As palavras que titulam este texto são do Papa Francisco, presentes no § 261 da Carta Encíclica Fratelli Tutti. Para que se perceba o que o Papa manifesta com tal expressão basta ler o que a precede no mesmo parágrafo. Por exemplo: «Toda a guerra deixa o mundo pior do que o encontrou». Por vezes, ouve-se e lê-se que a guerra promove o progresso, que se devem às guerras algumas das melhores invenções ou alguns dos melhores desenvolvimentos de invenções da história da humanidade.
Tal é verificável em alguns casos. Todavia, só é válido para os que sobreviveram à guerra, o que, imediatamente, divide a humanidade em duas categorias analíticas incompatíveis: os que sobreviveram e beneficiaram com os progressos que a guerra aportou e os que simplesmente foram aniquilados pela guerra, não podendo beneficiar de coisa alguma para lá da mundana aniquilação.
Deixa-se, ainda assim, de lado os que não foram aniquilados, mas sofreram danos que nada, nenhum progresso pode compensar. Estes que postos à parte estão, como é evidente, do lado analítico dos que perderam com a guerra.
Ora o que esta divisão também opera, mecanicamente, é uma outra separação qualitativa entre aquelas duas categorias analíticas: os que foram aniquilados ou sofreram perdas irreparáveis são tratados como entidades realmente parasitadas pela guerra – por quem a lançou e operou – em benefício dos que sobreviveram.
Poder-se-á dizer que não foi essa a intenção. Pode. Todavia, não só as intenções são impassíveis de escrutínio objetivo como, neste caso, de nada adiantam, pois o resultado, do ponto de vista da bondade progressivista da guerra, é que uns beneficiaram de e com o sacrifício dos outros, sem que estes, até porque foram irremediavelmente afetados, beneficiassem algo com tal. Trata-se de uma relação de parasitismo, voluntário ou não, dos que ganham com a guerra sobre os que com ela apenas perdem. Mesmo no que diz respeito ao aparente benefício da guerra, que alguns defendem, esta revela-se como ação parasita.
No entanto, alguns podem sempre dizer que o sacrifício dos aniquilados e dos prejudicados de forma irremediável valeu porque o ‘mundo ficou melhor’, tendo o seu sacrifício valido por tal. A resposta a este argumento é a mesma: terá ficado o mundo eventualmente melhor para quem não foi aniquilado ou irremediavelmente prejudicado; para os outros, apenas podridão, transformação em moléculas inorgânicas ou perdas irreparáveis em vida.
Argumentar-se-á que o mundo em que hoje se vive em muito beneficiou com as várias guerras havidas, que tanto progresso trouxeram. Às pessoas que assim pensam, talvez faça mudar de ideias uma ida a um teatro de operações de guerra, em que se submetam a um bombardeamento, atravessem alguns campos de minas, ataquem uma trincheira de onde dez metralhadoras tipo MG 42 tentam impedi-los de a alcançar. Se sobreviverem sem danos irreparáveis, então, será interessante saber se mantêm a mesma ‘opinião’. Se morrerem, então, sofreram o mesmo ligeiro pormenor que impede que os mortos na guerra possam definitivamente apreciar os benefícios da mesma.
Se se quiser continuar a pensar que a guerra é boa, que aporta bem à humanidade, então, que se faça tal sempre em condições de batalha extrema, para que tal parecer possa carregar o sentido de alguém que sabe do que está a falar. Assim será credível; sem tal, não passa da especulação de um imbecil que fala do que não sabe.
Justifica, ainda, a sua tese o Papa: «A guerra é um fracasso da política e da Humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças do mal.». Dificilmente se encontram palavras mais duras sobre a guerra e a sua relação connosco. É que quem faz a política no mundo, do mundo é cada um de nós. Não se refere o termo «política» apenas aos tiranos e oligarcas que, manifesta e evidentemente, empurram o mundo para a guerra, assim sendo as principais forças do mal que através deles se manifestam, precisamente, na guerra.
«Políticos» somos todos nós e não há ‘mundo político’, ‘política’, sem todos nós: se houver dúvida é eliminar a humanidade, pessoa a pessoa, e, depois, tentar verificar ‘onde está’ o mundo político. Por outro lado, «política» e «Humanidade», em ato, são indiscerníveis: a Humanidade, integrada, cada vez mais integrada numa imensidade de ações de relação, é o que é enquanto ato de relação política. Ora, para tal Humanidade, o meu, o teu ato é fundamental.
A «rendição vergonhosa», que é «uma derrota perante as forças do mal» é minha e só minha, o que significa que é de todos os que, como eu, assim se rendem. Não é pensável um Hitler sem que houvesse colaboração suficiente, por parte de pessoas em número suficiente, não apenas Alemães, para que o monstro chegasse ao que chegou e fizesse o que fez; milhões colaboraram, em países vários. Tal aplica-se a todos os oligarcas e tiranos de sempre: sós, nada são; a sua maldade é servida e apoiada pela maldade de muitos mais, quiçá, de todos nós, por «pensamentos, palavras, atos e [sobretudo] omissões».
O falhanço da ação, pessoal e política geral, universal, que conduz à guerra é mesmo um falhanço da humanidade. Sempre. Não é agradável ler-se isto. Todavia, a guerra, em seu ato, é bem mais desagradável.
Prossegue, no mesmo parágrafo, o Papa, afirmando: «Não fiquemos em discussões teóricas [que é o que aqui se faz, e é necessário, também, mas insuficiente], tomemos contacto com as feridas, toquemos a carne de quem paga os danos.». Este é, evidentemente, o ponto fundamental, o ponto cristão por essência e substância, necessárias, da radicalidade incarnada da experiência cristã, da experiência de Cristo, esse que, precisamente, tocava a carne dos que amava, isto é, de todos.
