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Leitura: "O abandono de Deus - Quando a crença e a descrença se abraçam"

Leitura: "O abandono de Deus - Quando a crença e a descrença se abraçam"

Imagem Capa | D.R.

Anselm Grün e Tomáš Halík, «dois proeminentes mestres-escritores espirituais contemporâneos», revelam nesta obra, recentemente lançada pela Paulinas Editora e com prefácio de Carlos Fiolhais, «que a fé e a incredulidade, como a dúvida e o questionamento, são facetas da mesma realidade e são parte da própria imagem de Deus».

«Pensar, a respeito da crença em Deus ou da sua falta, não pode deixar de ser um processo multifacetado e de enorme complexidade, onde o paradoxo acaba por ser uma solução inescapável», sustenta o professor de Física da Universidade de Coimbra.

Para Halík, continua o investigador, «a crença enriquece-se com a descrença, assim como a descrença se enriquece com a crença. Para ele, uma pessoa poderá ser, em graus variáveis, de indivíduo para indivíduo e no mesmo indivíduo com o decurso do tempo, simultaneamente crente e descrente».

Halík, que Carlos Fiolhais considera o autor com «maior capacidade para se dirigir, usando uma linguagem compreensível, a uma audiência vasta e variada, incluindo tanto crentes como não crentes», defende que «o combate entre crença e descrença "não é uma luta entre duas equipas claramente separadas com camisolas de cores diferentes, mas, antes e frequentemente, um diálogo ou um conflito no íntimo de um coração ou espírito humano"».

Por seu lado, «Grün conclui muito justamente que, para crentes e não-crentes, existem espaços de trabalho conjunto, espaços de convivialidade e construção de futuro: a espiritualidade decerto, mas também a proteção do ambiente (em defesa da casa comum que é o Planeta), a construção da paz, a procura da justiça e da solidariedade, e, finalmente, o gosto pela cultura e pela beleza».

Este volume «indaga os motivos e as atitudes da descrença atual. Expõe, não sem motivo, os seus movimentos de pensamento entre os polos do diagnóstico "Deus morreu", de Friedrich Nietzsche, e o discurso sensibilizador sobre o Deus desconhecido, que Paulo pronunciou no Areópago de Atenas», tensão que continua a ser «fecunda e frutuosa», sustenta Winfried Nonhoff, que reuniu Grün e Halík.

O jornalista especializado em temas religiosos sublinha que o livro vive igualmente «da experiência da beleza terna e solícita da fé, que arriba à linguagem. A recuperação da fé e tímida confiança deve muito às francas experiências da ausência de Deus provindas da tradição mística».



As consequências derivadas do afastamento de Deus vemo-las, hoje, também no retorno dos radicais da direita. Estes tornaram-se fortes justamente na Alemanha de Leste, e preenchem o vazio nascido nos corações dos homens, em virtude do arredamento de Deus. Quem se separa de Deus – vejo isso de forma muito clara – arrisca-se a colocar no lugar de Deus um ídolo: este pode ser o êxito, a nação, a luta contra tudo o que é estrangeiro, o fascínio da violência, pelo que já não é necessário aderir a nenhuma lei



Quando a fé e a descrença se abraçam - Conversa conclusiva
Anselm Grün, Tomáš Halík, Winfried Nonhoff
In "O abandono de Deus - Quando a crença e a descrença se abraçam"

 

Winfried Nonhoff [W.N.] – Deus morreu: esta frase é, hoje, para muitos, um dado adquirido. Que experiências da atualidade se encontram por detrás de semelhante diagnóstico? Como entraríeis em diálogo com pessoas que se reclamam e tentam reclamar desta frase?

Anselm Grün [A.G.] – Deus dificilmente desempenha um papel na vida pública. E o mesmo ocorre na vida privada de muitos seres humanos. Quanto a simples prazos, não há tempo algum para se ocupar de Deus. A quem diz que Deus está morto para si, interrogá-lo-ia sobre que deus morreu. Torná-lo-ia inquieto e, em seguida, perguntar-lhe-ia onde é que ele enxerga o sentido da sua vida, e o que é que o sustenta na sua existência. Como é de esperar, ele não iria deter-se em Deus. Mas deveria, ao menos, refletir sobre o que é que visa e pretende com a sua vida, e que rasto pretende deixar e estampar neste mundo. Muitas vezes, a frase «Deus morreu» é, para mim, apenas uma lengalenga desprovida de pensamento e conteúdo. Por isso, a tal pessoa, eu não «demonstraria» Deus, mas inquietá-la-ia um pouco de maneira a provocar uma fenda em que, porventura, Deus possa entrar.

