«Muitas vezes perdemo-nos em abstrações porque não escutamos a vida real, não escutamos os sussurros do outro», afirmou esta quarta-feira o cardeal Tolentino Mendonça, em Madrid, onde também falou de fraternidade e migrações.
Na sessão de encerramento da exposição “Violências silenciadas”, que os dominicanos promoveram para chamar a atenção para o desrespeito pelos direitos humanos, o diretor do arquivo e da biblioteca do Vaticano lembrou que «o judaísmo e o cristianismo são religiões da escuta», e que esta não se ativa só com os ouvidos, «mas também com o coração, que não é mais do que uma escuta profunda em que todos os sentidos nos são úteis».
«Se refizermos a história da humanidade, desde a mais elementar antropologia da vida quotidiana até à mais sofisticada manifestação das artes, esta necessidade de escuta insinua-se em todo o lado», apontou.
«Escutamo-nos muito pouco a nós mesmos, e entre as capacidades que desenvolvemos raramente está o escutar», apontou, antes de desafiar a Igreja e os cristãos a ouvir os sinais dos tempos, que falam não só de «uma era de turbulências e mudanças, mas numa mudança de época».
No quadro destas mutações profundas, e de carácter «ambíguo», incluem-se as migrações, que «não são um fenómeno episódico, mas correspondem a um movimento de reconfiguração» das sociedades, no interior das quais os cristãos são desafiados a questionar-se como «pôr no centro» todas essas dinâmicas.
«No meio de um mundo que olha para o futuro como distopia, nós, como cristãos, somos chamados a não ter medo e a olhar com esperança no meio de tantos naufrágios», frisou, antes de observar: «Temos de fugir da lógica do medo, porque nos fecha em nós mesmos, e a confiança abre-nos o coração».
Ao vincar que «a fraternidade não é um automatismo», antes «uma decisão e um projeto», o primeiro diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura sublinhou que «tem de haver uma decisão ética sobre o outro: acolho ou discrimino?».
Na terça-feira, D. Tolentino Mendonça esteve em Salamanca, também no contexto da Ordem dos Pregadores, para presidir à missa que, nesse dia, evocou uma das figuras centrais da história da Igreja, o dominicano S. Tomás de Aquino.
Na conferência proferida na iniciativa “Conversas de Santo Estêvão”, o poeta propôs cinco linhas para uma espiritualidade cristã contemporânea, tendo começado por acentuar que «o cristianismo tem de escutar hoje o sentimento de orfandade, o vazio de paternidade da cultura moderna», pelo que «a figura do pai precisa de ser recuperada também no campo da espiritualidade».
Depois, perfila-se o repto de «reconstruir a gramática do humano, perante a intelectualização da fé, que se converte numa admirável fortaleza de distrações». É necessário que cada pessoa aprenda a olhar para si mesma «como profecia desse amor incondicional descrito nos Evangelhos», porque a totalidade do ser humano «é gramática de Deus».
Em terceiro lugar, a espiritualidade é convidada a tornar presente que o sagrado atrai para a união, e não para a separação: «Frente ao antropocentrismo despótico que o papa Francisco assinala, há que recuperar a convicção de que a nossa existência humana baseia-se em três relações fundamentais, intimamente ligadas: com Deus, com o próximo e com a terra».
Para estimular uma espiritualidade que se expresse «numa cultura de fraternidade e de encontro», é preciso defender o diálogo e a colaboração, até porque «a humanidade precisa sempre de ser abraçada, mas com mais razão quando está ferida e se sente leprosa pelo estigma, sem saber como reconstruir-se».
Numa conjuntura em que os cristãos voltam à condição de pequeno rebanho, e por essa circunstância podem ser um enigma e uma surpresa para a sociedade, a espiritualidade é chamada a «recuperar o poder santo do coração, uma cultura de compaixão, da misericórdia, que tem de viver-se como um ministério», concluiu.