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Na oração aspiramos a que o impossível seja possível

«Sede sempre alegres. Orai sem cessar. Em tudo dai graças» (1 Tessalonicenses 4,16-18). Orar é tornar-se explicitamente consciente da omnipresença do amor de Deus, e dirigir-se a Ele como um filho fala com o seu pai ou a sua mãe. É colocar-se na presença de Deus, abrir-se ao influxo do seu Espírito e deixar-se moldar pela sua Palavra.

Mas não é só, nem principalmente, um ato de consciência. É, antes, sentir-se banhado e pessoalmente acompanhado pela atmosfera envolvente de quem sustém o compasso do tempo, para perceber o seu impercetível “estar”, mais além e mais aqui do que qualquer outra forma comum de habitar o espaço e a sequencialidade temporal.

Há inúmeras formas de oração. E todas são saudáveis se nos ajudarem a colocarmo-nos na presença de Deus.

Alguns rezam com breves fórmulas repetitivas sem calar as preces. Outros em completo silêncio, quase sem proferir palavra. Alguns rezam com a Bíblia, outros com a contemplação da natureza. Há quem entoe salmos, outros meditam nos Evangelhos. Outros observam, à distância, o seu fluxo interno da consciência na máxima quietude que lhes é possível. Outros rezam no metropolitano, transfigurando a agitação da cidade depois de visitar pessoas doentes no hospital ou trabalhar em bairros pobres com imigrantes ou marginalizados. Outros experimentam a presença de Deus na sua luta ativa pela justiça, e outros cultivam a disciplina da leitura, o estudo, a meditação e a escrita.



O que as crianças fazem com a sua fada-madrinha imaginária, podemos fazê-lo nós com Deus - oh! - quando, em vez de nos colocarmos ao seu serviço - e nenhuma plenitude é maior para o homem do que o serviço de Deus -, pretendemos que seja Deus a servir-nos



Não é certo que, em si mesma, qualquer atividade seja oração, mas tudo pode tornar-se oração.

Não há oração quando estamos horizontalmente dispersos na superfície das nossas tarefas, por mais que nos ajoelhemos diante do Santíssimo Sacramento.

E não há situação ou atividade, por mais caótica ou tumultuada que seja, que não possa sirva como catalisadora de um impulso de transcendência que nos catapulte diante da presença última d’Aquele frente a quem tudo é penúltimo.

O decisivo não é o momento, nem o lugar, nem o modo, mas a ativação de nosso recetor interno de eternidade, quaisquer que sejam as circunstâncias externas ou internas em que nos encontremos.

Orar é, portanto, unir-se com os nossos sentidos, afetos, sentimentos, pensamentos e imaginação a Deus, num relacionamento de intimidade em que nos mostremos, querendo ou não, nus de todos os nossos papéis e de todas as nossas narrativas de autojustificação para confessar o mal que fazemos, o bem que deixámos de fazer e, na medida em que nos é dado recebê-lo e apreciá-lo, experimentar o perdão de um amor de Deus que nos impele a ser melhores e mais exigentes connosco mesmos, e muito mais indulgentes com os demais.



Novo nascimento, cura completa, redenção absoluta, perdão incondicional. É isso que a oração nos leva a regozijar aqui e agora, em condições muito precárias, tendentes à dispersão espiritual e à submissão às condições horizontais de uma existência perante a qual essas condições se apresentam como definitivas e últimas



Orar contribui decisivamente para a nossa cura interior, para a integração mais profunda de todas as tendências que, por vezes, nos conduzem em direções opostas, ao ponto de desgarrar o nosso interior.

Orar repercute-se em todo o nosso ser, porque somos uma unidade. E toda ela vive tanto as nossas alegrias e sucessos, quanto as nossas feridas e fracassos.

Orar é como ficar bronzeado. Acontece intencionalmente e sem se querer. Há que expor-se, querendo, aos raios do sol, mas uma vez aí são eles que, sem querer, ativam a melanina da nossa pele.

A iniciativa, a atividade incitadora, o protagonismo é sempre daquela divindade que, como o sol, nunca deixa de nos comunicar os lampejos do seu amor, porque, embora sua receção imediata implique a ação positiva da nossa liberdade, esta nunca é o que vem em primeiro lugar, por mais que nos pareça, mas a resposta a um chamamento anterior que precede completamente toda a nossa ação.