Tomáš Halík [T.H.] – Também eu perguntaria: que Deus morreu? Com efeito, trata-se, na maioria dos casos, da perda de credibilidade de uma determinada conceção de Deus. As representações humanas de Deus nascem e morrem na história e na vida de seres humanos individuais. Talvez se possa dizer que cada representação religiosa humana é, de certo modo, uma resposta à autorrevelação de Deus, não apenas na Bíblia, mas ainda nos vestígios de Deus na natureza, na história, na cultura. Todas estas conceções humanas têm, como era de supor, algo de humano em si, portanto algo condicionado pela época e pela experiência pessoal dos homens. Amiúde, refletem também as fantasias, os desejos e as angústias humanas. Apesar de tudo, não se podem reduzir apenas a projeções das angústias e dos desejos humanos. Grandes mudanças culturais e experiências históricas como o início da modernidade, na época de Nietzsche e, depois, as experiências das Guerras Mundiais e do Holocausto, desalojaram as conceções de Deus até agora existentes, mas trouxeram também consigo, amiúde, novas experiências religiosas. Estas, por vezes, expressam-se numa linguagem não religiosa. Tal acontece, com frequência, nos dias de hoje.



Muitos que se dizem sem Deus aderem aos direitos humanos. Argumentam de forma puramente racional e são imunes ao fundamentalismo religioso e às ideologias religiosas. O ateísmo sincero e honesto é tolerante, porque olha e respeita a fé e a incredulidade como possíveis



W.N. – Existirá, mais além da morte de Deus, sub-reptícia e, por assim dizer, anónima, alguma tragédia em virtude do ateísmo consciente? Que consequências destruidoras pode ter o afastamento de Deus?

T.H. – O lugar de Deus no indivíduo, ou ainda em toda uma cultura, não fica vazio. No trono divino coloca-se, então, com frequência, outra coisa ou algo de diferente que, depois, assume para os homens o papel de Deus. Absolutiza-se assim algo de relativo, chega-se à idolatria, que a Bíblia caracteriza como o pecado mais grave. Recordemos a veneração de ditadores e de regimes ditatoriais na época mais recente. Também hoje se verifica o que uma vez Chesterton afirmou, a saber, que os homens que deixam de acreditar em Deus, em seguida e amiúde, acreditam seja no que for.

A.G. – As consequências derivadas do afastamento de Deus vemo-las, hoje, também no retorno dos radicais da direita. Estes tornaram-se fortes justamente na Alemanha de Leste, e preenchem o vazio nascido nos corações dos homens, em virtude do arredamento de Deus. Quem se separa de Deus – vejo isso de forma muito clara – arrisca-se a colocar no lugar de Deus um ídolo: este pode ser o êxito, a nação, a luta contra tudo o que é estrangeiro, o fascínio da violência, pelo que já não é necessário aderir a nenhuma lei.

 

W.N. – E vice-versa: conheceis igualmente a vantagem humana do ateísmo?

T.H. – Sem dúvida. Se por ateísmo se pretende indicar o abandono de uma certa variedade do teísmo, portanto, de representações religiosas demasiado ingénuas, então pode dizer-se que semelhante ateísmo purifica o lugar e pode tornar-se numa fase de preparação para um tipo mais amadurecido de fé. Nesse sentido, pensadores como Hegel ou Ricoeur viram o ateísmo como uma fase de transição na história da religião ou na história humana da fé. Um certo tipo de perda da fé pode, em minha opinião, ver-se perfeitamente como participação nas trevas da Sexta-Feira Santa. Mas importa que a Sexta-Feira Santa não tenha, para o homem, a última palavra, e que através da crise ateia se possa ir além do ateísmo.

A.G. – Constato também um proveito ou aumento possível de liberdade, de razão e de empenhamento. Muitos que se dizem sem Deus aderem aos direitos humanos. Argumentam de forma puramente racional e são imunes ao fundamentalismo religioso e às ideologias religiosas. O ateísmo sincero e honesto é tolerante, porque olha e respeita a fé e a incredulidade como possíveis.



Uma espiritualidade profunda leva à descoberta de Deus como a fundura da realidade e ultrapassa a conceção de Deus como um objeto entre objetos, como algo que existe em pleno mundo; impele e estira o nosso pensamento rumo ao Ser. Em vez de uma conceção estática de Deus, desponta uma conceção dinâmica: Deus não «é», Deus «acontece»



W.N. – Em Nietzsche pode também ler-se que um deus levou Zaratustra a converter-se à sua impiedade. Não poderá haver igualmente uma motivação espiritual profunda para a negação de Deus? E de que Deus, então, nos livramos?

