Reflexões breves em palavras mas longas em conteúdo: é esta a proposta de “No corpo do tempo - Teologia breve I”, seleção de textos assinados pelo teólogo João Manuel Duque, publicados ao longo dos anos na revista “Mensageiro do Coração de Jesus”, e agora reunidos em volume recentemente publicado pela Frente e Verso.
«"Breve", também, porque não deseja prender o leitor em discursos intermináveis, capazes de fazer a teologia fastidiosa ao leitor não profissional da mesma. "Longa", no entanto, se pensarmos no tanto que cada texto pode dar a pensar. Assim o leitor o deseje e procure», desafia a nota de apresentação.
O eixo do volume do professor catedrático da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, de que apresentamos um excerto, centra-se na "carne" (corpo) e "transitoriedade" (tempo), pelo que os textos tratam de questões como a incarnação, morte e ressurreição.
Na introdução, o autor justifica o título pelo facto de «a experiência de Deus e a correspondente experiência de salvação» acontecer «na história humana, no dia a dia das suas realizações, nos corpos pessoais e comunitários que lhe dão corpo».
E «ainda que haja uma referência especial ao corpo eclesial, de modo nenhum se pretende que esse corpo possa isolar-se dos corpos pessoais e comunitários que constituem o tecido do mundo, de que a Igreja faz parte e ao qual se orienta».
Os corpos, acentua João Manuel Duque, «são todos permeáveis, porque estão todos expostos uns aos outros», pelo que «pretensas imunizações são perversas, ou mesmo ilusórias».
O amor de Deus ao encontro dos humanos
João Manuel Duque
In “No corpo do tempo”
Deus é amor (O Theos agapê estín – Deus caritas est) (1 João) – esta é, talvez, a mais condensada e mais completa «definição» de Deus. Corresponde, de modo pleno, à compreensão cristã de Deus, que resulta de um processo longo e complexo de revelação e de descoberta. Concluir que Deus é amor não é algo evidente, nem isento de consequências. Contudo, a palavra «amor» – e até a palavra «caridade» – sofreu uma forte erosão, sendo necessário algum esclarecimento sobre o seu significado no contexto da tradição bíblico-cristã.
Antes de tudo, amor é um modo de relação entre pessoas – ou entre seres pessoais. O que implica o esclarecimento de alguns elementos do conceito de pessoa. Em primeiro lugar, implica a afirmação da unidade e unicidade de cada pessoa. Isto é, implica que aquele ou aquela que está envolvido ou envolvida numa relação de amor seja único e irrepetível, e não apenas uma energia, um elemento num sistema englobante, um princípio lógico, uma aparência ou outra realidade qualquer. Como tal, não poderíamos considerar o amor como algo do género de uma energia contínua que flui entre os seres, como pontos ou nós numa rede eletrónica, sem que fosse considerada a unicidade pessoal de cada ser nele envolvido.
No mesmo sentido, cada ser único e irrepetível envolvido na relação amorosa é diferente de outro ser. Por isso, o amor é o contrário de uma fusão das identidades e das diferenças dos sujeitos envolvidos numa realidade que os englobasse e lhes anulasse as suas características pessoais. Só é possível amor entre pessoas diferentes – e, ao mesmo tempo, a realidade pessoal resultante da relação amorosa é sempre uma realidade inconfundível com outra.
Essa afirmação da diferença individual não é, contudo, negação da relação entre os diferentes, num individualismo de sujeitos fechados sobre si mesmos. Isso será, precisamente, a negação do amor, pois este é sempre um modo de relação. Por isso, o amor é sempre relação entre pessoas diferentes, que mantêm a sua diferença, precisamente como identidade resultante da sua relação amorosa. Somos o que somos precisamente porque amamos e somos amados.
