A noite escuta com a mesma indiferença/ a toada solitária do monge/ e a canção rouca das prostitutas
É importante sentirmos que a nossa voz é apenas uma voz humana. A nossa voz quando rezamos, vivemos e respiramos, quando cremos, é apenas uma voz humana, e que se junta a todas as outras.
Muitas vezes queremos que o crer seja uma espécie de pódio: «Eu sou cristão», «eu rezo» - afirmações que nos logo dão um estatuto e correspondem a determinada recompensa.
Por vezes andamos à procura de condecorações, em vez de andarmos à procura de Deus; ou andamos à procura de consolações em vez de nos abrirmos ao seu mistério.
«A noite escuta com a mesma indiferença»: sentirmos que somos apenas mais um perante a grande noite do mundo.
O monge duvida/ a ponto de alhear-se/ das peónias floridas
O papel da dúvida é também uma forma de pobreza. A dúvida de que não gostamos, a dúvida que nos corrói, que nos maça, que gostaríamos de resolver com um estalido de dedos.
A dúvida que nos torna alheios às coisas boas da vida. Duvidamos do copo meio vazio e esquecemo-nos do copo meio cheio; duvidamos da ausência e esquecemo-nos aquilo que está presente.
Muita vezes o problema da dúvida é esquecermos que o jardim está florido, esquecermo-nos daquilo que ao nosso lado, fora e dentro de nós, nos testemunha o amor.
Essa é uma redescoberta que precisamos de fazer, e que implica, certamente, uma grande atitude de pobreza espiritual.
Deus apaga/ o nosso rasto/ como se apagasse uma vela
Temos uma ideia de eternidade muito distorcida. Para nós ela é uma forma de monumentalidade, isto é, criar um monumento da nossa vida e da nossa memória.
A eternidade não é isso. Senão, uma folha de erva não era eterna, e é. Senão um olhar nosso não era eterno, uma palavra nossa não era eterna, e é.
Deus apaga o nosso rasto como se apagasse uma vela: aceitar o silêncio, aceitar o apagamento, aceitar a morte, aceitar que partimos, aceitar a abertura das mãos, aceitar a perda, aceitar o luto, aceitar que as forças diminuem, aceitar que a luz termina. Aceitar. Aceitar.
No ato de apagar há mais do que um apagamento: é Deus que apaga; então, no apagamento eu também me relaciono com Ele, e posso descobrir, pela primeira vez, de forma mais definitiva, o seu próprio rosto.
No mosteiro/ partilham a mesma cor/ os crisântemos e a sala de meditação
Um sinal de que a vida interior está desordenada é quando nada tem a ver com nada. Tudo é desigual, tudo é um fragmento, tudo é uma espécie de esquizofrenia cultural e interior que vivemos.
Somos isto mas também aquilo completamente diferente, de fora somos uma coisa e dentro somos outra, pintamos de uma cor num dia e no outro escolhemos outra distinta.
«No mosteiro partilham a mesma cor os crisântemos e a sala de meditação»: há uma unidade. E essa unificação interior só nasce profundamente da escuta.
Precisamos de escutar. Precisamos de colocar o ouvido junto ao corpo da própria realidade para encontrar os fins que a aproximam, e não aquilo que separa.
Primeiro dia de primavera:/ que distante me parece/ o inverno
Os invernos são muitas vezes o retrato da nossa vida. Como Tchekhov dizia: a vida de um homem é um inverno gelado.
Muitas vezes os invernos prolongam-se e não têm fim. E depois, de um dia para o outro, as coisas mudam. O drama das nossas vidas é pensarmos: «Isto vai ser sempre assim, nunca mais vai acabar, a partir de agora perco toda a esperança».
«Primeiro dia de primavera: que distante me parece o inverno»: como ficou muito para trás. Por vezes, quando chega a luz, justifica tudo aquilo por que passamos, porque nela recebemos a pura graça de Deus.
Hospedo-me hoje nesta cabana/ amanhei serei hóspede/ da lua
Hoje vivemos aqui, amanhã vamos vier tão mais além. E saber isso hoje faz a diferença no que vivemos.
Provavelmente não nos agastaremos tanto, não perderemos tanto a esperança e as forças; provavelmente abriremos desde já o coração àquilo que virá; provavelmente valorizaremos tanto o que teremos como o que temos ou tivemos.
O verão/ ensina a mesma prece/ à papoila e ao monge
Muitas vezes pensamos que o nosso caminho é único, exclusivo, e isso torna-nos muito incapazes de olhar.
Há um apelo feito à papoila fragilíssima para ser, para florir, para ser vermelha sempre, para estar acesa, para ser todas as cores, para resistir ao vento, para orar. Como é que uma papoila reza? Reza sempre, reza sendo.
Nenhum monge, nenhuma monja, nenhum crente, nenhuma crente reza de outra maneira senão sendo, senão sendo, senão sendo.
José Tolentino Mendonça