A.G. – Segundo São João da Cruz, Deus é quem nos lança na noite escura da alma e, nela, Ele desvanece-se diante de nós. A motivação espiritual para a negação de Deus pode ser um faro ou intuição da alteridade. Quem nega Deus afasta-se e recusa as imagens de Deus demasiado concretas. Aos primeiros cristãos censurou-se o ateísmo, porque eles falavam de Deus de modo diferente dos que honravam os seus deuses tradicionais, dos que faziam para si imagens muito concretas. Para os cristãos, Deus está para lá de todas as imagens. Puseram de lado todo o mundo religioso da Antiguidade e referiam-se ao Deus que não pode ser representado numa imagem. Quando Jesus pregou, pela primeira vez, numa sinagoga, bradou-lhe um homem piedoso em voz alta. Marcos chama-lhe um demónio, um espírito perturbado (Mc 1,23s). O homem levantou-se contra o discurso de Jesus acerca de Deus. O Deus de Jesus abalou a imagem que ele se fizera de Deus, para se colocar acima dos outros ou para que as coisas lhe corressem de feição na sua vida. Quem se livra do Deus que serve para confirmar a sua vida pessoal está aberto à mensagem de Jesus acerca de um Deus totalmente outro.

T.H. – No nosso tempo, Dietrich Bonhoeffer, em consonância com o espírito do místico Mestre Eckhart, afirmou: não existe um Deus que tenha existência. Uma espiritualidade profunda leva à descoberta de Deus como a fundura da realidade e ultrapassa a conceção de Deus como um objeto entre objetos, como algo que existe em pleno mundo; impele e estira o nosso pensamento rumo ao Ser. Em vez de uma conceção estática de Deus, desponta uma conceção dinâmica: Deus não «é», Deus «acontece». Aliás, a escolástica medieval já afirmava que Deus é «ato puro» (actus purus).

W.N. – O ateísmo refere-se, pois, sempre a um determinado teísmo. Porventura, não ordena a fé no Deus bíblico uma espécie de ateísmo estrutural? Que é que distingue a fé em Deus biblicamente motivada da adesão a determinadas conceções teístas? Insistamos, porém, em perguntar ainda: não deveria também ter lugar, hoje, uma superação das representações bíblicas?

A.G. – O Deus da Bíblia recusa-se a revelar a sua figura aos israelitas. Diz apenas: «Eu sou Aquele que sou» (Ex 3,14). Para mim, isto significa: se eu estiver aí inteiramente presente, totalmente, no momento, então pressinto quem é Deus. Deus é o que está presente, aquele que me torna capaz de estar presente. E vice-versa: quando estou presente, estou na presença de Deus. Os tradutores gregos verteram assim esta passagem: «Eu sou o que é.» Tomás de Aquino, em ligação com a filosofia de Aristóteles, tradu-la assim: «Eu sou o Ser.» Deus é puro ser (esse) em contraposição ao ente (ens). Naturalmente, há aqui uma tensão entre o Deus pessoal do Antigo Testamento, que promete a Moisés estar sempre com ele e com os homens, e o conceito filosófico de Deus, mas que foi assumido e assimilado pela teologia: Deus é o Ser que confere o ser a todos os entes. Com este conceito de Deus até os ateus podem fazer alguma coisa. O Antigo Testamento fala de Deus de uma forma muito humana. Ele está irado e é ciumento, mas também é bom e misericordioso. Tudo propriedades humanas. Temos, amiúde, a impressão de que Deus se reveste da imagem de um ser humano. Estas conceções de Deus devem hoje ser ultrapassadas. Deus é o puro Ser. E se em certos momentos fazemos a experiência do ser puro, então é uma experiência de Deus. No entanto, ao mesmo tempo, nós, cristãos, queremos que este puro ser se poste diante de nós como Tu.



Naturalmente, Deus está também presente na vida dos ateus. Quando as pessoas, hoje, perguntam se temos um Deus comum com os muçulmanos, respondo: não só com os muçulmanos, mas ainda com os ateus, as borboletas e as montanhas. Se Deus fosse tão-só o «nosso» Deus, seria um ídolo tribal com uma competência limitada, e não o Criador do Céu e da Terra, o Senhor do mundo inteiro, do mundo visível e invisível



T.H. – É essencial à fé, no sentido bíblico, não ser apenas um conjunto de representações, um testemunho religioso, mas uma orientação de vida, uma relação viva com o Deus vivo, uma resposta ao apelo, e um abrir-se e fazer-se ao caminho: «Por isso, Abraão escutou o Senhor e pôs-se a caminho, sem saber para onde ia.» Por outro lado, a Bíblia foi escrita em linguagem huma na, expressa-se em imagens e contém representações histórica e culturalmente condicionadas, que nós – como há instantes resumia frei Anselm – não podemos aceitar de modo acrítico, unidimensional e ingénuo. Devemos interpretá-las e traduzi-las sempre de novo. A Bíblia pode tomar-se ou à letra, ou a sério.