Mas qual a característica dessa relação a que chamamos amor e que acontece entre pessoas diferentes? Implica, sem dúvida, uma copresença dos envolvidos – amar é estar com o outro. Mas é mais do que isso. Implica viver a identidade da própria existência como existência para o outro, para aquele que se ama. Disso resulta a própria identidade pessoal: o amante é o que ama, dando a sua vida pelo amado (essa é a sua identidade fundamental); o amado é o que recebe a vida do amante (e essa é a sua identidade fundamental). Na permuta dos processos, todos somos chamados a ser amantes e amados – ou então fracassamos a nossa identidade de humanos. O amor é, assim, a base da identidade dos humanos, enquanto pessoas. Mas porquê?
Porque Deus é amor. Essa será a mais simples e completa resposta crente do cristão. Ou seja, a verdadeira identidade do ser humano mede-se pela sua correspondência à «identidade» de Deus. Por isso é que, segundo o Cristianismo, os humanos são, essencialmente, pessoas que se amam e que vivem para se amarem. Isso é que os torna pessoas únicas e irrepetíveis. Mas como sabemos nós que Deus é amor? E como sabemos o que significa essa afirmação, aplicada a Deus?
Em Jesus Cristo, Deus revela plenamente quem é – mesmo que nós, humanos, ainda não o compreendamos completamente. E revela-se amando – dando a vida pelo outro; e revela-se sendo amado – acolhendo a vida como dádiva do Pai. Por isso, o amor de Deus, que se realiza no encontro com o humano, sendo plenamente humano em Jesus Cristo, é que revela o próprio Deus. É claro que, nas condições da nossa existência humana e das suas limitadas capacidades de compreensão, nós só podemos compreender o que seja esse amor de Deus pelos humanos de modo analógico – só a partir da limitada experiência que fazemos do nosso amor humano. Por isso, Deus revela-se, em Jesus Cristo, amando com amor humano – só assim conseguimos compreender e acolher esse amor. Mas, ao mesmo tempo, percebendo nós as limitações do amor humano, também percebemos a sua grandeza e, em certa medida, o facto de albergar, nessas limitações, algo que é maior do que ele mesmo. Por essa via, podemos acolher um amor que seja fonte do nosso amor humano – e, nesse sentido, infinitamente mais perfeito do que ele. Mais do que isso: podemos compreender que a nossa verdade – e a nossa salvação – reside na correspondência prática a esse amor primeiro e originário, pois ele é a fonte do nosso.
Mas como se nos revela o amor de Deus – e Deus como amor? Precisamente na atuação de Jesus, enquanto ama, como humano. Assim, o amor de Deus que vem ao encontro do ser humano é o próprio Deus que, feito humano, ama humanamente, mostrando aos humanos que o amor humano é o caminho para corresponder ao amor de Deus, acolhendo a salvação. E o amor, que é caminho de salvação, é a capacidade de dar a vida pelo outro, fazendo-se servo do outro, o mais pequeno entre os pequenos, assumindo a debilidade humana – incluindo a condição mortal – como modo de amar, partilhando um modo de ser. É isso precisamente o que acontece no Natal.
O Natal não é, propriamente, um acontecimento mítico, em que uma divindade, eventual habitante de um lugar próprio, a que chamamos normalmente «Céu» – e que a mitologia grega denominava «olimpo» – tenha entrado na terra para libertar os humanos que a habitavam e que se encontravam escravizados de vários modos. Essa descrição só pode ser aceite em sentido metafórico e imagético. No Natal celebra-se o início de um percurso de vida em que Jesus de Nazaré se revela como Deus- -connosco, enquanto Deus que ama e, nesse amor, se revela, revelando aos seres humanos a sua mais profunda verdade e, desse modo, o caminho da libertação: que é o caminho da pobreza, da humildade, da debilidade, da doação da vida até à morte. É esse o acontecimento do amor de Deus ao encontro dos humanos – acolhendo-os e respeitando-os na sua diferença pessoal. Esse acontecimento, se acolhido por cada ser humano, na prática da sua existência, transforma-o em verdadeira pessoa, única e irrepetível, eternamente. A isso chamamos salvação, na qual esperamos, porque acreditamos.