Sendo do máximo interesse tudo o que a neurobiologia e a psicologia nos possam ensinar sobre a complexidade e a profundidade do nosso eu cerebral, a dimensão para a qual a oração aponta transcende todo o fenómeno fisiológico para emboscar o ser humano num nível de profundidade em que as bússolas ficam loucas



Na oração aspiramos a que o impossível seja possível. A que o irremediável pode ser remediado.

Não me refiro aqui a essas primárias e infantis petições que convertem a oração num exercício inverso daquilo que, na realidade, deveria ser. A oração consiste em estar aberto à vontade de Deus, à sua Palavra, à sua moção. E é, então, o exercício espiritual em que nos devemos deixar convencer e moldar, nos nossos sentimentos, desejos e ideias, pelo amor de Deus, em vez de, endurecidos no nosso ego, pretender convencer Deus para que se cumpra a nossa vontade, estabelecendo com quem tudo nos dá uma horrível relação de compra e venda.

O que as crianças fazem com a sua fada-madrinha imaginária, podemos fazê-lo nós com Deus - oh! - quando, em vez de nos colocarmos ao seu serviço - e nenhuma plenitude é maior para o homem do que o serviço de Deus -, pretendemos que seja Deus a servir-nos, realizando aquilo que cremos desejar. Porque o certo é que, na maioria das vezes, não sabemos nem o que queremos, e somos como crianças caprichosas e inconstantes, como em todas as incontáveis ocasiões em que, querendo algo com todas as nossas forças, acontece que não o reconhecemos como o que, na realidade, queríamos.

A questão é, portanto, escutar, adorar e entregar-se, e não tanto de petição, exigência e troca, porque o que realmente está em jogo na oração é se é possível o impossível, e se o já irremediável pode ter remédio em Deus.



No processo orante ocorre - mas sem histrionismos, nem gritos, nem acelerações - o mesmo que numa gigantesca roda gigante ou numa montanha-russa



O problema real é o mal, a dor, o sofrimento e a morte como realidades cuja derrota definitiva só Deus pode realizar na plenitude escatológica além da história comum da criação.

E é aí que o cristianismo, na oração, nos antecipa o impossível e o irrealizável. Foi sobre isso que Unamuno refletiu no seu escrito “Nicodemos, o fariseu”, e que consiste fundamentalmente em que Deus pode curar as nossas feridas, curar as nossas cicatrizes, perdoar o mal cometido e apagá-lo completamente do universo, transformando-o de tal maneira como nunca tivesse acontecido ao torná-lo totalmente desativado e desprovido de negatividade.

Novo nascimento, cura completa, redenção absoluta, perdão incondicional. É isso que a oração nos leva a regozijar aqui e agora, em condições muito precárias, tendentes à dispersão espiritual e à submissão às condições horizontais de uma existência perante a qual essas condições se apresentam como definitivas e últimas. Como se uma palavra de salvadora eternidade não só fosse impensável, como totalmente impossível.

A oração faz-nos viver adiantadamente uma leve fração dessa plenitude, mas por vezes isso parece-nos um devaneio, ou um vão autoengano.

As aproximações da neurologia ou da psicologia profunda à questão da oração - sendo em si mesmas extraordinariamente interessantes - sofrem todas de um mesmo défice.

Tendem a confundir a profundidade da mente e os seus mecanismos fisiológicos internos com o abismo do espírito humano. É que o eu profundo, por mais profundo que seja, por mais estruturas transpessoais das quais se liberte, por mais que dissolva o seu perfil, por mais inconsciente e obscuros que sejam os seus sótãos, não é - neste nível analítico ou neurofisiológico - senão a superfície mais acessível de uma personalidade que, apoiada cerebralmente por interações sinápticas e processos bioquímicos, se mostra certamente fascinante, complexa e profunda, mas com uma profundidade de um alcance sempre mensurável, avaliável e explorável em termos de análise, sondagem e experimentação.



Vista de uma perspetiva tecnocrática e meramente utilitária, a oração não serve para nada. Compreendida no seu ser mais autêntico, é tudo



Isto quer dizer que, sendo do máximo interesse tudo o que a neurobiologia e a psicologia nos possam ensinar sobre a complexidade e a profundidade do nosso eu cerebral, a dimensão para a qual a oração aponta transcende todo o fenómeno fisiológico para emboscar o ser humano num nível de profundidade em que as bússolas ficam loucas, os sonares têm comportamentos estranhos, e não há mecanismo de verificação empírica que funcione, definitivamente, de maneira cabal.