 

W.N. – Suponhamos que Deus existe, que Ele é a vida, e que atua nela: estará então Ele também presente e atuante nos ateus? Como poderia ecoar esta mensagem de Deus?

T.H. – Naturalmente, Deus está também presente na vida dos ateus. Quando as pessoas, hoje, perguntam se temos um Deus comum com os muçulmanos, respondo: não só com os muçulmanos, mas ainda com os ateus, as borboletas e as montanhas. Se Deus fosse tão-só o «nosso» Deus, seria um ídolo tribal com uma competência limitada, e não o Criador do Céu e da Terra, o Senhor do mundo inteiro, do mundo visível e invisível. Deus surpreende-nos incessantemente através dos outros. Diz Ele: «Somos mais do que tu podes pensar; Sou aquele que Sou.»

A.G. – Vejo isso com muita clareza e exatidão: Deus está, sem dúvida, presente em cada ser humano, também no ateu. Deus habita em cada pessoa, no fundo da sua alma. Mas muitos estão separados no mais profundo de si e não se apercebem de Deus, que neles habita. A mensagem de Deus, vista através dos olhos de Jesus, ressoa assim para cada ser humano: «Sê inteiramente tu próprio, sê este ser humano, único e singular, tal como te criei; se fores totalmente tu mesmo, estás em contacto comigo; em última análise, escutas e segues o meu chamamento.»



Para os primeiros cristãos foi uma importante experiência de Deus que judeus e gregos, homens e mulheres, ricos e pobres, piedosos e pecadores formassem entre si uma comunidade. Cada qual deve percorrer sozinho o seu caminho espiritual. Contudo, precisamos igualmente do apoio de uma comunidade, mesmo se esta, por vezes, é mesquinha, e esbarramos com ela. Por isso, incentivo as pessoas a prosseguirem sós no seu caminho espiritual, mas a estarem, ao mesmo tempo, abertas às raízes que as suportam



W.N. – O afastamento de Deus é, hoje, em não poucos seres humanos, motivado também pela sua visão da Igreja. Como encarais tais situações e conflitos nas suas biografias? É possível acreditar cristãmente em Deus, sem pertencer à Igreja?

A.G. – Consigo perceber, se os seres humanos, na sua demanda espiritual, estão desiludidos com a Igreja, por não encontrarem nela o que os move e agita no seu íntimo. Mas, depois, tento suscitar a compreensão e a perceção de que todos nós somos apenas pessoas. Para os primeiros cristãos foi uma importante experiência de Deus que judeus e gregos, homens e mulheres, ricos e pobres, piedosos e pecadores formassem entre si uma comunidade. Cada qual deve percorrer sozinho o seu caminho espiritual. Contudo, precisamos igualmente do apoio de uma comunidade, mesmo se esta, por vezes, é mesquinha, e esbarramos com ela. Por isso, incentivo as pessoas a prosseguirem sós no seu caminho espiritual, mas a estarem, ao mesmo tempo, abertas às raízes que as suportam. Se ganharem consciência das suas raízes, também se abrirão novamente à comunidade da Igreja, na qual todas, por último, radicam.

T.H. – Gostaria de aprofundar estas ideias: os cristãos já há muito que sabiam que não existe apenas a Igreja visível, mas também uma Igreja «invisível». Agostinho ensinava que muitos dos que julgam estar no seio da Igreja se encontram realmente fora dela, e também vice-versa. O teólogo russo Paul Evdokimov dizia que sabemos onde está a Igreja, mas não sabemos onde ela não está. As fronteiras reais da Igreja só Deus as conhece; por isso, não é muito relevante especular sobre quem está realmente fora da Igreja, nesse sentido místico profundo. Hoje, existe no Ocidente uma «Igreja», bastante difundida, de todos os que romperam com a práxis e a doutrina da Igreja contemporânea; e, por isso, ou dela saíram formalmente ou ainda a ela pertencem, embora de uma forma muito insatisfeita ou passiva. Apesar de tudo, ainda continuam a crer – à sua maneira. Tais pessoas designam-se a si, por vezes, como crentes não religiosos, mas espirituais. Esta «Igreja dos buscadores» e dos cristãos anteriormente praticantes, no Ocidente, talvez seja muito maior do que o pequeno rebanho dos católicos ou protestantes praticantes e disciplinados. Para o futuro da Igreja, é decisivo se ela consegue entrar novamente em diálogo com estas pessoas. Se voltar as costas aos que dela se apartaram, tornar-se-á uma seita. Mas não se trata de atrair, a todo o custo, aos limites institucionais e intelectuais da forma atual da Igreja. Trata-se, isso sim, de enriquecer o tesouro da fé em torno da experiência destes filhos e filhas perdidos, porque Deus também neles esteve e está em ação, justamente na sua revolta.



