“O Ângelus”, de Jean-François Millet, é uma pintura que, apesar das suas dimensões contidas (55 x 66 cm), surpreende e fascina pelo carácter hierático e quase monumental da composição.
O sujeito reporta-nos ao mundo camponês muito amado pelo pintor francês: a linha do horizonte, muito alta, faz com que a superfície do quadro seja ocupado por dois terços da suave cor verde-acastanhada da terra, enquanto a parte superior é invadida pela luz, proveniente da esquerda.
Em primeiro plano sobressaem duas figuras: um homem e uma mulher imóveis, de pé, com a cabeça inclinada e as mãos recolhidas no ato da oração. Terra. Luz. Presença humana. Silêncio. Oração.
É o próprio artista, através do título da obra, que nos explica qual é o motivo de tanto recolhimento: o Ângelus era a oração que, recitada nos três momentos mais significativos do dia – manha, meio-dia e anoitecer –, marcava nas civilizações agrícolas o ritmo do quotidiano.
Ao longe entrevê-se o campanário de uma igreja: enquanto no ar vibram ainda os toques do Ângelus da tarde, o camponês e a sua esposa depuseram os apetrechos do trabalho, a forquilha, o carrinho, o cesto com as batatas acabadas de colher, e detêm-se para celebrar a liturgia noturna do agradecimento.
“Angelus Domini nutiavit Mariae”, o anjo do Senhor anunciou a Maria. O trabalho nos campos, tão fatigante, duro e repetitivo, vive um momento de pausa, e o tempo suspende-se, imóvel. Se “religioso” é – como sustentava Lactâncio – aquilo que sabe fazer ligação entre Terra e Céu, entre humano e divino, a imagem do quadro de Millet colhe a qualidade profundamente religiosa desta suspensão temporal.
Nesta dimensão religiosa, os sinos não batem as horas em função de uma contabilização do tempo e de uma sua fruição em chave económica; o toque dos sinos não governa o tempo do exterior, mas faz-se expressão de um tempo interiorizado em que a própria vida se torna “templum” para o divino.
“Et concepit de Spiritu Sancto”, e concebeu do Espírito Santo. Podemos quase seguir o diálogo à flor dos lábios entre as duas personagens, num latim provavelmente algo estropiado; talvez seja a mulher, com aquela postura tão intimamente absorta no gesto da oração, a guiar a oração dialogada; mas também é certo que o jovem homem que está ao seu lado, direito e quase ascético na sua magreza, não lhe é menos intensamente participante.
As batatas, fruto da terra e do trabalho do homem, estão ali, na cesta que se encontra aos pés dos dois agricultores, no meio da composição; e a oração do Ângelus, por ela própria um agradecimento pelo mistério da incarnação – “et Verbum caro factum est/ et habitavit in nobis”, e o Verbo fez-se carne/ e habitou entre nós –, acolhe em si um obrigado que abraça a vida inteira em toda a sua tremenda simplicidade e nobreza; obrigado pelas batatas no cesto, pelos torrões repletos de terra, pelo dia que passou, pelo dia que virá. Ao alto, no céu, os pássaros voam em bando. Tudo é graça. Também a fadiga, também a dor.
Poderemos ceder à tentação de liquidar o quadro de Millet como testemunha de uma visão idílica e idealizada de uma civilização camponesa, baseada em ritmos próximos da natureza, que desde há décadas deixou de existir. Mas os agricultores de Millet são tudo menos idealizações: basta olhar para um quadro como “Os respigadores” para dar-se conta disto. Millet não idealiza, testemunha.
Permaneço em silêncio diante deste quadro, que me toca a alma até na plana bidimensionalidade de uma reprodução virtual. O que falta, pergunto-me, à nossa pós-modernidade, para conseguir viver a qualidade tão primorosamente religiosa do tempo exprimida por “O Ângelus” de Millet?
Repenso nas reflexões sobre as quais conduzo os pensamentos nestes últimos tempos. A dificuldade de dizer obrigado parece-me um dos sintomas mais inquietantes do nosso mal de viver.
Deixámos de educar, ou educamos mal, os nossos filhos a pronunciar a palavra “obrigado” nas normais ocasiões do dia a dia, como se pudéssemos reduzir um «obrigado» a puro formalismo, a boa educação postiça, e por isso a eliminar, a remover. Deixamos que nos nossos filhos germine e radique o pensamento de que tudo lhes é devido.
E enquanto os habituamos à pretensão diária e constante deste “tudo lhes é devido”, temos dificuldade em acompanhá-los na viagem, entusiasmante, árdua, por vezes dolorosa, que os conduzirá a descobrir que, na realidade, nada lhes é devido, mas tudo lhes é dado.
É preciso coragem para dizer obrigado. Coragem, e ardor e afeto, e humildade para que cada pessoa não se sinta o termo último e primeiro da sua existência. A coragem de ser reconhecido.
A palavra “obrigado” nasce de um hábito de reconhecimento, e o exercício da palavra “obrigado” constrói e dá forma àquele hábito. Não há graça sem reconhecimento, não há reconhecimento sem graça.
Pergunto-me se também a desafetação manifesta em relação àquele dar graças que é a Eucaristia não faz parte, de alguma maneira, desta perda do sentido do reconhecimento que caracteriza a humanidade pós-moderna: a autorreferencialidade que nos qualifica é em si a negação da capacidade de reconhecer – aquilo que o outro/Outro é para mim, aquilo que o outro/Outro faz por mim – que está na base de uma disposição de alma reconhecida.
E, talvez, antes de nos perguntarmos porque é que os cristãos deixaram de ir à missa e o que devemos fazer para os voltar a levar aos bancos das nossas igrejas, devamos colocar seriamente em debate a questão da “eucharizein” como qualidade do ser que unicamente pode encontrar linfa no gesto cristão da Eucaristia.
"O Ângelus" | Jean-François Millet | C. 1857-59 | Musée d'Orsay, Pris, França