Porque do que aqui se trata, finalmente, é do nosso eu místico, da nossa identidade abissal, da raiz última do nosso ser de criatura, criado à imagem e semelhança de Deus, e constituído, na sua profundidade mais íntima, por uma singularidade tão especial e genuína, que, curiosamente, permanece sempre ela mesma ao longo da vida, como se não tivesse idade durante todas as idades da sua biografia. Como se o seu verdadeiro tempo e o seu verdadeiro lugar não fossem deste mundo, e, portanto, pudesse perceber-se a si mesma sendo criança, jovem, adulta ou idosa, sendo tudo isso ao mesmo tempo, e nenhum deles separadamente do fluxo vital onde está. Refiro-me à profundidade da nossa alma e do nosso espírito a que sempre se referiram os autores espirituais e místicos. É nessa dimensão e nessa profundidade insondável do nosso eu que acontece a experiência da oração.

Como se vê, não se trata, portanto, do alcance quantitativo de uma profundidade determinada da consciência, mas do encontro com uma infinitude - o divino - que diviniza a condição humana ao transportá-la para uma dimensão em que o tempo já não é duração, o espaço não é extensão, e a matéria - como na transfiguração - se torna translúcida.

Nesta dimensão para a qual somos transportados - sem sairmos de onde estamos, e sem que, aparentemente, nada mude, quando, na realidade, já tudo é distinto - nos momentos de maior lucidez e intensidade orante, situamo-nos na onda vital do que as Escrituras e a Tradição chamaram Espírito Santo.

E é nele, no movimento incessante do Espírito divino, onde o nosso espírito humano se encontra com a fonte de toda a vitalidade, com o dador da vida, com Aquele que, sem ser criação, literalmente anima tudo o que é criado desde o seu mais íntimo interior.



No nosso ponto de chegada voltamos a encontrar-nos com a referência cristológica que nos move ao seguimento de quem, no mesmo mundo, na mesma linha espácio-temporal que nós habitamos agora, viveu em transparência diáfana a sua relação com Deus



Num interior onde, na oração, somos sempre convidados a configurar-nos com a obra biográfica de Jesus Cristo, sendo novamente remetidos para a âncora vital, espácio-temporal, histórica e concreta da qual nunca saímos.

No processo orante ocorre - mas sem histrionismos, nem gritos, nem acelerações - o mesmo que numa gigantesca roda gigante ou numa montanha-russa.

Somos levados pela atração de um movimento que não dominamos em direção a picos insondáveis que nos deixam sem palavras, sem que nos movamos em absoluto do lugar que ocupamos ou do habitáculo em que nos sentamos. E as coisas que vemos, sentimos e apreciamos nesses movimentos de oscilação - que não são coisas, nem visíveis, nem sensíveis, nem apreciáveis - fazem com que o nosso ponto de partida - do qual nunca movemos um milímetro – seja percebido, depois e durante a experiência da oração, de uma modo qualitativamente transfigurado, quando, sem saber muito bem porquê, finaliza a oração – coisa que, no fundo, queríamos que nunca acontecesse.

E no nosso ponto de chegada voltamos a encontrar-nos com a referência cristológica que nos move ao seguimento de quem, no mesmo mundo, na mesma linha espácio-temporal que nós habitamos agora, viveu em transparência diáfana a sua relação com Deus.

Por isso a oração não nos faz fugir da vida, como não fez fugir Jesus da sua, mas restitui-nos aos seus problemas e vicissitudes de uma forma inteiramente: na lógica do Reino, do amor a Deus e do amor ao próximo.

Vista de uma perspetiva tecnocrática e meramente utilitária, a oração não serve para nada. Compreendida no seu ser mais autêntico, é tudo.

Nela se encontra o ser humano com o seu Criador, e é convidado a viver como o seu Filho eterno, sendo interiormente transformado pelo amor infinito do seu santo Espírito.


Imagem "Homem idoso em oração" | Rembrandt

 

Pedro Castelao
In Religión Digital
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: "Homem idoso em oração" (det.) | Rembrandt
Publicado em 22.01.2020

 

 
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