Há pessoas que, nas camadas profundas da sua alma, estão abertas a Deus, no inconsciente, no coração, mesmo se, por qualquer razão, na sua vida racional (consciência) dominam os argumentos contra a fé. Há, além disso, aqueles que têm a sua consciência e a sua boca cheias de Deus, que dizem ininterruptamente «Senhor! Senhor!», mas cujo coração está longe dele



W.N. – Nas vossas biografias, desempenha um papel essencial o encontro e o confronto com C. G. Jung, pai da psicologia das profundidades. Até que ponto as descobertas desta psicologia podem fomentar uma visão libertadora acerca da fé, do ateísmo e da religião?

A.G. – A psicologia das profundidades de C. G. Jung ajudou-me a confiar nos símbolos cristãos. Jung está convencido de que em cada alma estão disponíveis imagens arquetípicas. E essas imagens estão abertas a Deus. Jung fala da sabedoria da alma, que sabe da existência de Deus. Faz, pois, sentido confiar psicologicamente na sabedoria da alma. Pode dizer-se, certamente, que isso é apenas um truque da psique para, de algum modo, se viver com sentido neste mundo. A psicologia das profundidades não pode demonstrar Deus, mas a imagem de Deus está profundamente gravada na nossa psique. Como homem racional, posso confiar que a estas imagens corresponde uma realidade, embora não consiga apreender e descrever esta realidade. Jung refere ainda que há, de vez em quando, fases da morte e do desvanecimento de Deus. Depois, ocorre outra vez uma nova busca de Deus.

T.H. – Para mim, a descoberta da dimensão profunda da psique humana foi, ademais, também a resposta à questão de saber porque é que alguns «descrentes» me são mais chegados do que certos «crentes». Há pessoas que, nas camadas profundas da sua alma, estão abertas a Deus, no inconsciente, no coração, mesmo se, por qualquer razão, na sua vida racional (consciência) dominam os argumentos contra a fé. Há, além disso, aqueles que têm a sua consciência e a sua boca cheias de Deus, que dizem ininterruptamente «Senhor! Senhor!», mas cujo coração está longe dele. Além disso, a teoria de Jung da «manhã» e da «tarde» da vida inspirou-me numa determinada interpretação da história do Cristianismo – disso tratará, revele-se já aqui, o meu livro "Tarde do Cristianismo", no qual estou a trabalhar.



A dúvida é um aguilhão que, uma e outra vez, purifica a minha fé de projeções e representações peculiares. Se sofro em mim e na minha vida, se me oprimem dores e me invade a escuridão, então a fé não é um truque barato para não tomar a sério tudo isso. Mas é como que uma fissura, na qual se pode infiltrar, desde o alto, esperança na minha dúvida, na minha obscuridade. A fé não é uma segurança nas trevas, mas é, apesar de tudo, uma esperança na qual me posso firmar



W.N. – Então, a fé não impede nem exclui definitivamente a dúvida, a escuridão e as crises existenciais. Conheceis bem esta dimensão. Como e porque é que, na nossa vida, se congregam e confluem a dúvida e a fé, o ceticismo e a confiança? Como se mantém a esperança face à dor? Como é que a fé confia em plena escuridão?

T.H. – Quanto mais o ser humano se submerge no mistério, que chamamos Deus, tanto mais profundamente ele compreende as palavras do Salmo: «Em seu redor há nuvens e trevas» (Sl 97,2). Uma fé amadurecida deve suscitar a paciência para aguentar questões em aberto e o aguilhão da dúvida. Felizmente, a Bíblia tem muitos textos – nos Salmos, em Job ou no Eclesiastes (Qohélet) – que fornecem de imediato as palavras às nossas orações, quando a nossa garganta e o nosso coração estão secos. O sol está por detrás das nuvens ou abaixo do horizonte e concilia-se exatamente com a luz das certezas religiosas.