Este Papa, que é tudo menos um fraco, tudo menos um cobarde, tudo menos um homem superficial, põe, assim, o dedo na ferida, fazendo justiça àquela que talvez seja a frase mais cruel proferida em campo de batalha em que, de forma carnalmente exata, se faz a cruel ligação entre a mera teoria dos que sobre a guerra se limitam a falar e os que saboreiam na sua carne os malefícios práticos e pragmáticos da mesma; a frase é «here, where the metal meets the flesh», «aqui, onde o metal encontra a carne».
Este encontro entre o metal e a carne não é um diplomático «tomar teórico chá» sobre a guerra que os outros no terreno fazem e sofrem, mas o encontro físico entre o metal que retalha a carne e a destrói e a carne, assim destruída; é, deste modo, o símbolo da concretude do ato de guerra, no que tem de necessariamente destruidor.
Sem tocar esta carne passível de dilaceração, e dilacerada, pelo ato de guerra, nunca se perceberá como a guerra é o ápice da humana maldade. Somos convidados a ser o estúpido Tomé que, nas chagas do atingido pela guerra, toca as chagas de Cristo em cada pessoa que a guerra, antes, tocou.
Como Tomé, talvez passemos de uma estupidez altaneira a uma inteligência convertida à evidência do mal, primeiro passo para uma conversão à necessidade insubstituível do insubstituível bem. Bem nosso de cada dia, que de mim, dos ‘mins’ todos depende.
Prossegue o pacífico, mas diamantino Francisco, Papa: «Voltemos o olhar para tantos civis massacrados como “danos colaterais”. Interroguemos as vítimas. Prestemos atenção aos prófugos, àqueles que sofreram as radiações atómicas ou os ataques químicos, às mulheres que perderam os filhos, às crianças mutiladas ou privadas da sua infância.».
Esta palavras, que são paradigmáticas sobre os atos e os grupos que sofrem o mal da guerra, não precisam de comentário, pois são evidentíssimas. Apenas se pergunta: como não perceber que todo este mal não tem, naqueles sujeitos-objetos-do-mal da guerra, remissão possível? O absoluto do mal é impassível de aniquilação.
Não se trata de remir os que fizeram o mal, mas de remir o mal feito, absoluto que não tem possibilidade alguma de ser aniquilado, nunca voltando o bem roubado àqueles a quem a violência roubou tal bem. É o que o Escritor Sagrado tão bem vê, no Livro de Job, ao não poder pôr em novo bem o mal feito aos filhos de Job, vítimas da bestialidade do Satã: tudo parece retornar em bem ao sábio e fiel Job. Todavia, o absoluto do mal feito permanece eternamente e os filhos, assassinados pela maldade de Satã, assassinados ficam; sem o futuro que era deles.
Danos colaterais da maldade. Não há expressão mais cobarde do que esta de «danos colaterais». Quem escreve estas linhas foi militar e não pode deixar de militarmente desprezar tal expressão, expressão da cobardia dos que não são capazes de assumir o mal que fazem, independentemente do modo como foi feito ou das finalidades em jogo. ‘É colateral, não tem importância.’. Colateralizem-se, então, do mesmo modo, os que assim pensam: também não tem tal, para eles, importância?
E, como não poderia deixar de ser, num texto tão profundo sobre o ápice do mal que é a guerra, o Papa toca na questão da violência, matriz universal da guerra, seu nome próprio: «Consideremos a verdade destas vítimas da violência, olhemos a realidade com os seus olhos e escutemos as suas histórias com o coração aberto.».
Não há distinção possível, quer em teoria quer em termos prático-pragmáticos entre guerra e violência: todo ao ato de violência – que é o ato padrão da guerra – é um ato de guerra. Quando despeço um trabalhador apenas porque quero transformar o seu ordenado em meu lucro, quando abuso sexualmente de um outro ser humano, quando mato à fome um ser humano ou muitos, por incompetência ou por ambição, quando invejo a mulher ou o homem dos outros, quando cobiço os bens de um outro país, quando odeio o outro, quando não trabalho com a bondade exigida, quando faço algo disto, isto tudo, ou algo que isto tudo padroniza, estou a praticar violência, logo, estou a praticar um ato de guerra, seja ‘eu’ um país, seu eu eu próprio, na minha idiótica carne.
Profundas palavras, estas, as do Papa, celebradas, para logo serem votadas ao esquecimento, num mundo em que o Satã de Job é quem efetivamente manda. E muito se gosta que assim seja, pois nele se revê grande parte da violenta humanidade.
Termina-se da melhor forma, invocando as palavras santas com que Francisco, o Papa, termina este parágrafo: «Assim, poderemos reconhecer o abismo do mal no coração da guerra, e não nos turvará o facto de nos tratarem como ingénuos porque escolhemos a paz.».
Ingénuo este pensar, depois de tudo o que Francisco afirmou? Não, a santidade das palavras não é ingénua, é inocente, da inocência dos que, mesmo não sendo perfeitos em paz, como Cristo, oferecem, como os soldados que combateram o mal sem violência, o seu sangue e o seu espírito ao serviço da paz, que, em cada seu momento cairótico, em cada ato que a põe, é indiscernível do bem de Deus presente no mundo, do próprio Deus incarnado em cada ato de bem.
A Paz é Deus.
E nós não somos ingénuos: desejamos a paz, desejamos Deus.