciada não só em termos doutrinais, mas através de poetas (encontramos citados Jorge Luis Borges e Mario Benedetti), cineastas ("A festa de Babette", de Gabriel Axel) ou líderes espirituais não católicos (Martin Luther King e Dietrich Bonhoeffer)

 

José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 05.05.2016 | Atualizado em 21.04.2023

 

 

 
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O documento é em si mesmo um ensaio de linguagem novo, privilegiando o modelo narrativo e a ligação com a experiência, com a trama da vida, com o dia a dia, em vez de propor um discurso abstrato
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