A.G. – Por isso se conjugam a fé e a dúvida. A dúvida preserva a fé de repousar num sistema de crença; a dúvida obriga a fé a novas formulações: que significa realmente crer em Deus e na vida eterna? Que pretendo eu dizer, quando falo de Deus? A dúvida é um aguilhão que, uma e outra vez, purifica a minha fé de projeções e representações peculiares. Se sofro em mim e na minha vida, se me oprimem dores e me invade a escuridão, então a fé não é um truque barato para não tomar a sério tudo isso. Mas é como que uma fissura, na qual se pode infiltrar, desde o alto, esperança na minha dúvida, na minha obscuridade. A fé não é uma segurança nas trevas, mas é, apesar de tudo, uma esperança na qual me posso firmar. A Carta aos Hebreus define-a assim: «A fé é a garantia das coisas que se esperam» (Heb 11,1). Por isso a fé, em plena obscuridade, proporciona um apoio; logo a minha esperança.



A fé deve hoje ser uma provocação e incitar a uma reflexão mais profunda e à coragem de levantar questões difíceis. O próprio Deus aproxima-se, amiúde, de nós, mais sob a forma de uma pergunta do que de uma resposta apaziguadora. Uma das vantagens paradoxais da época atual, dramática e trágica em muitos aspetos, consiste em que ela traz consigo abalos, frente aos quais só as pessoas cínicas conseguem dormir descansadas e não se interrogar acerca do sentido



W.N. – Não será, então, um feliz acaso encontrar um ateu realmente questionador e também lutador? Não haverá, antes, bem visível, na nossa sociedade uma atitude de indiferença, de desinteresse farto e saciado? Como poderá ser bem-sucedido um grito de alarme, uma provocação sadia? Poderá a fé em Deus soletrar-se como uma provocação vital humanamente necessária?

T.H. – Sim. O encontro com alguém que luta apaixonadamente com Deus pode ser motivo de alegria, porque tais pessoas estão habitualmente mais perto de Deus do que os crentes e os ateus convencionais. A Bíblia ensina-nos que Deus ama os que com Ele lutam. Em face do «ódio-amor» de homens como, por exemplo, Nietzsche, não deveríamos desanimar do latido de ódio, porque cães que ladram protegem e guardam, amiúde, um tesouro de amor, embora de um amor ferido. Não consigo encontrar algo de comparável no dogmatismo arrogante do novo ateísmo militante, da versão, aliás nada criativa, do ateísmo cientificista, que herdou da religião dos bons velhos tempos (good old time religion) a ingenuidade e a crueza de se exibir como monopolista da verdade. Acho igualmente difícil entabular um diálogo com os «apateístas», com pessoas que já nem sequer se dão ao luxo de se enfadar, por rejeitá-lo. Sim, a fé deve hoje ser uma provocação e incitar a uma reflexão mais profunda e à coragem de levantar questões difíceis. O próprio Deus aproxima-se, amiúde, de nós, mais sob a forma de uma pergunta do que de uma resposta apaziguadora. Uma das vantagens paradoxais da época atual, dramática e trágica em muitos aspetos, consiste em que ela traz consigo abalos, frente aos quais só as pessoas cínicas conseguem dormir descansadas e não se interrogar acerca do sentido.

A.G. – Também eu posso dialogar bem com um ateu que se interroga e luta. O seu questionar é também meu. Só que eu darei outras respostas. Mas, a tal respeito, podemos iniciar uma conversa. No ateu militante, pressinto e farejo o seu ser tocado pela questão de Deus; de outro modo, não reagiria de forma tão agressiva. Toca-me a seriedade dos seus argumentos; com a indiferença saciada e autossatisfeita, para mim, isso é mais difícil. Sinto então que o meu falar de Deus faz simplesmente ricochete, e que o meu interlocutor não levanta quaisquer questões sobre a sua vida. Compreendo porque é que os antigos pregadores se referiam de tão bom-grado ao inferno, aguardavam a réplica do seu interlocutor. Esperavam assim romper a indiferença. Mas este já não é, hoje, um caminho viável. Eu sugeriria, antes, a um indiferente que passássemos em silêncio apenas dois dias, e, depois, já poderíamos conversar. O silêncio coloca cada ser humano perante a sua verdade. Será, então, possível um diálogo acerca do essencial.



Menciono a beleza da fé, tal como ela se expressa nas admiráveis construções de igrejas, em imagens e estátuas, na música, que têm já sempre uma referência à transcendência. Sem a beleza da fé, tal como ela se mostra na beleza da arte, a minha vida seria mais pobre. Não é o tempo da hesitação, mas o tempo de falar, sem acanhamento e de modo compreensível, daquilo que me sustenta. O fascínio prende mais do que o catequizar ou o querer demonstrar



W.N. – Às vezes, em mim e nos outros, que confiam na fé, dou pela falta da alegria, talvez ainda, sem mais, da competência para falar direta e justamente da beleza da fé, da sua mais-valia, da sua força. Onde é que vedes – sem «ses» nem «mas» – as oportunidades insubstituíveis da fé? Ou terá apenas soado a hora da hesitação suave, quando se trata de Deus?

A.G. – Nas minhas conferências e conversas, eu falo naturalmente da fé. Não gostaria de catequizar, mas de dar testemunho, apesar de tudo, daquilo que me suporta e sustenta, que confere sentido à minha vida. Refiro ou falo, simplesmente, do jeito de lidar com problemas como a angústia, a depressão, a insatisfação, a pressão, os dissabores, a inveja. As soluções da fé são também sempre soluções, que correspondem a uma boa psicologia. Têm, porém, uma mais-valia: libertam-me da pressão de ter de fazer tudo por mim mesmo. Falo da fé que me sustenta. Não estou só. Pais, avós, inúmeros antepassados, que viveram da fé, estão por detrás de mim, fortalecem-me e protegem as minhas costas. Depois, menciono a beleza da fé, tal como ela se expressa nas admiráveis construções de igrejas, em imagens e estátuas, na música, que têm já sempre uma referência à transcendência. Sem a beleza da fé, tal como ela se mostra na beleza da arte, a minha vida seria mais pobre. Não é o tempo da hesitação, mas o tempo de falar, sem acanhamento e de modo compreensível, daquilo que me sustenta. O fascínio prende mais do que o catequizar ou o querer demonstrar.

T.H. – Permiti-me, como formulais, começar de uma forma mais suave e cautelosa: os discípulos íntimos de Jesus experimenta ram o êxtase da beleza e do esplendor no monte Tabor, mas Jesus advertiu-os para não caírem na tentação de «fazer ali três tendas», para ali comodamente se instalarem. A luz do monte Tabor e as trevas do jardim de Getsémani alternam-se na vida dos crentes e na história da Igreja; e, segundo as aparências, isto acontece, não de forma absolutamente precisa, com frequência e regularidade.



Para mim, Deus é a garantia da liberdade humana. O homem é criatura de Deus. Encontro nele não só o ser humano, mas também aquele em que habita o Espírito de Deus. Além disso, é a garantia da liberdade. Vela para que eu, como homem, não seja instrumentalizado, não me torne objeto de uma economia que, cada vez mais, me rodeia, mas tenha um espaço livre ao qual ninguém tem acesso



W.N. – Acerquemo-nos, ainda mais uma vez, da grande palavra «Deus». Poderíeis tentar, com umas quantas pinceladas, esboçar que experiências com a vida, com o mundo, com a sociedade, e ainda convosco mesmos, obtivestes, interpretastes e mantendes vivas com esta grande palavra?

A.G. – Para mim, Deus é a garantia da liberdade humana. O homem é criatura de Deus. Encontro nele não só o ser humano, mas também aquele em que habita o Espírito de Deus. Além disso, é a garantia da liberdade. Vela para que eu, como homem, não seja instrumentalizado, não me torne objeto de uma economia que, cada vez mais, me rodeia, mas tenha um espaço livre ao qual ninguém tem acesso. O Deus Santo vela pelo sagrado em mim. O sagrado é o que está subtraído ao mundo, que só a mim pertence, que faculta uma liberdade interior frente ao mundo. Deus é para mim, ademais, amplidão e beleza. Quando falo de Deus, o meu coração alarga-se; anseio pelo mistério que este mundo é para mim e pelo mistério do meu próprio ser homem. Deus é o mistério inexprimível. Quando estou aberto a este mistério inefável, então a minha vida torna-se misteriosa, profunda, viva, excitante; então, não vivo apenas diante de mim, mas estirado para algo de maior. Se, ao olhar para a sociedade e o mundo de hoje, contemplo Deus, então Deus é para mim a fonte da esperança. Esta impede-me de cair no pessimismo. Não obstante todas as tendências destrutivas que há no nosso caminho, espero um mundo melhor; espero na graça de Deus, que nos homens opera reiteradamente milagres de conversão e da transformação do pensamento.

T.H. – Em termos concisos, como desejais: a palavra «Deus» significa abertura, profundidade e maravilha.



A fé, o amor e a esperança são, para mim, os três tipos da paciência diante da ocultação de Deus. Sim, a fé e a dúvida são como duas irmãs, que se devem apoiar uma à outra na estreita e pequena ponte sobre o abismo da ausência de Deus. A fé que renuncia à sua irmã, a dúvida, que não acolhe bem as suas questões críticas, poderia cair na ratoeira do fundamentalismo e do fanatismo ou permanecer enterrada e presa na lama de uma credulidade superficial



W.N. – Ateus e crentes conhecem a experiência da ausência de Deus. De certo modo, olham ambos na mesma direção. Será possível designar a fé e a incredulidade como irmãs? Na rivalidade plena, sem dúvida, mas também em aliança familiar? Onde reside o significado permanente da incredulidade para os crentes, e vice-versa?

A.G. – Cada ser humano alberga em si a fé e a descrença. Para mim, a cruz é o símbolo do abraço. Quando cruzo os meus braços sobre o peito, abraço em mim tanto a fé como a incredulidade. Abraçar a descrença protege-me de combater os descrentes. Quem em si não abraça o incrédulo torna-se inseguro perante a incredulidade dos outros. Quem, porém, a aceita em si entende igualmente o descrente; em si pode ver como irmãs a fé e a incredulidade. Estas irmãs têm uma constelação diferente em cada qual; num a fé é mais forte, noutro a descrença; mas ambos os polos se encontram em cada um de nós. Se reconhecermos isto, podemos então entrar em diálogo uns com os outros. O descrente força a minha fé a interrogar-me incessantemente sobre aquilo em que deveras acredito; a fé, para os descrentes, é um desafio para não se fixarem de forma unilateral e precipitada na incredulidade. Em cada um existe também o anseio da fé. No diálogo com um descrente, deixo-me desafiar pela sua incredulidade; ao mesmo tempo, porém, espero que a minha fé atenue igualmente a sua descrença, e ele consiga descobrir na sua descrença sinais da fé. Sim, na realidade, ambos olham para Deus, que reside para lá de todas as imagens, para lá de todos os argumentos, para lá da fé e da descrença, como o maior mistério, rumo ao qual todos caminhamos.

T.H. – Na realidade, estamos todos a olhar para a montanha, cujo cume está rodeado por uma nuvem, e não para Deus apenas; e também os líderes religiosos ou os profetas parecem estar muito longe. Durante a espera, está-se sempre entregue ao perigo da impaciência, à tentação de preferir dançar à volta de um bezerro de ouro. No variegado mercado religioso de hoje, as barracas estão a abarrotar de «ídolos de substituição». Os ídolos são um produto favorito da atual indústria do entretenimento. Muitos já não escutam a música serena do silêncio divino. E os que estão expostos à experiência do silêncio de Deus ou à sua ausência, da oferta das diferentes interpretações deste fenómeno podem fazer uma escolha livre: Deus existe; Deus não existe e nunca existiu, Deus está morto; [Deus] ausentou-se, entregou aos homens, temporariamente ou para sempre, as rédeas do domínio sobre o mundo, a natureza e a história. Decidi-me por um outro olhar: a fé, o amor e a esperança são, para mim, os três tipos da paciência diante da ocultação de Deus. Sim, a fé e a dúvida são como duas irmãs, que se devem apoiar uma à outra na estreita e pequena ponte sobre o abismo da ausência de Deus. A fé que renuncia à sua irmã, a dúvida, que não acolhe bem as suas questões críticas, poderia cair na ratoeira do fundamentalismo e do fanatismo ou permanecer enterrada e presa na lama de uma credulidade superficial. A dúvida que não tem coragem de duvidar de si mesma, renuncia igualmente aos impulsos espirituais ou morais que nascem do mundo da fé, e que perde esse solo da confiança originária no significado e na razoabilidade da realidade, poderia desembocar no cinismo ou na amargura. Os que recalcam a sua dúvida projetam-na, com frequência, nos outros homens. «Um bom combate da fé» não deve significar a vitória sobre a dúvida já neste mundo. Geralmente, só acaba no abraço do que nos espera e aguarda para lá das fronteiras de todo o representável.



 

Edição: SNPC
Publicado em 28.03.2017 | Atualizado em 21.04.2023

 

Título: O abandono de Deus - Quando a crença e a descrença se abraçam
Autores: Anselm Grün, Tomáš Halík
Editora: Paulinas
Páginas: 224
Preço: 12,60 €
ISBN: 978-989-673-567-8

 

 
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